sexta-feira, 21 de agosto de 2020

Hermínia era como a própria vida

Com os olhos ainda fitos na orquídea, emudeceu; o rosto distendeu-se-lhe como um botão que floresce e, de súbito, apareceu um sorriso encantador em seus lábios, ao passo que os olhos permaneceram fixos e alheios por uns instantes. Logo ergueu a cabeça movendo o pega-rapaz, bebeu um gole d'água, deu-se conta de que estávamos jantando e inclinou-se sobre o prato com alegre apetite. Eu escutara palavra por palavra a sua inquietante exposição, pressentira mesmo o significado de sua última ordem antes que ela a houvesse pronunciado e não me assustei ao ouvi-la dizer: você terá de matar-me. Tudo o que disse soou-me convincente e predestinado; aceitei-o e não me opus a isso; e, no entanto, apesar da crua seriedade com que ela o pronunciara, tudo aquilo para mim carecia de realidade, não o podia levar a sério. Uma parte de minha alma bebeu suas palavras e acreditou nelas, mas a outra acudiu conciliadora e veio assegurar-me que também esta prudente, sadia e segura Hermínia tinha seus momentos de devaneio e seus estados nebulosos. Mal terminara de pronunciar suas últimas palavras, um véu de irrealidade e inexistência baixou por sobre elas. Não obstante, eu não podia ir de um pólo ao outro assim com a mesma rapidez com que Hermínia o fazia. — De modo que um dia terei de matá-la? — perguntei, ainda meio em sonho, enquanto ela ria, e trincava o pato com grande satisfação.
Sem dúvida — disse — mas não vamos voltar ao assunto, pois estamos jantando. Seja bonzinho e peça agora um pouco mais de salada para mim. Não está com apetite? Acho que lhe falta ainda aprender aquilo que é natural nas outras pessoas, como por exemplo o prazer de comer. Veja só este peito de pato: quando se separa a carne branca e deliciosa do osso, é como se fosse uma festa! Deve ser para o nosso coração tão apetitoso, emocionante e sensível quanto para um jovem ajudar pela primeira vez a namorada a tirar o casaco. Compreendeu? Não? Você é burrinho mesmo. Aqui: vou lhe dar um pedacinho desta carne para você provar. Assim, abra a boca! Oh, que bobão você é! Fica olhando em torno para ver se estão observando você comer do meu garfo! Não ligue para isso, filho pródigo, não farei um escândalo. Mas pobre daquele que não pode se dar a um prazer sem pedir antes a permissão dos outros. A cena que se passara antes tornava-se cada vez mais irreal. Cada vez mais me era difícil acreditar fossem os mesmos aqueles olhos que um momento antes se mantiveram fixos como numa obsessão de horror. Mas neste particular Hermínia era como a própria vida: não se podia antecipá-la, era sempre o momento presente. Agora comia e levava a sério a carne do pato e a salada, a torta e o licor; fazia deles objetos de alegria e raciocínio, de conversação e fantasia. Quando retiraram os pratos, começou um novo capítulo. Aquela mulher, que tão completamente havia penetrado em mim, que parecia saber mais a respeito da vida do que todos os sábios, continuava menina, continuava vivendo cada minuto com tal arte que havia feito de mim um discípulo incondicional. Quer fosse alta perspicácia quer simples ingenuidade, quem vivia assim tão no presente e sabia apreciar tão cuidadosa e amigavelmente cada florzinha do caminho, estava acima de tudo e a vida nada podia contra ela. E dizer que a alegre criatura, com sua gula infantil, era ao mesmo tempo uma sonhadora e uma histérica, que desejava a morte, ou uma fria calculista, que queria fascinar-me consciente e friamente e fazer de mim seu escravo!... Isto não podia ser. Não, seu abandono ao momento era tão simples e tão completo que estava aberta por inteira ao mesmo tempo a todo acontecimento prazeroso como a todo horror negro e fugitivo que proviesse dos mais profundos recessos de sua alma; e tudo saboreava até o fim. Embora fosse aquela a segunda vez que eu me encontrava com Hermínia, ela tudo sabia a meu respeito e pareceu-me inteiramente impossível que lhe pudesse ocultar qualquer segredo. Talvez não chegasse a compreender por completo a minha vida espiritual; talvez não conseguisse acompanhar-me nas minhas relações com a música, Goethe, Novalis ou Baudelaire. Mas isto também era um ponto discutível; talvez não tivesse mais trabalho nisso do que em relação aos demais. E, afinal de contas, que restara de minha vida espiritual? Não estava toda feita em pedaços? Não perdera o sentido? Mas, quanto ao resto, aos meus problemas pessoais, meus anseios, não tinha dúvida de que ela os compreendia bem. Em breve falaria com ela a propósito do Lobo da Estepe, do tratado, de tudo aquilo que até então só existira para mim e a respeito do que nunca dissera uma palavra a quem quer que fosse. De fato, não consegui resistir à tentação de tocar no assunto imediatamente.
Hermann Hesse, in O Lobo da Estepe

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