quinta-feira, 6 de agosto de 2020

Conto azul

A morte é tão antiquada
que sempre entra pela porta da rua
e sobe só pelas escadas.
Mandei pensando nisso fazer uma escada de caracol
para que ela chegasse tonta ao meu quarto
coisa de rir!
Ela se deixaria então cair na primeira cadeira,
arfando...
Mas quem foi que disse que ela tem cara de caveira?
É uma simpática vovozinha.
Sorrio-lhe, do meu leito,
embora me sinta um pouco triste...
porque é bom estar para morrer
da mesma forma que é bom estar numa sala de espera
folheando revistas velhas...
É isto! Folheio essas estampas
de minha memória,
meio desbotadas...
Súbito, um lábio vermelho desenha-se entre elas
como se acabasse de ser traçado a batom!
O resto, é tudo no mesmo tom.
Espio, para variar, o azul do céu lá fora,
para onde estarão olhando outros que em breve terão alta.
As visitas do médico têm sido cada vez mais espaçadas e mais rápidas.
E sinto que em breve ele se cruzará no caminho com o padre:
É a sua vez, agora!”
Qual! isso seria melodramático
que nem novela de tevê...
Na sua cadeira
a morte espera, paciente
(ela não é nenhuma assassina).
Ela deveria fazer tricô...
mas para quê? mas para quem?
Agora, uma asa paira no azul.
Paira no azul...
Não atribuas a isso qualquer intenção simbólica:
tudo é tão simples...
Aliás, eu me achava tão longe...
O que sempre salvou a morte (e a vida) da gente
é pensar em outras bobagens…
Mário Quintana

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