segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Ahab e o Carpinteiro

O CONVÉS – PRIMEIRA VIGÍLIA NOTURNA

[O carpinteiro está de pé diante da sua bancada, à luz de duas lamparinas, ocupado em afilar um pedaço de marfim, este firmemente preso à bancada. Placas de marfim, tiras de couro, almofadas, parafusos e instrumentos de vários tipos estão espalhados pela bancada. No primeiro plano, vê-se a chama vermelha da forja, onde trabalha o ferreiro.]

Maldita lima e maldito osso! O que deveria ser mole é duro, e o que deveria ser duro é mole. É sempre assim conosco, que limamos maxilares e tíbias velhas. Vamos tentar de novo [espirra]. Sim, assim está melhor [espirra]. Puxa, esse pó de osso é [espirra] –, é mesmo [espirra] –, santo Deus, não me deixa falar! Isso é o que velho recebe por trabalhar com madeira morta. Serre uma árvore viva, você não vê tanta poeira; ampute um osso vivo, e você também não vê [espirra]. Vamos, vamos, velho Smut, ajude e faça logo a haste e a fivela; logo estarei pronto para elas. Que sorte [espirra] não precisar de rótula; poderia confundir um pouco; mas uma simples tíbia – é tão fácil quanto fazer uma vara de lúpulo; mas queria dar um bom acabamento. Tempo, tempo; se apenas eu tivesse tempo, ela ficaria tão bem feita quanto qualquer uma que tenha se prestado [espirra] à reverência a uma dama no salão. Não se compararia com aquelas pernas de pele de veado e panturrilhas que vi em vitrines de lojas. Elas absorvem água; e, claro, também ficam reumáticas, e precisam ser tratadas por um médico [espirra] com banhos e loções, como pernas vivas. Aí está; antes de serrá-la, devo chamar sua velha Potestade para ver se o comprimento está certo; curta demais, parece. Ah! Eis o salto; estamos com sorte; lá vem ele ou algum outro, é certo.

AHAB [avançando]

[Durante a cena seguinte o CARPINTEIRO continua a espirrar por vezes.]
Pois bem, criador de homens!”
Bem na hora, senhor. Se o capitão permitir, marcarei o comprimento agora. Deixe-me tirar as medidas, senhor.”
Tirar as medidas de uma perna! Bom! Não é a primeira vez. Mãos à obra! Assim; deixa o dedo assim. Tens aqui um torno excelente, carpinteiro; deixa-me ver se prende bem. Com efeito, isso agarra bem.”
Oh, senhor, pode quebrar um osso – cuidado, cuidado!”
Não tenhas medo; gosto de um bom aperto; gosto de sentir alguma coisa segura neste mundo vacilante, homem. O que o Prometeu está fazendo ali? – quero dizer, o ferreiro – o que está fazendo?”
Deve estar forjando a fivela agora, senhor.”
Certo. É uma parceria; ele faz a parte dos músculos. Está fazendo uma terrível labareda vermelha ali!”
Sim, senhor; ele necessita do calor branco para esse trabalho delicado.”
Hum-hum. Sem dúvida. Parece-me agora realmente significativo que o velho Grego, Prometeu, que ao que se diz criou os homens, tenha sido um ferreiro e que os tenha animado com o fogo; pois o que é feito no fogo, deve justamente pertencer ao fogo; e assim o inferno é provável. Como voa a fuligem! Deve ter sido com esses resíduos que o Grego fez os Africanos. Carpinteiro, quando ele terminar a fivela, diz-lhe que forje um par de omoplatas de aço; há um mascate a bordo com um fardo esmagador.”
Senhor?”
Espera; quando Prometeu for fazê-lo, encomendarei um homem completo de acordo com um modelo desejável. Em primeiro lugar, altura de cinquenta pés, descalços; depois, o peito modelado segundo o Túnel do Tâmisa; depois, pernas com raízes, para ficar num só lugar; depois, braços com três pés de pulso; sem coração algum, fronte de bronze e um quarto de acre de excelente cérebro; e espera – encomendarei olhos para ver o exterior? Não, mas coloca uma clarabóia no topo da cabeça para iluminar o interior. É isso, anota a encomenda e vai.” “Mas o que é que ele está dizendo e com quem está falando, gostaria de saber. Devo ficar aqui? [à parte]”
Não passa de arquitetura medíocre fazer uma cúpula sem abertura; eis uma. Não, não, não; preciso de uma lamparina.”
Oh, oh! Era isso, hein? Aqui estão duas, senhor; a mim basta uma.”
Por que estás a me apontar esse pega-ladrão à cara, homem? Não sabes que apontar uma luz é pior do que apresentar armas?”
Pensei que o senhor estivesse falando com o carpinteiro.”
Carpinteiro? Pois bem, é isso – mas não; – tens aqui um tipo de trabalho muito limpo, assaz cavalheiresco, carpinteiro; – ou preferirias trabalhar com argila?”
Senhor? – Argila? Argila, senhor? É barro; deixamos o barro para os coveiros, senhor.”
O sujeito é um ímpio! Por que estás espirrando?”
O osso faz muito pó, senhor.”
Que isso te sirva de lição, portanto; e, quando estiveres morto, não deixes que te enterrem sob o nariz dos vivos.”
Senhor? – oh! ah! – acho que sim; – oh, meu Deus!”
Olha, carpinteiro, ouso dizer que te consideras um trabalhador que faz o trabalho como se deve, não é? Bem, então, não seria honrar o teu trabalho se, quando eu estiver com a perna que estás a fazer, eu sentisse ainda uma outra perna no mesmo lugar; isto é, carpinteiro, minha velha perna perdida, a de carne e osso, em suma. Não poderias fazer desaparecer aquele velho Adão?”
É verdade, senhor, começo a entender alguma coisa agora. Sim, ouvi falar qualquer coisa curiosa a esse respeito, senhor; como um homem desmastreado não perde nunca inteiramente o sentimento de seu velho mastro, mas por vezes sente um formigamento. Posso humildemente perguntar-lhe se é verdade, senhor?”
É assim, homem. Olha, põe tua perna viva aqui no lugar onde já esteve a minha; agora só há uma perna visível para os olhos, e no entanto são duas para a alma. Onde sentes formigar a vida; ali, nesse exato lugar, sem um milímetro de erro, eu também sinto. É um enigma?”
Eu chamaria humildemente de adivinhação, senhor.”
Cala-te, então. Como sabes se alguma coisa inteira, viva e pensante, não se encontra, invisível e impenetrável, exatamente onde estás agora; sim, e encontra-se aí a despeito de ti? Em tuas horas mais solitárias, talvez, não temes que te ouçam? Espera, não fales! E se eu sinto ainda o espasmo de minha perna esmagada, embora há muito apodrecida, por que não podes tu, carpinteiro, sentir para sempre as dores terríveis do inferno mesmo sem um corpo? Ah!”
Meu Deus! É verdade, senhor, se a coisa é assim, devo refazer todos os meus cálculos; mas não creio ter medido tão curto, senhor.”
Olha aqui, os palermas nunca deveriam dar por certas as premissas – Dentro de quanto tempo a perna ficará pronta?”
Talvez uma hora, senhor.”
Ao trabalho, então, e traze-a para mim [volta-se para ir embora]. Oh, Vida! Aqui estou, orgulhoso como um deus Grego, e contudo dependo de um palerma para ter um osso para ficar de pé! Maldita seja a rede mortal de débitos que não se livrará dos livros-caixa. Eu seria livre como o ar; e estou preso aos papéis do mundo inteiro. Eu sou tão rico que poderia disputar lance a lance com os mais ricos pretorianos o leilão do Império Romano (que era o mundo) e todavia trago dívidas pela carne da língua com a qual me vanglorio. Pelos céus! Tenho de encontrar um crisol onde possa dissolver a mim próprio até que não reste mais do que uma pequena e concisa vértebra. Assim!”

CARPINTEIRO
[Retomando o trabalho]
Bem, bem, bem! Stubb conhece-o melhor do que todos, e Stubb sempre diz que ele é esquisito; não diz nada além daquela palavrinha que basta, esquisito; ele é esquisito, diz Stubb; ele é esquisito – esquisito, esquisito; e fica dizendo o tempo todo para o senhor Starbuck – esquisito, senhor – esquisito, esquisito, muito esquisito. E cá está a perna dele! Sim, agora que penso nisso, cá está a companheira de leito dele! Ele tem um bastão de maxilar de baleia por esposa! E isso é a perna dele; ele vai se apoiar nisso. Que foi aquilo sobre uma perna estar em três lugares, e todos os três lugares estarem no inferno – que foi aquilo? Oh! Não me surpreende que ele me olhasse com tanto desprezo! Às vezes tenho umas ideias estranhas, dizem; mas isso é muito raro. Pois um homem velho e pequeno como eu não deveria nunca atravessar águas profundas com capitães altos, que parecem garças; a água bate no queixo rapidinho e todos clamam por botes salva-vidas. E aqui está, a perna da garça! Longa e fina, claro! Ora, para a maioria das pessoas duas pernas duram uma vida toda, pois talvez as tratem com cuidado, como uma velha senhora de bom coração trata seus velhos e fortes cavalos de carruagem. Mas Ahab; ah, ele é um cocheiro difícil. Veja, levou uma perna à morte, e a outra ele estropiou para toda a vida, e agora usa pernas de osso aos montes. Ei, você aí, Smut! Me dê uma mão aqui com esses parafusos e vamos terminar antes que o sujeito da ressurreição chegue com sua trombeta chamando todas as pernas, verdadeiras ou falsas, como os homens das cervejarias recolhem os barris de cerveja usados, para enchê-los de novo. Que perna, esta! Parece uma perna viva de verdade, limada até o talo; ele vai se apoiar nela amanhã; ganhará as alturas. Puxa! Ia me esquecendo da plaquinha oval de marfim polido, onde ele calcula a latitude. Assim, assim; agora o cinzel, a lima e a lixa!”
Herman Melville, in Moby Dick

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