terça-feira, 18 de agosto de 2020

Malaquias, dito Gorgulho

E assim seguiam, de um ponto a um ponto, por brancas estradas calcáreas, como por uma linha vã, uma linha geodésica. Mais ou menos como a gente vive. Lugares. Ali, o caminho esfola em espiral uma laranja: ou é a trilha escalando contornadamente o morro, como um laço jogado em animal. Queriam subir, e ver. O mundo disforme, de posse das nuvens, seus grandes vazios. Mas, com brevidade, desciam outra vez. Saíram a onde a estrada é reta, bom estirão. Até que, a pouco trecho, enxergavam, adiante uma pessôa caminhando.
Um homenzinho terém-terém, ponderadinho no andar, todo arcaico.
— “É o Gorgulho…” — o Pê-Boi disse.
Quem? Um velhote grimo, esquisito, que morava sozinho dentro de uma lapa, entre barrancos e grotas — uma urubuquara — casa dos urubús, uns lugares com pedreiras. O nome dele, de verdade, era Malaquias.
E ia o Gorgulho direito bem no meio da estrada, parecia um garatujo, um desses calungas pretos, ou carranquinha escoradora de veneziana. Tinha um surrão a tiracolo, e se arrimava em bordão ou manguara. Como quase todo velho, andava com maior afastamento dos pés; mas sobranceava comedimento e estúrdia dignidade.
Devia de ouvir pouco, pois a comitiva já quase o alcançara e ele ainda não dera por isso. Ora, pela calada do dia, ali é lugar de muito silêncio. Assim que, o Gorgulho calçava alpercatas, sua roupa era de sarja fusca, formato antigo — casacão comprido demais, com gualdrapas; uma borjaca que de certo tinha sido de dono outro — mas limpa, sem desalinho nenhum; via-se que ele fazia questão de estar composto, sem em ponto algum desleixar-se. E o que empunhava era uma bengala de alecrim, a madeira rôxo-escura, quase preta.
E, nisso, de arranco, ele esbarrou, se desbraçando em gestos e sestros, brandindo seu cacete. Fazia espantos. Falou, mesmo, voz irada, logo ecfônico:
Eu?! Não! Não comigo! Nenhum filho de nenhum… Não tou somando!
Tomou fôlego, deu um passo. Sem sossegar:
Não me venha com loxías! Conselho que não entendo, não me praz: é agouro!
E mais gritava, batendo com o alecrim no chão:
Ôi, judengo! Tu, antão, vai p’r’ as profundas!…
De tanta maneira, sincera era aquela fúria. Silenciou. E prestava atenção toda, de nariz alto, como se seu queixo fosse um aparêlho de escuta. Ao tempo, enconchara mão à orêlha esquerda.
Alguém também algo ouvira? Nada, não. Enquanto o Gorgulho estivera aos gritos, sim, que repercutiam, de tornavoz, nos contrafortes e paredões da montanha, perto, que para tanto são dos melhores aqueles lanços. Agora e antes, porém, tudo era quieto.
— “Que foi que foi, seu Malaquia?” — já ao lado dele Pedro Orósio indagava.
Apenas no instante o Gorgulho percebia-os. Voltou-se. Mas não respondeu. Empertigou-se, saudando circunspecto; tudo nele era formal. Até a barba branco-amarela, só na orla do rosto, chegando ao cabelo. Pedro Orósio teve de apresentá-lo, a cada um, e ele cumpria sério o cumprimento, com vagar — a frei Sinfrão beijou a mão, mencionando Jesus Cristo. Se descobrira e segurava o chapéu, pigarreando e aprovando, com lentos anuídos, a boa presença daquelas pessôas. Mas a gente notava quanto esforço ele fazia para se conter, tanta perturbação ainda o agitava.
— “H’hum… Que é que o morro não tem preceito de estar gritando… Avisando de coisas…” — disse, por fim, se persignando e rebenzendo, e apontando com o dedo no rumo magnético de vinte e nove graus nordeste.
Lá — estava o Morro da Garça: solitário, escaleno e escuro, feito uma pirâmide. O Gorgulho mais olhava-o, de arrevirar bogalhos; parecia que aqueles olhos seus dele iam sair, se esticar para fora, com pedúnculos, como tentáculos.
— “Possível ter havido alguma coisa?” — frei Sinfrão perguntava. — “Essas serras gemem, roncam, às vezes, com retumbo de longe trovão, o chão treme, se sacode. Serão descarregamentos subterrâneos, o desabar profundo de camadas calcáreas, como nos terremotos de Bom-Sucesso… Dizem que isso acontece mais é por volta da lua-cheia…”
Mas, não, ali ilapso nenhum não ocorrera, os morros continuavam tranquilos, que é a maneira de como entre si eles conversam, se conversa alguma se transmitem. O Gorgulho padeceria de qualquer alucinação; ele que até era meio surdo. E Pedro Orósio, que semelhava ainda mais alteado, ao lado assim daquele criaturo ananho, mostrava grande vontade de rir. O Gorgulho ainda afirmava a vista, enquanto engulia em seco, seu gogó sobe-descia.
— “E que foi que o Morro disse, seu Malaquias, que mal pergunto?” — seo Jujuca quis saber.
Pois, hum… Ao que foi que ele vos disse, meu senhor? Ossenhor vossemecê, com perdão, ossenhor não está escutando? Vigia ele-lá: a modo e coisa que tem paucta…
Muito mais longe, na direção, outras montanhas — sendo azul a Serra da Diamantina. Sobre essa, o estender-se de estratos. Depois, lã puxada por grandes mãos, sempre nuvens ursas giganteiam. E aqui perto, de repente, se traçou o rápido nhar de um gavião, passando destombado, seu sol nas asas chumbo: baixava para a bacia, para as restingas de mato.
E-ê-ê-ê-ê-ê-eh, morro!… — bradou então Pê-Boi, por desfastio. Mas fazendo à moda certa de ecar do povo roceiro serrâino, por precisão de se chamarem pelo ermo de distâncias, monte a monte: alongando o eh , muito agudo, a toda a garganta, e dando curto com o nome final, tal uma martelada, que quase não se ouve — só o seu dono entende.
Perspeito, em seu pousado, o da Garça não respondia, cocuruto. Nem ele, nem outro, aqui à esquerda, próximo, superno, morro em mama erguida e corcova de zebú.
Aí de, já se arapuava o Gorgulho, mestre na desconfiança. Com um modo próprio de querer rodar com o nariz e revolvendo as magras bochechas. Dele, ôi, ninguém zombava gracejo, que era homem se prezando, forte zangadiço. Piscava redobrado, e para a beira da estrada se ocupou, esperando que os outros passassem e se fossem — fazia por viajear fora de companhia.
O! Ack! — glogueou seo Olquiste, igual um pato. Queria que o Gorgulho junto viesse. — Troglodyt? Troglodyt? — inquiria, e, abrindo grande a boca, rechupava um ooh! … Quase se despencando, desapeou. Frei Sinfrão e seo Jujuca desmontaram também.
O Gorgulho persistia calado, amarrada a cara. Gastara voz, saíra de si, agora estava aquietado, cansado quem-sabe. De tão alto em sua estima, e cerimonioso, ganhava meia parecença com algum bicho, que nunca demuda de suas praxes. Enquanto seo Alquiste se afadigava, como com certo susto de que o homenzinho fosse escapulir. E frei Sinfrão caçoava e se afligia, repartido no receio de que seo Olquiste se desgostasse, mas também de que pudesse obrar alguma maior inconveniência. E seo Jujuca se tolhia, no dever de que tudo se arranjasse a gosto de seus hóspedes. Seo Jujuca se aborrecia. Nunca de seguro imaginara que um divertido de gente como aquele Gorgulho — que nem casa tinha, vivia numa gruta, perto dos urubús, definito sozinho — que pudesse se encoscorar, assim, se dando tanto valor. E Pedro Orósio mais o Ivo tinham de tomar em si parte dessas tribulações, conforme aos empregados serve. Só mesmo o Gorgulho era ali quem resguardava sua inteireza.
Mas Pedro Orósio tocou ajuda: — “Ele gosta de mim” — disse. — “É meu amigo…” —; e, sem pau nem pedra, fez o velhouco vir à fala, repedindo, nome do frade, que ele quisesse de bem se chegar e emparelhar caminhada.
Pelo que, ele concordando, tiveram de ir dali por diante todos a pé e a contados passos, visto que o Gorgulho, a-prazer-de se empenhando, sempre não passava de um poupado andarilho. Nem nenhum deles ria, a que à menor menção de troça o Gorgulho subia no siso, homem de topete. Dôido, seria? — “Não. Ele, no que é, é é pirrônico, dado a essas manias… Que parece foi querer morar independente em oco de pedreira, só p’ra ser orgulhoso, longe de todos. E não perdeu o bom-uso de qualquer sociedade…” Pedro Orósio podia explicar isso, baixinho, ao seo Jujuca, dês que o Gorgulho escutava reduzido. Mas ele respondia às perguntas, sempre depois de matutar seu pouco, retorcendo o nariz e bufando fraco. A fala dele era que não auxiliava o se entender — às vezes um engrol fanho, ou baixando em abafado nhenhenhém, mas com partes quase gritadas. Em cada momento, espiava, de revés, para o Morro da Garça, posto lá, a nordeste, testemunho. Belo como uma palavra. De uma feita, o Gorgulho levou os olhos a ele, abertamente, e outra vez se benzeu, tirado o chapéu; depois, expediu um esconjuro, com a mão canhota. Frei Sinfrão recomendava a seo Alquiste que agora deixasse de tomar notas na caderneta.
Passando-se assim estas coisas, discorriam de ficar sabendo, melhor, que o Gorgulho residia, havia mais de trinta anos, na dita furna, uma caverna a cismôrro, no ponto mais brenhoso e feio da serra grande. Lapinha antes anônima, ou “Lapa dos Urubús”, mas agora chamada a “Lapinha do Gorgulho”. Santo de sozinho de santo: nunca tivera vontade de se casar — “Ossenhor saiba: nem conjo, nem conja — méa razão será esta…” Mesmo o motivo dessa sua viagem era ir de visita ao seu irmão Zaquias, morador tão lontão, também numa gruta pequena, pegada com a Lapa do Breu, rumo a rumo com a Vaca-em-Pé. Porque tinha tido sabença de que o Zaquia andava imaginando se casar. E então ele achava obrigação de aviso de deixar seus trabalhos, por uns dias, e vir reconselhar o irmão, tivesse juizo, considerasse, as paciências, não estava mais em éra de pensar em mulher. E, desse modo, pondo em efeito.
Afora causa tão precipitada, só de longes mêses, não mais de uma vez na roda do ano, era que um deles resolvia, deixava sua gruta, e espichava estrada, por mor de vir ver o outro irmão lapuz. — “Mas, por que não moram juntos?” — “Ossenhor disse?…” — e o Gorgulho fitava o frade, espantado com o despropósito.
Porém seo Olquiste queria saber como era a gruta, por fora e por dentro? Seria bôa no tamanho, confortosa, com três cômodos, dois deles clareados, por altos suspiros, abertos no paredão. O salão derradeiro é que era sempre escuro, e tinha no meio do chão um buraco redondo, sem fundo de se escutar o fim duma pedra cair; mas lá a gente não precisava de entrar — só um casal de suindaras certos tempos vinha, ninhavam, esse corujão faz barulho nenhum. Respeitava ao nascente. A boca da entrada era estreita, um atado de feixes de capim dava para se fechar, de noite, mode os bichos. E tinha até trastes: um banco, um toco de árvore, um caixote e uma barrica de bacalhau. E tinha pote d’água. Dormir, ele dormia numa esteira. Vivia no seu sossego.
E de que vivia? Plantava sua roça, colhia: — “A gente planta milho, arroz, feijão, bananeira, abobra, mandioca, mendobí, batata-dôce, melancia…” Roça em terra geradora, ali perto, sem possessão de ninguém, chão de cal, dava de tudo. Que ele tinha sido valeiro, de profissão, em outros tempos… — emendava baixinho Pedro Orósio. Abria valos divisórios. Trabalhava e era pago por varas : preço por varas. Pago a pataca. Fechou estes lugares todos. — “Fechei!” — ele mesmo dizia. Contavam que ainda tinha guardado bom dinheiro, enterrado, por isso fora morar em gruta: tudo em meias-patacas e quarentas, moedões de cobre zinhavral. Com a mudança dos usos, agora se fazia era cerca-de-arame, ninguém queria valos mais; ele teve de mudar de rumo de vida. Cultivava seu de comer. E punha esparrelas para caça, sabia cavar fôjo grande; por redondo ali, dava muita paca: nem bem vê uma semana, tinha pegado em mundéu uma paca amarela, dona de gorda. Só pelo sal, e por se servir de mercê de alguma roupa ou chapéu velho, era que ele surgia, vez em raro, em fazenda ou povoado. Trazia frutas, também fazia os balaios, mestre no interteixo. Dizia: — “Também faço balaio… Ossenhor fica com o balaio… Também faço balaio… Também faço balaio…”
Mas, nesse entremeio, baixando o lançante, chegavam a um lugar sombroso, sob muralha, e passado ao fresco por um riachinho: eis, eis. Um regato fluifim, que as pedras olham. Mas que mais adiante levava muito sol. Do calcáreo corroído subia e se desentortava velha gameleira, imensa como um capão de mato. Espaçados, no chão, havia cardos, bromélias, urtigas. Do mundo da gameleira, vez que outra se ouvia um trinço de passarinho. Ali fizeram estação, para a hora de comer.
Dado um lombo aos cavalos, estes pegavam a pastar, nas bocâinas do barranco, um meloso ressalvado da seca e entrançado, cheirando bom, com seus óleos e seus pelos. Pedro Orósio ia ajuntar galhos de graveto, acolá, debaixo dos pés de itapicurú; acendia o foguinho, coava café. Dava prevenção: de repente, uma laje daquelas, da trempe, podia estalar, rachada se esquentando, com bruto rumor. Tinham queijo, biscoitos, farinha, e carne de porco nevada na banha, numa lata. Todos se assentavam, mesmo no solo, ou em blocos e lascas de pedra, só o Gorgulho como que teimava em ficar de pé, firme em seu próprio todo respeito e escorado em seu alecrim. Rejeitou de tudo, com breves mesuras de cortesia: — “A Deus sejam dadas! E a melhor sustância para Vossências… Nós matulamos inda agorinha…” — falou. — “Estará ele jejuando sua soberba?” — seo Jujuca perguntou, baixo. Mas Pedro Orósio sussurrou esclarecimento, que alguns velhos diziam “nós” assim, que de certo era por eles mesmos e de cada um seu anjo da guarda, por mais de.
Por aí, caso e coisa, e já que ele morava dito numa urubuquara, queriam poder saber a respeito de companhia tal, dos urubús, qual era o regimento desses. — “Arre!” — que não era — ele renuía, vez vezes. Não em sua gruta de vivenda, onde assistia. Urubú nenhum lá não entrava, nenhonde. — “Mas, por perto?” — “Por perto, por perto…” Que é que ele podia fazer, por evitar? Urubú vinha lá, zuretas, se ajuntavam, chegavam por de longe, muitos todos, gostavam mesmos daquelas covocas. Que é que ele ia fazer? Ossenhor diga… Amém que, urubú, de seu de si, não arruma perjuízo p’ra ninguém, mais menos p’ra ele, que não tinha criação nenhuma, tinha só lavouras… E o Gorgulho calcava com a ponta da bengala em terra, e grave, de cabeça, afirmava, afirmava.
Todo mesmo, percebeu como reperguntavam, e botou silêncio, desengraçado com isso, não entendendo como pessôas de tão alta distinção pudessem perder seu interesse, em coisa. E só manso a manso foi que Pedro Orósio e frei Sinfrão conseguiram tirar dele notícia daqueles pássaros, o geral deles.
Guimarães Rosa, in O recado do morro

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