segunda-feira, 3 de agosto de 2020

Caça às bruxas

Frequentemente associamos a ciência aos valores do secularismo e da tolerância. Se é assim, a Europa moderna em seu início seria o último lugar no qual se poderia esperar que houvesse uma revolução científica. A Europa na época de Colombo, Copérnico e Newton tinha a mais alta concentração de fanatismo religioso no mundo e o mais baixo nível de tolerância. Os luminares da Revolução Científica viviam numa sociedade que havia expulsado judeus e muçulmanos e queimado hereges indiscriminadamente, que via uma bruxa em cada mulher idosa que gostava de gatos e que começava uma nova guerra religiosa a cada lua cheia. Se você tivesse viajado para o Cairo ou para Istambul por volta de 1600, encontraria metrópoles multiculturais e tolerantes, onde sunitas, xiitas, cristãos ortodoxos, católicos, armênios, coptas, judeus e até mesmo hindus ocasionais viviam lado a lado em relativa harmonia. Embora tivessem seu quinhão de desentendimentos e tumultos, e embora o Império Otomano rotineiramente discriminasse pessoas por razões religiosas, era um paraíso comparado com a Europa.
Se depois você viajasse para as contemporâneas Paris ou Londres, encontraria cidades banhadas de extremismo religioso, onde somente os que pertenciam às seitas dominantes podiam viver. Em Londres, matavam-se católicos, em Paris matavam-se protestantes, os judeus havia muito tinham sido expulsos, e ninguém em juízo perfeito sonharia em permitir a entrada de muçulmanos. Assim mesmo, a Revolução Científica começou em Londres e Paris, e não no Cairo ou em Istambul.
Costuma-se descrever a história da era moderna como uma luta entre ciência e religião. Na teoria, tanto a ciência como a religião estão interessadas acima de tudo na verdade, porém, como cada uma sustenta uma verdade diferente, estariam fadadas a se chocar. Na verdade, nem a ciência nem a religião se importam muito com a verdade, daí a facilidade com que podem entrar em acordo, coexistir e até mesmo cooperar.
A religião está interessada acima de tudo em ordem. Tem como objetivo criar e manter uma estrutura social. A ciência está interessada acima de tudo no poder. Por meio da pesquisa, tem como objetivo adquirir o poder de curar doenças, fazer guerras e produzir alimento. Como indivíduos, cientistas e sacerdotes podem atribuir imensa importância à verdade, mas, como instituições coletivas, a ciência e a religião preferem respectivamente ordem e poder acima da verdade. Por isso eles são bons companheiros. A busca inabalável da verdade é uma jornada espiritual, que raramente pode ficar confinada aos estamentos religiosos ou científicos.
De acordo com isso, seria muito mais correto considerar a história moderna como o processo de formulação de um acordo entre a ciência e uma religião específica — ou seja, o humanismo. A sociedade moderna acredita em dogmas humanistas e usa a ciência não para poder questioná-los, e sim, ao contrário, para implementá-los. No século XXI , é improvável que os dogmas humanistas sejam substituídos por teorias puramente científicas. No entanto, a aliança que conecta ciência e humanismo pode muito bem desmoronar e dar lugar a um tipo muito diferente de trato, entre a ciência e alguma nova religião pós-humanista.
Yuval Noah Harari, in Homo Deus: uma breve história do amanhã

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