Foi
no primeiro dia de aula do Jardim de Infância do Grupo Escolar João
Barbalho, na Rua Formosa, em Recife, que encontrei Leopoldo. E no dia
seguinte já éramos os dois impossíveis da turma. Passamos o ano
ouvindo nossos dois nomes gritados pela professora – mas, não sei
por quê, ela gostava de nós, apesar do trabalho que lhe dávamos.
Separou nossos bancos inutilmente, pois Leopoldo e eu falávamos lá
o que falávamos em voz alta, o que piorava a disciplina da classe.
Depois passamos para o primeiro ano primário. E para a nova
professora também éramos os dois alunos impossíveis. Tirávamos
boas notas, menos em comportamento.
Até
que um dia apareceu na classe a imponente diretora que falou baixo
com a professora. Vou contar logo o que realmente era, antes de
narrar o que realmente senti. Tratava-se apenas de fazer o
levantamento do nível mental das crianças do estado, por meio de
testes. Mas quando as crianças eram, na opinião da professora, mais
vivas , faziam o teste em ano superior, porque no próprio ano seria
fácil demais. Tratava-se apenas disso.
Mas
depois que a diretora saiu, a professora disse: Leopoldo e Clarice
vão fazer uma espécie de exame no quarto ano. E levei uma das dores
de minha vida. Ela não explicou mais nada. Mas os nossos dois nomes
de novo citados juntos revelaram-me que chegara a hora da punição
divina. Eu, apesar de alegre, era muito chorona, e comecei a soluçar
baixinho. Leopoldo imediatamente passou a me consolar, a explicar que
não era nada. Inútil: eu era a culpada nata, aquela que nascera com
o pecado mortal.
E
de repente eis-nos os dois na sala do quarto ano primário, com
crianças grandalhonas, professora desconhecida e sala desconhecida.
Meu pavor cresceu, as lágrimas me escorriam pelo rosto, pelo peito.
Sentaram-nos, Leopoldo e eu, um ao lado do outro. Foram distribuídas
folhas de papel impresso, ao mesmo tempo que a severa professora
dizia essa coisa incompreensível:
– Até
eu dizer agora!, não olhem para o papel. Só comecem a ler
quando eu disser. E no instante em que eu disser chega!, vocês
param no ponto em que estiverem.
Recebemos
as folhas. Leopoldo tranquilo, eu em pânico maior ainda. Além do
mais eu nem sabia o que era exame, ainda não tinha feito nenhum. E
quando ela disse de repente “agora”, meus soluços abafados
aumentaram. Leopoldo – além de meu pai – foi o meu primeiro
protetor masculino, e tão bem o fez que me deixou para o resto da
vida aceitando e querendo a proteção masculina – Leopoldo mandou
eu me acalmar, ler as perguntas e responder o que soubesse. Inútil:
a essa hora meu papel já estava todo ensopado de lágrimas e, quando
eu tentava ler, as lágrimas me impediam de enxergar. Não escrevi
uma só palavra, chorava e sofria como só vim a sofrer mais tarde e
por outros motivos. Leopoldo, além de escrever, ocupava-se de mim.
Quando
a professora gritou “Chega!”, minhas lágrimas ainda não
chegavam. Ela me chamou, eu não expliquei nada, ela me explicou sem
severidade que as crianças mais vivas de uma turma etc. Só fui
entender dias depois, quando sarei. Nunca soube do resultado do
teste, acho que nem era para sabermos.
No
terceiro ano primário, mudei de escola. E no exame de admissão para
o Ginásio Pernambucano, logo de entrada, reencontrei Leopoldo, e foi
como se não nos tivéssemos separado. Ele continuou a me proteger.
Lembro-me de que uma vez usei uma palavra qualquer de gíria, cuja
origem maliciosa eu ignorava. E Leopoldo: “Não diga mais essa
palavra.” “Por quê?” “Mais tarde você vai entender”,
disse-me ele.
No
terceiro ano de ginásio, minha família mudou-se para o Rio. Só vi
Leopoldo mais uma vez na vida, por acaso, na rua, e como adultos.
Passáramos agora a ser dois tímidos que viajaram na mesma condução
sem quase pronunciar uma palavra. Éramos impossíveis de outro modo.
Leopoldo
é Leopoldo Nachbin. Eu soube que no primeiro ano de engenharia
resolveu um dos teoremas considerados insolúveis desde a mais alta
Antiguidade. E que imediatamente foi chamado à Sorbonne para
explicar o processo. É um dos maiores matemáticos que hoje existem
no mundo.
Quanto
a mim, choro menos.
Clarice
Lispector, in Todas as crônicas
Amei muito top
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