sexta-feira, 7 de agosto de 2020

Agora é que são elas / capítulo 20



1

Com Norma Propp, fui muitas vezes até a casa de campo que o velho tinha, uma bosta de lugar, aquela velha chácara que deve ter sido próspera uns trinta anos atrás.
Agora, só não desmorona porque tem um casal de velhinhos que moram por ali por perto e de vez em quando vão lá tirar as teias de aranha, acender o fogo e dizer: meu deus, olha só como isso aqui está!
Nas muitas duas vezes que fui lá com Norma, ficamos, uma vez, uma tarde, na última, uma tarde e uma noite, só nós dois.
Na primeira tarde, Norma se comportou como se fosse minha irmã. Riu muito, me elogiou várias vezes, até me deu um beijo. Mas eu podia ver, ela estava nervosa, alegria elétrica demais para ser apenas isso.
Puxei o assunto várias vezes para nossa história. Mas ela sempre tinha alguma outra coisa para observar:
Olha lá aquela cerca. Não parece um M deitado?
Tentei descobrir o que ela achava que era viver com alguém. Me mostrou a casca oca de uma cigarra que tinha apanhado no pessegueiro em frente da casa.
A segunda vez foi bem diferente.

2

Chegamos no topo da escada, Norma e eu, lá embaixo a nossos pés, a festa fervendo como uma fogueira.
Ninguém jamais desceu uma escada como Norma. Em sua descida, cada degrau era um triunfo, cada passo um orgasmo, cada momento um record. E assim descemos.
Todo mundo estava ali para ouvi-la cantar. Então ela, disse:
Antes de cantar, quero anunciar meu noivado.
Na sala, leques voaram como pavões por entre um mar de murmúrios. Deve ter se gastado em um meio minuto todo o estoque de Ós que daria para abastecer uma língua indo-europeia por um ano.

3

A segunda vez foi bem diferente.
Norma nem me olhou pra cara. Ficava assim, olhando assim pra qualquer coisa, como se não estivesse nem ali, como se estivesse com saudades de um outro planeta.
Pra que ter vindo se era pra ficar com essa cara?, perguntei.
Ah, ela perguntava, pra lá de ausente, vinda do além.
Durante o jantar, a gente comeu em silêncio, eu, uma gota de ácido sulfúrico na superfície fosforescente dos cri-cris dos grilos. De vez em quando, comentava:
O macarrão passou do ponto.
E eu discordava:
Não, acho que chover não vai.
De noite, me perguntou onde eu queria dormir. Com você, é claro, eu respondi. É por isso que eu adoro você, ela falou. Mas faz tua cama aí nesse canto, eu durmo aqui no sofá mesmo, legal pra você?
Norma, que é que está acontecendo? Que história essa? Vamos conversar um pouco. Onde é que foi parar aquilo tudo que havia?
Tudo aquilo, o quê?
Ora, você sabe, não se faça de boba.
Você deve estar louco. Nunca houve nada entre nós.
Essa não, Norma. Invente outra.
Se houve, prove.
Eu não podia provar nada. A única evidência que eu tinha de que TINHA HAVIDO ALGUMA COISA ENTRE NÓS, esse nó no peito, essa sensação de que tinham colocado uma rolha no gargalo do meu coração, e essa vontade de apertar seu pescoço devagarzinho até fazer o cérebro sair pelas orelhas que nem bosta num moedor de carne. Ou bater nela com um maço de notas de mil, até ouvir ela gritar Bernardo. Uma navalha, por favor.

4

Vai mesmo casar com ela?
Acho que sim, tudo foi tão súbito.
Pena. Eu tinha uma coisa pra te dizer.
Ela suspirou.
Os seres gasosos dos pantanais de Canopus acabam de ser atingidos pela ptyx, epidemia desconhecida, de origem extragaláctica. Os warhoos devem ter violado o tratado. Eu avisei, eu avisei!
Qual tratado?
O de nunca usar armas transfísicas.
E o que é que isso tem a ver com meu casamento com Norma?
Nada, se não tem importância pra você. De qualquer forma, você não vai poder mesmo casar com ela, não é mesmo?
Por que não, qual é?
Ora, você sabe. Nós vimos. Ela está morta.

5

Ao diabo com os seres gasosos de Canopus. Eu podia ser atingido por um tiro, a qualquer momento, a lembrança me atingiu com a velocidade de uma bala.
E voltei para lá, donde nunca deveria ter saído. A festa era minha segurança. E meu noivado com Norma. Não importa que meu nome não estivesse entre os convidados. Eu era a alma da festa.

6

O narrador é um fantasma, ele mal-assombra as histórias, elas poderiam passar muito bem sem ele.
Elas, as histórias. Elas, palavras. Elas, as estrelas. Elas quem?
Para Propp, as histórias se faziam sozinhas, por geração espontânea, gracinha, sem precisar de intervenção humana. Chego a desconfiar que imaginasse, que existissem, platonicamente, num universo anterior, maior e superior ao nosso. E que se materializavam, seres gasosos dos pantanais de Canopus.
Só que com a filha dele não era bem assim. Nosso romance não ia pra frente, sem intervenção humana. Humana quer dizer minha. E, afinal de contas, o que queria dizer “ir para a frente”? Pode ser que lá na frente não tenha nada. Ou tinha?
Paulo Leminski, in Agora é que são elas

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