Frequentemente
associamos a ciência aos valores do secularismo e da tolerância. Se
é assim, a Europa moderna em seu início seria o último lugar no
qual se poderia esperar que houvesse uma revolução científica. A
Europa na época de Colombo, Copérnico e Newton tinha a mais alta
concentração de fanatismo religioso no mundo e o mais baixo nível
de tolerância. Os luminares da Revolução Científica viviam numa
sociedade que havia expulsado judeus e muçulmanos e queimado hereges
indiscriminadamente, que via uma bruxa em cada mulher idosa que
gostava de gatos e que começava uma nova guerra religiosa a cada lua
cheia. Se você tivesse viajado para o Cairo ou para Istambul por
volta de 1600, encontraria metrópoles multiculturais e tolerantes,
onde sunitas, xiitas, cristãos ortodoxos, católicos, armênios,
coptas, judeus e até mesmo hindus ocasionais viviam lado a lado em
relativa harmonia. Embora tivessem seu quinhão de desentendimentos e
tumultos, e embora o Império Otomano rotineiramente discriminasse
pessoas por razões religiosas, era um paraíso comparado com a
Europa.
Se
depois você viajasse para as contemporâneas Paris ou Londres,
encontraria cidades banhadas de extremismo religioso, onde somente os
que pertenciam às seitas dominantes podiam viver. Em Londres,
matavam-se católicos, em Paris matavam-se protestantes, os judeus
havia muito tinham sido expulsos, e ninguém em juízo perfeito
sonharia em permitir a entrada de muçulmanos. Assim mesmo, a
Revolução Científica começou em Londres e Paris, e não no Cairo
ou em Istambul.
Costuma-se
descrever a história da era moderna como uma luta entre ciência e
religião. Na teoria, tanto a ciência como a religião estão
interessadas acima de tudo na verdade, porém, como cada uma sustenta
uma verdade diferente, estariam fadadas a se chocar. Na verdade, nem
a ciência nem a religião se importam muito com a verdade, daí a
facilidade com que podem entrar em acordo, coexistir e até mesmo
cooperar.
A
religião está interessada acima de tudo em ordem. Tem como objetivo
criar e manter uma estrutura social. A ciência está interessada
acima de tudo no poder. Por meio da pesquisa, tem como objetivo
adquirir o poder de curar doenças, fazer guerras e produzir
alimento. Como indivíduos, cientistas e sacerdotes podem atribuir
imensa importância à verdade, mas, como instituições coletivas, a
ciência e a religião preferem respectivamente ordem e poder acima
da verdade. Por isso eles são bons companheiros. A busca inabalável
da verdade é uma jornada espiritual, que raramente pode ficar
confinada aos estamentos religiosos ou científicos.
De
acordo com isso, seria muito mais correto considerar a história
moderna como o processo de formulação de um acordo entre a ciência
e uma religião específica — ou seja, o humanismo. A sociedade
moderna acredita em dogmas humanistas e usa a ciência não para
poder questioná-los, e sim, ao contrário, para implementá-los. No
século XXI , é improvável que os dogmas humanistas sejam
substituídos por teorias puramente científicas. No entanto, a
aliança que conecta ciência e humanismo pode muito bem desmoronar e
dar lugar a um tipo muito diferente de trato, entre a ciência e
alguma nova religião pós-humanista.
Yuval
Noah Harari, in Homo Deus: uma breve história do amanhã
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