sábado, 15 de agosto de 2020

A torta milagrosa

As pressões evolutivas acostumaram os humanos a ver o mundo como se fosse uma torta estática. Se alguém consegue uma fatia maior da torta, caberá a alguém inevitavelmente uma fatia menor. Uma família ou uma cidade específica podem prosperar, mas o gênero humano como um todo não vai produzir mais do que produz hoje. De acordo com isso, religiões tradicionais, como o cristianismo e o islamismo, buscam maneiras de resolver os problemas da humanidade com a ajuda dos recursos disponíveis, ou redistribuindo a torta, ou prometendo uma torta no céu.
A modernidade, em contrapartida, baseia-se na firme crença de que o crescimento econômico não só é possível como é absolutamente essencial. Preces, boas ações e meditação podem ser reconfortantes e inspiradoras, contudo problemas como a fome, a peste e a guerra só podem ser resolvidos por meio do crescimento. Esse dogma fundamental pode ser resumido numa ideia única e simples: “Se você tem um problema, provavelmente está precisando de mais coisas, e, para ter mais coisas, tem de produzir mais coisas”.
Políticos e economistas modernos insistem em que o crescimento é vital por três razões principais. Primeiro, quando se produz mais, podemos consumir mais, elevar nosso padrão de vida e supostamente usufruir de uma vida mais feliz. Segundo, à medida que o gênero humano se multiplica, é preciso que a economia cresça para que ao menos continuemos como estamos. Por exemplo, na Índia, o crescimento populacional é de 1,2% ao ano. Isso quer dizer que, se a economia indiana não crescer todo ano ao menos 1,2%, o desemprego vai aumentar, os salários vão cair e o padrão de vida médio vai diminuir. Terceiro, mesmo que os indianos parassem de se multiplicar, e mesmo que a classe média indiana se satisfizesse com o padrão atual de vida, o que faria a Índia no que concerne a suas centenas de milhões de cidadãos que vivem na pobreza? Se a economia não crescer, e consequentemente a torta permanecer do mesmo tamanho, só se poderia dar mais aos pobres tirando algo dos ricos. Isso obrigaria a que se fizessem escolhas muito duras, e provavelmente causaria muito ressentimento e até violência. Para evitar tais escolhas, o ressentimento e a violência, precisa-se de uma torta maior.
A modernidade transformou essa ideia de “mais coisas” numa panaceia aplicável a quase todos os problema públicos e privados, desde o fundamentalismo islâmico, passando pelo autoritarismo do Terceiro Mundo, até a um casamento fracassado. Se ao menos países como o Paquistão e o Egito pudessem manter uma taxa de crescimento saudável, seus cidadãos viriam a usufruir dos benefícios de carros particulares e geladeiras abarrotadas, e seguiriam o caminho da prosperidade terrena em vez de irem atrás do flautista mágico islâmico. Da mesma forma, o crescimento econômico em países como o Congo e Myanmar produziria uma classe média próspera, que é o alicerce da democracia liberal. E, no caso de casais decepcionados, o casamento seria salvo se tivessem uma casa maior (sem a necessidade de dividir um cômodo apertado), comprassem uma máquina de lavar pratos (de modo que parariam de discutir de quem é a vez de lavar a louça) e pudessem frequentar dispendiosas sessões de terapia duas vezes por semana.
O crescimento econômico tornou-se a junção crucial onde quase todas as religiões, ideologias e movimentos modernos vão se encontrar. A União Soviética, com seu megalomaníaco Plano Quinquenal, era tão obcecada pelo crescimento quanto o mais impiedoso representante do capitalismo predador americano. Assim como cristãos e muçulmanos acreditam no paraíso, e só discordam quanto à maneira de chegar lá, durante a Guerra Fria, tanto capitalistas como comunistas acreditavam em criar o paraíso na terra mediante o crescimento econômico e só discordavam quanto ao método exato.
Hoje em dia, revivalistas hindus, muçulmanos devotos, nacionalistas japoneses e comunistas chineses podem declarar sua adesão a valores e objetivos muito diferentes, mas todos eles acreditam que o crescimento econômico é a chave para a realização de seus objetivos díspares. Assim, em 2014, o hindu praticante Narendra Modi foi eleito primeiro-ministro da Índia devido principalmente a seu sucesso em incrementar o crescimento econômico em Gujarat, seu estado, e graças ao amplo consenso de que só ele poderia revigorar a pachorrenta economia nacional. Opiniões análogas mantiveram no poder na Turquia, desde 2003, o islâmico Recep Tayyip Erdoğan. O nome de seu partido — Partido da Justiça e do Desenvolvimento — destaca seu comprometimento com o desenvolvimento econômico, e o governo de Erdoğan realmente conseguiu manter taxas impressionantes de crescimento por mais de uma década.
O primeiro-ministro do Japão, o nacionalista Shinzō Abe, chegou ao cargo em 2012 com a promessa de arrancar a economia japonesa de duas décadas de estagnação. Suas medidas agressivas e um tanto incomuns para conseguir esse intento receberam o apelido de “abeconomia”. Enquanto isso, na vizinha China, o Partido Comunista ainda cita da boca para fora os tradicionais ideais marxistas-leninistas, mas na prática é orientado pelas famosas máximas de Deng Xiaoping, segundo as quais “o desenvolvimento é a única e dura verdade” e “não importa se um gato é preto ou branco, enquanto ele cumprir a tarefa de pegar ratos”. O que significa, em linguagem simples: faça tudo o que leve ao crescimento econômico, mesmo sabendo que Marx e Lênin não ficariam muito felizes com isso.
Em Cingapura, como condiz com essa cidade-Estado tão pragmática, essa linha de pensamento foi levada ainda mais longe: os salários ministeriais foram atrelados ao PIB nacional. Quando a economia cingapuriana cresce, os ministros ganham aumento, como se isso fosse tudo a que seu trabalho diz respeito.
Essa obsessão pelo crescimento pode soar óbvia, mas só porque vivemos no mundo moderno. Não foi assim no passado. Marajás indianos, sultões otomanos, xoguns Kamakura e imperadores Han raramente ancoraram seus destinos políticos à garantia de crescimento econômico. Modi, Erdoğan, Abe e o presidente chinês Si-Jin apostaram todos suas carreiras no crescimento econômico porque se trata de um atestado do status quase religioso que o crescimento econômico adquiriu em todo o mundo. De fato, pode não ser errado chamar a crença no crescimento econômico de religião porque ela pretende resolver, se não todos, muitos de nossos dilemas éticos. Como, alegadamente, o crescimento econômico é a fonte de todas as coisas boas, isso estimula as pessoas a enterrar as suas discordâncias éticas e a adotar qualquer curso de ações que maximize um crescimento de longo prazo. Então, se a Índia de Modi é a morada de milhares de seitas, partidos, movimentos e gurus, e se, conquanto seus objetivos finais possam divergir, todos eles tenham de passar pelo mesmo gargalo do crescimento econômico, por que não juntarem forças enquanto isso?
O credo de “mais coisas” impele indivíduos, empresas e governos a descartar tudo o que possa impedir o crescimento econômico, tal como preservar a igualdade social, garantir a harmonia ecológica ou respeitar os pais. Na União Soviética, quando as pessoas pensavam que o comunismo controlado pelo Estado era o caminho mais rápido para o crescimento, tudo o que estivesse bloqueando o caminho da coletivização era erradicado, inclusive milhões de cúlaques, a liberdade de expressão e o mar de Aral. Hoje é generalizadamente aceito que alguma versão de capitalismo de livre mercado é um caminho muito mais eficiente para garantir um crescimento de longo prazo, daí a proteção a fazendeiros ricos e à liberdade de expressão, mas os habitats ecológicos, as estruturas sociais e os valores tradicionais que se puserem no caminho do capitalismo de livre mercado serão destruídos e desmantelados.
Tome-se, por exemplo, uma engenheira de software que ganha cem dólares por hora trabalhando para uma start-up de alta tecnologia. Um dia, seu pai sofre um AVC. Ela passa a ter de ajudar nas compras, na cozinha e até mesmo no banho. Ela poderia levar o pai para a própria casa, sair mais tarde de manhã, voltar mais cedo ao entardecer e cuidar pessoalmente dele. Tanto a sua renda como a produtividade da start-up sofreriam, mas seu pai contaria com os cuidados de uma filha respeitosa e amorosa. Alternativamente, a engenheira poderia contratar uma cuidadora mexicana, por doze dólares a hora, para morar com seu pai e suprir todas as necessidades que ele apresentar. Isso significaria que a situação não se alteraria para a engenheira e sua start-up, e até mesmo a cuidadora e a economia mexicana se beneficiariam. O que a engenheira deveria fazer?
O capitalismo de livre mercado tem uma resposta firme. Se o crescimento da economia exige que afrouxemos laços de família, incentivemos pessoas a viver longe de seus pais e importemos cuidadores do outro lado do mundo — que assim seja. Essa resposta, no entanto, envolve um juízo ético e não uma declaração factual. Sem dúvida, quando algumas pessoas se especializam em engenharia de software enquanto outras passam seu tempo cuidando de idosos, podemos produzir mais softwares e dar aos idosos um atendimento mais profissional. Mas será que o crescimento econômico é mais importante do que os laços familiares? Ao ousar fazer esse julgamento ético, o capitalismo de livre mercado cruzou a fronteira do terreno da ciência para o da religião.
A maioria dos capitalistas provavelmente não vai gostar da denominação “religião”, entretanto, enquanto a religião funcionar, o capitalismo pode ao menos manter a cabeça erguida. Diferentemente de outras religiões que prometem uma torta no céu, o capitalismo promete milagres aqui na Terra — e às vezes os realiza. Muito do crédito pela superação da fome e da peste pertence à ardente fé capitalista no crescimento. O capitalismo merece algumas congratulações por ter reduzido a violência humana e incrementado a tolerância e a cooperação. Como o capítulo seguinte vai explicar, aqui estão em jogo fatores adicionais, porém o capitalismo deu uma importante contribuição à harmonia global ao estimular as pessoas a parar de considerar a economia como um jogo de soma zero, no qual o seu lucro é o meu prejuízo, e em vez disso vê-lo como uma situação de ganha-ganha, na qual o seu lucro é também o meu lucro. Isso provavelmente ajudou muito mais a harmonia global do que séculos de pregação cristã sobre amar o próximo e oferecer-lhe a outra face.
De sua crença no valor supremo do crescimento, o capitalismo deduz seu mandamento número 1: Investirás teu lucro no incremento do crescimento. A maioria dos príncipes e sacerdotes da história desperdiçou seus lucros em carnavais extravagantes, palácios suntuosos e guerras desnecessárias. Alternativamente, depositavam suas moedas de ouro em cofres de ferro, os selavam e os enterravam num calabouço. Hoje, capitalistas devotos usam seus lucros para contratar novos empregados, aumentar suas fábricas ou desenvolver um novo produto.
Quando não sabem fazer isso sozinhos, entregam seu dinheiro a alguém que saiba, como banqueiros e capitalistas de risco. Estes entregam o dinheiro a vários empreendedores. Fazendeiros tomam empréstimos para plantar novos campos de trigo, empreiteiros constroem novas casas, corporações de energia exploram novos campos de petróleo, e fabricantes de armamento desenvolvem novas armas. O lucro de todas essas atividades faculta aos empreendedores remunerar os empréstimos com juros. Atualmente não temos apenas mais trigo, casas, petróleo e armas — dispomos também de mais dinheiro, que os bancos e os fundos podem emprestar novamente. Essa roda não vai parar nunca, pelo menos segundo o capitalismo. Nunca chegaremos a um momento no qual o capitalismo dirá: “É isso aí. Você já cresceu bastante. Agora pode ir com calma”. Se você quiser saber por que a roda capitalista nunca vai parar, converse por algum tempo com um amigo que acabou de ganhar 100 mil e está se perguntando o que fazer com isso.
Os bancos pagam juros tão baixos”, ele vai reclamar. “Não quero pôr meu dinheiro numa conta de poupança que mal paga 0,5% ao ano. Talvez você consiga 2% em títulos do governo. Meu primo Richie comprou um apartamento em Seattle no ano passado e já conseguiu 20% de seu investimento! Talvez eu devesse entrar no negócio imobiliário também. Mas todos dizem que há uma nova bolha imobiliária. Então o que você acha do mercado de ações? Um amigo me disse que o melhor negócio atualmente é comprar uma cota em fundos de índices comercializados em ações ligados a economias emergentes, como o Brasil ou a China.” Quando ele para um instante para respirar, você pergunta: “Bem, por que não se satisfazer com seus 100 mil?”. Ele vai lhe explicar melhor do que eu por que o capitalismo jamais vai parar.
Essa lição é martelada até mesmo para crianças e adolescentes por meio de ubíquos jogos de cunho capitalista. Jogos pré-modernos, como o xadrez, pressupunham uma economia estagnada. Você começa uma partida de xadrez com dezesseis peças e nunca a termina com mais do ‘que isso. Em casos raros, um peão pode ser transformado numa rainha, mas não se podem produzir novos peões nem promover seus cavalos a torres. Assim, jogadores de xadrez não precisam pensar em investir. Em contraste, muitos jogos modernos de tabuleiro e de computador giram em torno de investimento e crescimento.
Especialmente reveladores são os jogos de estratégia no estilo de civilizações, como Minecraft, Colonizadores de Catan ou Civilization de Sid Meier. O jogo pode ter lugar na Idade Média, na Idade da Pedra ou em algum reino encantado imaginário, mas os princípios permanecem os mesmos — e são sempre capitalistas. Seu objetivo é estabelecer uma cidade, um reino ou uma civilização inteira. Você começa de uma base muito modesta, talvez uma aldeia e os campos ao redor. Suas propriedades lhe proveem uma renda inicial em trigo, madeira, ferro ou ouro. Você então tem de investir essa renda sabiamente. Tem de escolher entre ferramentas improdutivas, mas ainda assim necessárias, como soldados, e ativos produtivos, como mais aldeias, campos e minas. A estratégia vencedora comumente é a de investir o mínimo dos mínimos em essenciais não produtivos, enquanto se maximizam os ativos produtivos. Estabelecer aldeias adicionais significa que na próxima rodada você terá uma renda maior, que lhe permitirá não só comprar mais soldados (se necessário), como simultaneamente aumentar seu investimento em produção. Logo poderá elevar suas aldeias à categoria de cidades, construir universidades, portos e fábricas, explorar mares e oceanos, estabelecer sua civilização — e ganhar o jogo.
Yuval Noah Harari, in Homo Deus: Uma breve história do amanhã

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