1
Com
Norma Propp, fui muitas vezes até a casa de campo que o velho tinha,
uma bosta de lugar, aquela velha chácara que deve ter sido próspera
uns trinta anos atrás.
Agora,
só não desmorona porque tem um casal de velhinhos que moram por ali
por perto e de vez em quando vão lá tirar as teias de aranha,
acender o fogo e dizer: meu deus, olha só como isso aqui está!
Nas
muitas duas vezes que fui lá com Norma, ficamos, uma vez, uma tarde,
na última, uma tarde e uma noite, só nós dois.
Na
primeira tarde, Norma se comportou como se fosse minha irmã. Riu
muito, me elogiou várias vezes, até me deu um beijo. Mas eu podia
ver, ela estava nervosa, alegria elétrica demais para ser apenas
isso.
Puxei
o assunto várias vezes para nossa história. Mas ela sempre tinha
alguma outra coisa para observar:
— Olha
lá aquela cerca. Não parece um M deitado?
Tentei
descobrir o que ela achava que era viver com alguém. Me mostrou a
casca oca de uma cigarra que tinha apanhado no pessegueiro em frente
da casa.
A
segunda vez foi bem diferente.
2
Chegamos
no topo da escada, Norma e eu, lá embaixo a nossos pés, a festa
fervendo como uma fogueira.
Ninguém
jamais desceu uma escada como Norma. Em sua descida, cada degrau era
um triunfo, cada passo um orgasmo, cada momento um record. E assim
descemos.
Todo
mundo estava ali para ouvi-la cantar. Então ela, disse:
— Antes
de cantar, quero anunciar meu noivado.
Na
sala, leques voaram como pavões por entre um mar de murmúrios. Deve
ter se gastado em um meio minuto todo o estoque de Ós que daria para
abastecer uma língua indo-europeia por um ano.
3
A
segunda vez foi bem diferente.
Norma
nem me olhou pra cara. Ficava assim, olhando assim pra qualquer
coisa, como se não estivesse nem ali, como se estivesse com saudades
de um outro planeta.
— Pra
que ter vindo se era pra ficar com essa cara?, perguntei.
— Ah,
ela perguntava, pra lá de ausente, vinda do além.
Durante
o jantar, a gente comeu em silêncio, eu, uma gota de ácido
sulfúrico na superfície fosforescente dos cri-cris dos grilos. De
vez em quando, comentava:
— O
macarrão passou do ponto.
E
eu discordava:
— Não,
acho que chover não vai.
De
noite, me perguntou onde eu queria dormir. Com você, é claro, eu
respondi. É por isso que eu adoro você, ela falou. Mas faz tua cama
aí nesse canto, eu durmo aqui no sofá mesmo, legal pra você?
— Norma,
que é que está acontecendo? Que história essa? Vamos conversar um
pouco. Onde é que foi parar aquilo tudo que havia?
— Tudo
aquilo, o quê?
— Ora,
você sabe, não se faça de boba.
— Você
deve estar louco. Nunca houve nada entre nós.
— Essa
não, Norma. Invente outra.
— Se
houve, prove.
Eu
não podia provar nada. A única evidência que eu tinha de que TINHA
HAVIDO ALGUMA COISA ENTRE NÓS, esse nó no peito, essa sensação de
que tinham colocado uma rolha no gargalo do meu coração, e essa
vontade de apertar seu pescoço devagarzinho até fazer o cérebro
sair pelas orelhas que nem bosta num moedor de carne. Ou bater nela
com um maço de notas de mil, até ouvir ela gritar Bernardo. Uma
navalha, por favor.
4
— Vai
mesmo casar com ela?
— Acho
que sim, tudo foi tão súbito.
— Pena.
Eu tinha uma coisa pra te dizer.
Ela
suspirou.
— Os
seres gasosos dos pantanais de Canopus acabam de ser atingidos pela
ptyx, epidemia desconhecida, de origem extragaláctica. Os warhoos
devem ter violado o tratado. Eu avisei, eu avisei!
— Qual
tratado?
— O
de nunca usar armas transfísicas.
— E
o que é que isso tem a ver com meu casamento com Norma?
— Nada,
se não tem importância pra você. De qualquer forma, você não vai
poder mesmo casar com ela, não é mesmo?
— Por
que não, qual é?
— Ora,
você sabe. Nós vimos. Ela está morta.
5
Ao
diabo com os seres gasosos de Canopus. Eu podia ser atingido por um
tiro, a qualquer momento, a lembrança me atingiu com a velocidade de
uma bala.
E
voltei para lá, donde nunca deveria ter saído. A festa era minha
segurança. E meu noivado com Norma. Não importa que meu nome não
estivesse entre os convidados. Eu era a alma da festa.
6
— O
narrador é um fantasma, ele mal-assombra as histórias, elas
poderiam passar muito bem sem ele.
Elas,
as histórias. Elas, palavras. Elas, as estrelas. Elas quem?
Para
Propp, as histórias se faziam sozinhas, por geração espontânea,
gracinha, sem precisar de intervenção humana. Chego a desconfiar
que imaginasse, que existissem, platonicamente, num universo
anterior, maior e superior ao nosso. E que se materializavam, seres
gasosos dos pantanais de Canopus.
Só
que com a filha dele não era bem assim. Nosso romance não ia pra
frente, sem intervenção humana. Humana quer dizer minha. E,
afinal de contas, o que queria dizer “ir para a frente”? Pode ser
que lá na frente não tenha nada. Ou tinha?
Paulo
Leminski, in Agora é que são elas
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