As
pressões evolutivas acostumaram os humanos a ver o mundo como se
fosse uma torta estática. Se alguém consegue uma fatia maior da
torta, caberá a alguém inevitavelmente uma fatia menor. Uma família
ou uma cidade específica podem prosperar, mas o gênero humano como
um todo não vai produzir mais do que produz hoje. De acordo com
isso, religiões tradicionais, como o cristianismo e o islamismo,
buscam maneiras de resolver os problemas da humanidade com a ajuda
dos recursos disponíveis, ou redistribuindo a torta, ou prometendo
uma torta no céu.
A
modernidade, em contrapartida, baseia-se na firme crença de que o
crescimento econômico não só é possível como é absolutamente
essencial. Preces, boas ações e meditação podem ser
reconfortantes e inspiradoras, contudo problemas como a fome, a peste
e a guerra só podem ser resolvidos por meio do crescimento. Esse
dogma fundamental pode ser resumido numa ideia única e simples: “Se
você tem um problema, provavelmente está precisando de mais coisas,
e, para ter mais coisas, tem de produzir mais coisas”.
Políticos
e economistas modernos insistem em que o crescimento é vital por
três razões principais. Primeiro, quando se produz mais, podemos
consumir mais, elevar nosso padrão de vida e supostamente usufruir
de uma vida mais feliz. Segundo, à medida que o gênero humano se
multiplica, é preciso que a economia cresça para que ao menos
continuemos como estamos. Por exemplo, na Índia, o crescimento
populacional é de 1,2% ao ano. Isso quer dizer que, se a economia
indiana não crescer todo ano ao menos 1,2%, o desemprego vai
aumentar, os salários vão cair e o padrão de vida médio vai
diminuir. Terceiro, mesmo que os indianos parassem de se multiplicar,
e mesmo que a classe média indiana se satisfizesse com o padrão
atual de vida, o que faria a Índia no que concerne a suas centenas
de milhões de cidadãos que vivem na pobreza? Se a economia não
crescer, e consequentemente a torta permanecer do mesmo tamanho, só
se poderia dar mais aos pobres tirando algo dos ricos. Isso obrigaria
a que se fizessem escolhas muito duras, e provavelmente causaria
muito ressentimento e até violência. Para evitar tais escolhas, o
ressentimento e a violência, precisa-se de uma torta maior.
A
modernidade transformou essa ideia de “mais coisas” numa panaceia
aplicável a quase todos os problema públicos e privados, desde o
fundamentalismo islâmico, passando pelo autoritarismo do Terceiro
Mundo, até a um casamento fracassado. Se ao menos países como o
Paquistão e o Egito pudessem manter uma taxa de crescimento
saudável, seus cidadãos viriam a usufruir dos benefícios de carros
particulares e geladeiras abarrotadas, e seguiriam o caminho da
prosperidade terrena em vez de irem atrás do flautista mágico
islâmico. Da mesma forma, o crescimento econômico em países como o
Congo e Myanmar produziria uma classe média próspera, que é o
alicerce da democracia liberal. E, no caso de casais decepcionados, o
casamento seria salvo se tivessem uma casa maior (sem a necessidade
de dividir um cômodo apertado), comprassem uma máquina de lavar
pratos (de modo que parariam de discutir de quem é a vez de lavar a
louça) e pudessem frequentar dispendiosas sessões de terapia duas
vezes por semana.
O
crescimento econômico tornou-se a junção crucial onde quase todas
as religiões, ideologias e movimentos modernos vão se encontrar. A
União Soviética, com seu megalomaníaco Plano Quinquenal, era tão
obcecada pelo crescimento quanto o mais impiedoso representante do
capitalismo predador americano. Assim como cristãos e muçulmanos
acreditam no paraíso, e só discordam quanto à maneira de chegar
lá, durante a Guerra Fria, tanto capitalistas como comunistas
acreditavam em criar o paraíso na terra mediante o crescimento
econômico e só discordavam quanto ao método exato.
Hoje
em dia, revivalistas hindus, muçulmanos devotos, nacionalistas
japoneses e comunistas chineses podem declarar sua adesão a valores
e objetivos muito diferentes, mas todos eles acreditam que o
crescimento econômico é a chave para a realização de seus
objetivos díspares. Assim, em 2014, o hindu praticante Narendra Modi
foi eleito primeiro-ministro da Índia devido principalmente a seu
sucesso em incrementar o crescimento econômico em Gujarat, seu
estado, e graças ao amplo consenso de que só ele poderia revigorar
a pachorrenta economia nacional. Opiniões análogas mantiveram no
poder na Turquia, desde 2003, o islâmico Recep Tayyip Erdoğan. O
nome de seu partido — Partido da Justiça e do Desenvolvimento —
destaca seu comprometimento com o desenvolvimento econômico, e o
governo de Erdoğan realmente conseguiu manter taxas impressionantes
de crescimento por mais de uma década.
O
primeiro-ministro do Japão, o nacionalista Shinzō Abe, chegou ao
cargo em 2012 com a promessa de arrancar a economia japonesa de duas
décadas de estagnação. Suas medidas agressivas e um tanto incomuns
para conseguir esse intento receberam o apelido de “abeconomia”.
Enquanto isso, na vizinha China, o Partido Comunista ainda cita da
boca para fora os tradicionais ideais marxistas-leninistas, mas na
prática é orientado pelas famosas máximas de Deng Xiaoping,
segundo as quais “o desenvolvimento é a única e dura verdade” e
“não importa se um gato é preto ou branco, enquanto ele cumprir a
tarefa de pegar ratos”. O que significa, em linguagem simples: faça
tudo o que leve ao crescimento econômico, mesmo sabendo que Marx e
Lênin não ficariam muito felizes com isso.
Em
Cingapura, como condiz com essa cidade-Estado tão pragmática, essa
linha de pensamento foi levada ainda mais longe: os salários
ministeriais foram atrelados ao PIB nacional. Quando a economia
cingapuriana cresce, os ministros ganham aumento, como se isso fosse
tudo a que seu trabalho diz respeito.
Essa
obsessão pelo crescimento pode soar óbvia, mas só porque vivemos
no mundo moderno. Não foi assim no passado. Marajás indianos,
sultões otomanos, xoguns Kamakura e imperadores Han raramente
ancoraram seus destinos políticos à garantia de crescimento
econômico. Modi, Erdoğan, Abe e o presidente chinês Si-Jin
apostaram todos suas carreiras no crescimento econômico porque se
trata de um atestado do status quase religioso que o crescimento
econômico adquiriu em todo o mundo. De fato, pode não ser errado
chamar a crença no crescimento econômico de religião porque ela
pretende resolver, se não todos, muitos de nossos dilemas éticos.
Como, alegadamente, o crescimento econômico é a fonte de todas as
coisas boas, isso estimula as pessoas a enterrar as suas
discordâncias éticas e a adotar qualquer curso de ações que
maximize um crescimento de longo prazo. Então, se a Índia de Modi é
a morada de milhares de seitas, partidos, movimentos e gurus, e se,
conquanto seus objetivos finais possam divergir, todos eles tenham de
passar pelo mesmo gargalo do crescimento econômico, por que não
juntarem forças enquanto isso?
O
credo de “mais coisas” impele indivíduos, empresas e governos a
descartar tudo o que possa impedir o crescimento econômico, tal como
preservar a igualdade social, garantir a harmonia ecológica ou
respeitar os pais. Na União Soviética, quando as pessoas pensavam
que o comunismo controlado pelo Estado era o caminho mais rápido
para o crescimento, tudo o que estivesse bloqueando o caminho da
coletivização era erradicado, inclusive milhões de cúlaques, a
liberdade de expressão e o mar de Aral. Hoje é generalizadamente
aceito que alguma versão de capitalismo de livre mercado é um
caminho muito mais eficiente para garantir um crescimento de longo
prazo, daí a proteção a fazendeiros ricos e à liberdade de
expressão, mas os habitats ecológicos, as estruturas sociais e os
valores tradicionais que se puserem no caminho do capitalismo de
livre mercado serão destruídos e desmantelados.
Tome-se,
por exemplo, uma engenheira de software que ganha cem dólares por
hora trabalhando para uma start-up de alta tecnologia. Um dia,
seu pai sofre um AVC. Ela passa a ter de ajudar nas compras, na
cozinha e até mesmo no banho. Ela poderia levar o pai para a própria
casa, sair mais tarde de manhã, voltar mais cedo ao entardecer e
cuidar pessoalmente dele. Tanto a sua renda como a produtividade da
start-up sofreriam, mas seu pai contaria com os cuidados de
uma filha respeitosa e amorosa. Alternativamente, a engenheira
poderia contratar uma cuidadora mexicana, por doze dólares a hora,
para morar com seu pai e suprir todas as necessidades que ele
apresentar. Isso significaria que a situação não se alteraria para
a engenheira e sua start-up, e até mesmo a cuidadora e a
economia mexicana se beneficiariam. O que a engenheira deveria fazer?
O
capitalismo de livre mercado tem uma resposta firme. Se o crescimento
da economia exige que afrouxemos laços de família, incentivemos
pessoas a viver longe de seus pais e importemos cuidadores do outro
lado do mundo — que assim seja. Essa resposta, no entanto, envolve
um juízo ético e não uma declaração factual. Sem dúvida, quando
algumas pessoas se especializam em engenharia de software enquanto
outras passam seu tempo cuidando de idosos, podemos produzir mais
softwares e dar aos idosos um atendimento mais profissional. Mas será
que o crescimento econômico é mais importante do que os laços
familiares? Ao ousar fazer esse julgamento ético, o capitalismo de
livre mercado cruzou a fronteira do terreno da ciência para o da
religião.
A
maioria dos capitalistas provavelmente não vai gostar da denominação
“religião”, entretanto, enquanto a religião funcionar, o
capitalismo pode ao menos manter a cabeça erguida. Diferentemente de
outras religiões que prometem uma torta no céu, o capitalismo
promete milagres aqui na Terra — e às vezes os realiza. Muito do
crédito pela superação da fome e da peste pertence à ardente fé
capitalista no crescimento. O capitalismo merece algumas
congratulações por ter reduzido a violência humana e incrementado
a tolerância e a cooperação. Como o capítulo seguinte vai
explicar, aqui estão em jogo fatores adicionais, porém o
capitalismo deu uma importante contribuição à harmonia global ao
estimular as pessoas a parar de considerar a economia como um jogo de
soma zero, no qual o seu lucro é o meu prejuízo, e em vez disso
vê-lo como uma situação de ganha-ganha, na qual o seu lucro é
também o meu lucro. Isso provavelmente ajudou muito mais a harmonia
global do que séculos de pregação cristã sobre amar o próximo e
oferecer-lhe a outra face.
De
sua crença no valor supremo do crescimento, o capitalismo deduz seu
mandamento número 1: Investirás teu lucro no incremento do
crescimento. A maioria dos príncipes e sacerdotes da história
desperdiçou seus lucros em carnavais extravagantes, palácios
suntuosos e guerras desnecessárias. Alternativamente, depositavam
suas moedas de ouro em cofres de ferro, os selavam e os enterravam
num calabouço. Hoje, capitalistas devotos usam seus lucros para
contratar novos empregados, aumentar suas fábricas ou desenvolver um
novo produto.
Quando
não sabem fazer isso sozinhos, entregam seu dinheiro a alguém que
saiba, como banqueiros e capitalistas de risco. Estes entregam o
dinheiro a vários empreendedores. Fazendeiros tomam empréstimos
para plantar novos campos de trigo, empreiteiros constroem novas
casas, corporações de energia exploram novos campos de petróleo, e
fabricantes de armamento desenvolvem novas armas. O lucro de todas
essas atividades faculta aos empreendedores remunerar os empréstimos
com juros. Atualmente não temos apenas mais trigo, casas, petróleo
e armas — dispomos também de mais dinheiro, que os bancos e os
fundos podem emprestar novamente. Essa roda não vai parar nunca,
pelo menos segundo o capitalismo. Nunca chegaremos a um momento no
qual o capitalismo dirá: “É isso aí. Você já cresceu bastante.
Agora pode ir com calma”. Se você quiser saber por que a roda
capitalista nunca vai parar, converse por algum tempo com um amigo
que acabou de ganhar 100 mil e está se perguntando o que fazer com
isso.
“Os
bancos pagam juros tão baixos”, ele vai reclamar. “Não quero
pôr meu dinheiro numa conta de poupança que mal paga 0,5% ao ano.
Talvez você consiga 2% em títulos do governo. Meu primo Richie
comprou um apartamento em Seattle no ano passado e já conseguiu 20%
de seu investimento! Talvez eu devesse entrar no negócio imobiliário
também. Mas todos dizem que há uma nova bolha imobiliária. Então
o que você acha do mercado de ações? Um amigo me disse que o
melhor negócio atualmente é comprar uma cota em fundos de índices
comercializados em ações ligados a economias emergentes, como o
Brasil ou a China.” Quando ele para um instante para respirar, você
pergunta: “Bem, por que não se satisfazer com seus 100 mil?”.
Ele vai lhe explicar melhor do que eu por que o capitalismo jamais
vai parar.
Essa
lição é martelada até mesmo para crianças e adolescentes por
meio de ubíquos jogos de cunho capitalista. Jogos pré-modernos,
como o xadrez, pressupunham uma economia estagnada. Você começa uma
partida de xadrez com dezesseis peças e nunca a termina com mais do
‘que isso. Em casos raros, um peão pode ser transformado numa
rainha, mas não se podem produzir novos peões nem promover seus
cavalos a torres. Assim, jogadores de xadrez não precisam pensar em
investir. Em contraste, muitos jogos modernos de tabuleiro e de
computador giram em torno de investimento e crescimento.
Especialmente
reveladores são os jogos de estratégia no estilo de civilizações,
como Minecraft, Colonizadores de Catan ou
Civilization de Sid Meier. O jogo pode ter lugar na Idade Média,
na Idade da Pedra ou em algum reino encantado imaginário, mas os
princípios permanecem os mesmos — e são sempre capitalistas. Seu
objetivo é estabelecer uma cidade, um reino ou uma civilização
inteira. Você começa de uma base muito modesta, talvez uma aldeia e
os campos ao redor. Suas propriedades lhe proveem uma renda inicial
em trigo, madeira, ferro ou ouro. Você então tem de investir essa
renda sabiamente. Tem de escolher entre ferramentas improdutivas, mas
ainda assim necessárias, como soldados, e ativos produtivos, como
mais aldeias, campos e minas. A estratégia vencedora comumente é a
de investir o mínimo dos mínimos em essenciais não produtivos,
enquanto se maximizam os ativos produtivos. Estabelecer aldeias
adicionais significa que na próxima rodada você terá uma renda
maior, que lhe permitirá não só comprar mais soldados (se
necessário), como simultaneamente aumentar seu investimento em
produção. Logo poderá elevar suas aldeias à categoria de cidades,
construir universidades, portos e fábricas, explorar mares e
oceanos, estabelecer sua civilização — e ganhar o jogo.
Yuval
Noah Harari, in Homo Deus: Uma breve história do amanhã
Nenhum comentário:
Postar um comentário