Amo
os aforismos. E Nietzsche tinha paixão por eles: “Quem quer que
escreva com sangue e aforismos não deseja ser lido, mas ser sabido
de cor. Nas montanhas, o caminho mais curto é de pico a pico: mas,
para isso, é preciso ter pernas longas. Aforismos deveriam ser picos
– e aqueles a quem são dirigidos também deveriam ser altos e
elevados. O ar é puro, o perigo está próximo e o espírito está
cheio de um sarcasmo jovial: esses dois vão bem, juntos...”.
Aforismos
são relâmpagos: caem do céu com um estampido e racham pedras. Suas
origens são irrelevantes. Dispensam razões. Riem-se dos que tentam
explicá-los. Valem por si mesmos, como se fossem estrelas. “Um bom
aforismo não é consumido pelos milênios, muito embora ele seja
alimento a cada momento: esse é o grande paradoxo da literatura, o
permanente no meio das mudanças, a comida que permanece sempre
gostosa, como sal, ela não perde o sabor...” Veja esse aforismo de
Oscar Wilde. Este, de aparência inocente, produz uma infinidade de
faíscas. “É triste mas é verdade: perdemos a capacidade de dar
nomes suaves às coisas. Os nomes são tudo. Eu nunca me queixo das
coisas. Queixo-me das palavras. É por este motivo que odeio o vulgar
naturalismo na literatura. O homem que chama a enxada de enxada
deveria ser forçado a usá-la. É a única coisa que ele sabe
fazer.” Lido o aforismo há um momento de silêncio. É preciso
pensar, observar o que o aforismo faz conosco, que associações ele
provoca. Aí o pensamento da Lenir deu um pulo. Lembrou-se de algo
que o Guido lhe dissera, rindo: “O fim de uma possível noite de
amor acontece quando a mulher diz ao namorado: ‘Dá licença,
benzinho, preciso urinar...’. Ah! Palavra terrível essa!
Destruidora de romances! Tudo teria sido diferente se ela tivesse
dito: ‘Benzinho, licença, preciso fazer um xixizinho...’.
Xixizinho, que bonitinho, poético, as menininhas fazem xixizinho, a
fantasia da mulher amada fazendo xixizinho, tão íntimo, tão
excitante...”. Mas alto lá! O dicionário diz que fazer xixi e
urinar são sinônimos. Se são sinônimos referem-se à mesma coisa.
São nada. As coisas são os nomes que pomos nelas. Por isso Oscar
Wilde disse que não se queixava das coisas. Queixava-se dos nomes. É
preciso dar nomes suaves às coisas para que elas, as coisas, fiquem
suaves. Urinar não é um nome suave para a dita coisa. Urinar era
aquilo que se fazia no penico, com todos os seus ruídos
metálico-espumantes. Lembro-me, em Minas, eu tinha uns sete anos.
Estavam hospedados em nossa casa o Sigismundo e a Leonina. Tinham
vindo da roça para consultas médicas. Fazia parte das gentilezas da
hospitalidade que os hóspedes fossem providos de penicos. Pois estou
vendo a cena: a Leonina, saindo do quarto pela manhã portando um
penico cheio do líquido amarelo e explicando a todos: “O
Sigismundo urinou muito de noite...”. Urinar é também aquilo que
se faz no laboratório de análises. “Despreze o primeiro jato da
urina”, diz a enfermeira. A palavra mijar, por sua vez, é moradora
dos mictórios ou, como dizem os portugueses, dos urinóis. Xixi,
como a palavra está onomatopaicamente indicando, é parente dos sons
musicais dos violinos. Quem faz xixi está tocando violino. Aprendam
então a usar a palavra certa. Sinônimos não dão certo. Muitas
promissoras relações amorosas acabam por causa de um nome
aparentemente inocente. Cuidado com os nomes!
Rubem
Alves, in Do universo à jabuticaba
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