sexta-feira, 21 de agosto de 2020

Escrita

Amo os aforismos. E Nietzsche tinha paixão por eles: “Quem quer que escreva com sangue e aforismos não deseja ser lido, mas ser sabido de cor. Nas montanhas, o caminho mais curto é de pico a pico: mas, para isso, é preciso ter pernas longas. Aforismos deveriam ser picos – e aqueles a quem são dirigidos também deveriam ser altos e elevados. O ar é puro, o perigo está próximo e o espírito está cheio de um sarcasmo jovial: esses dois vão bem, juntos...”.
Aforismos são relâmpagos: caem do céu com um estampido e racham pedras. Suas origens são irrelevantes. Dispensam razões. Riem-se dos que tentam explicá-los. Valem por si mesmos, como se fossem estrelas. “Um bom aforismo não é consumido pelos milênios, muito embora ele seja alimento a cada momento: esse é o grande paradoxo da literatura, o permanente no meio das mudanças, a comida que permanece sempre gostosa, como sal, ela não perde o sabor...” Veja esse aforismo de Oscar Wilde. Este, de aparência inocente, produz uma infinidade de faíscas. “É triste mas é verdade: perdemos a capacidade de dar nomes suaves às coisas. Os nomes são tudo. Eu nunca me queixo das coisas. Queixo-me das palavras. É por este motivo que odeio o vulgar naturalismo na literatura. O homem que chama a enxada de enxada deveria ser forçado a usá-la. É a única coisa que ele sabe fazer.” Lido o aforismo há um momento de silêncio. É preciso pensar, observar o que o aforismo faz conosco, que associações ele provoca. Aí o pensamento da Lenir deu um pulo. Lembrou-se de algo que o Guido lhe dissera, rindo: “O fim de uma possível noite de amor acontece quando a mulher diz ao namorado: ‘Dá licença, benzinho, preciso urinar...’. Ah! Palavra terrível essa! Destruidora de romances! Tudo teria sido diferente se ela tivesse dito: ‘Benzinho, licença, preciso fazer um xixizinho...’. Xixizinho, que bonitinho, poético, as menininhas fazem xixizinho, a fantasia da mulher amada fazendo xixizinho, tão íntimo, tão excitante...”. Mas alto lá! O dicionário diz que fazer xixi e urinar são sinônimos. Se são sinônimos referem-se à mesma coisa. São nada. As coisas são os nomes que pomos nelas. Por isso Oscar Wilde disse que não se queixava das coisas. Queixava-se dos nomes. É preciso dar nomes suaves às coisas para que elas, as coisas, fiquem suaves. Urinar não é um nome suave para a dita coisa. Urinar era aquilo que se fazia no penico, com todos os seus ruídos metálico-espumantes. Lembro-me, em Minas, eu tinha uns sete anos. Estavam hospedados em nossa casa o Sigismundo e a Leonina. Tinham vindo da roça para consultas médicas. Fazia parte das gentilezas da hospitalidade que os hóspedes fossem providos de penicos. Pois estou vendo a cena: a Leonina, saindo do quarto pela manhã portando um penico cheio do líquido amarelo e explicando a todos: “O Sigismundo urinou muito de noite...”. Urinar é também aquilo que se faz no laboratório de análises. “Despreze o primeiro jato da urina”, diz a enfermeira. A palavra mijar, por sua vez, é moradora dos mictórios ou, como dizem os portugueses, dos urinóis. Xixi, como a palavra está onomatopaicamente indicando, é parente dos sons musicais dos violinos. Quem faz xixi está tocando violino. Aprendam então a usar a palavra certa. Sinônimos não dão certo. Muitas promissoras relações amorosas acabam por causa de um nome aparentemente inocente. Cuidado com os nomes!
Rubem Alves, in Do universo à jabuticaba

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