Ele
tinha o olhar fixo no anúncio luminoso, suspenso no fundo negro de
um céu sem estrelas. Já fazia uma hora que linha o olhar fixo no
anúncio onde um cisne branco aparecia fosforescente em primeiro
plano no espaço tumultuado de nuvens. Logo em seguida, com
ondulações de pétalas mansas, abria-se em torno do cisne um
pequeno lago que chegava até quase a meia-lua branca da qual saía o
letreiro. Cortado pelo perfil de um edifício. Só as cinco primeiras
letras do anúncio eram visíveis, as outras desapareciam detrás do
cimento armado.
— Belon
— disse ele antes que as letras se apagassem Voltou-se devagar para
o recém-chegado. — Belon, Belon... O que será que vem depois
desse Belon? Vai, Rold, me ajude.
— Belonave
— disse o outro voltando-se para o luminoso. Encarou o amigo. E
inclinou-se para o banco de pedra — Mas este banco está molhado,
você vai pegar um resfriado pelo traseiro. Que ideia. Miguel, por
que um encontro aqui? Este parque deve ser bom no verão.
— Não
é Belonave, é outra coisa, Belon...
— Belominal.
Contra dores, enxaquecas. Você está aqui há muito tempo? Detesto
umidade, as juntas começam a endurecer. Que noite!
— Não
vou saber nunca Pode ser o nome de um colchão de molas. Ou de uma
geladeira. Ou de um uísque, tanta coisa já passou pela minha
cabeça. Assim como um sino, hem, Rolf? Belon, Belon...
Rolf
tirou a folha seca que se colara ao sobretudo do amigo.
— Se
formos nesta direção, no fim da alameda a gente pode saber.
— Não
é preciso, Rolf. Você sabe.
Rolf
tomou o amigo pelo braço. Estava bem-humorado.
— O
que é que eu sei?
Mancando
um pouco, Miguel deixou-se conduzir. Ainda olhou o cisne lá no alto
do seu lago fosforescente.
— Você
sabe.
— Mas
sei o que, meu Deus!
— O
que aconteceu ontem à noite. Você sabe. Devo ter tido um acesso.
Então, não vai me dizer?
Rolf
levantou a gola do casaco. Esfregou as mãos com energia — Umidade
desgraçada. A gente podia ir comer um peixe com um bom vinho tinto,
besteira isso de vinho branco com peixe. Quero um tinto ligeiramente
aquecido, uau!
— Não
vai me dizer, Rolf?
— Dizer
o quê rapaz?
— O
que aconteceu ontem.
— Ora,
o que aconteceu! Mas então você não sabe?
— Não,
não sei. Não me lembro de nada, nada.
— Mas
como não se lembra?
— Não
me lembro, simplesmente não lembro
— repetiu
Miguel torcendo as mãos muito brancas. Fechou-as contra o peito.
— Sei
que você foi me visitar, isso eu sei. Mas depois não me lembro de
mais nada, minha memória breca de repente justo nesse pedaço, fica
tudo escuro. Como aquele luminoso, olha lá, agora apagou
completamente... Sei que aconteceu alguma coisa mas não lembro, não
lembro. Você vai me dizer, não vai, Rolf? Responde, não vai me
dizer? Hem?!
Rolf
desviou o olhar da cara lívida, em suspenso na sua freme. Um vinco
profundo formou-se entre suas sobrancelhas. Ainda assim, conseguiu
sorrir. Segurou com firmeza o amigo pelo braço, obrigando-o a andar.
— Mas
não aconteceu nada de especial, rapaz.. Não lenho o que contar.
— Não?
Não tive um acesso, não fiz coisas?... Não banquei o...
— Não.
Lógico que não. Se quiser mesmo saber, presta atenção, cheguei em
sua casa por volta das nove. Comentei a beleza da noite, tanta
estrela... Você me pareceu enfarruscado, se queixou de dor de
cabeça, lembra?
— Disso
eu me lembro. E daí?
— Daí
você foi buscar uma aspirina, parece que a dor passou de repente.
Então veio a hora da animação, você ficou todo excitado com o
livro de um húngaro que estava lendo, não sei que livro é esse nem
vem ao caso, o fato é que você desatou a falar. Falou, falou...
— Falei
o quê?
— Falou
sobre tudo. Sobre esse tal livro, sobre outros livros.
Enveredou
pela política, fez uma análise fulgurante da situação do país...
— Fulgurante?
— Fulgurante.
Comentou depois sobre uma fita de ficção científica, falou sobre a
morte de Otávio. Milhares de coisas.
— E
então...
— Então,
acabou. Fiquei cheio, me deu vontade de tomar um café e fui até a
cozinha, lembra?
— Não,
desse pedaço não lembro mais. Vejo você chegando e dizendo uma
coisa qualquer ligada à garrafa térmica, que o café se degradava
na garrafa, não sei se usou essa palavras, degradar. Mas foi a
palavra que me veio agora. E eu me queixando de uma dor bem aqui...
— Na
nuca.
— Isso,
na nuca — confirmou Miguel, apressando o passo para ficar ao lado
do outro que tinha pernas compridas, andava mais rápido.
Afastou
com um gesto exasperado o ramo de salgueiro que pendia no meio da
alameda. — O resto esqueci, não sei de mais nada. Não sei.
— Pois
quando voltei com o café você se queixou dessa dor, se estendeu no
sofá e ficou dormindo feito uma criancinha. Fechei a luz e saí.
Acabou.
— Por
favor, Rolf, não fique com pena de mim que é pior ainda, pode
dizer!
— Mas
dizer o quê, se não aconteceu mais nada. Quer que eu invente, é
isso? Posso inventar, se quiser.
Seguiram
andando. Rolf alguns passos adiante de Miguel que mancava um pouco.
— Sei
que tinha uma pessoa por perto e essa pessoa só pode ser você —
disse Miguel num tom indiferente. Baixou a aba do chapéu de feltro.
Levantou a gola do sobretudo e enfiou as mãos nos bolsos. — Você
sabe o que eu fiz. Mas não vai me dizer nunca.
Rolf
chutou com irritação um pedregulho e abriu os braços. Cerrou os
maxilares quando levantou a face para o céu e de repente pareceu se
distrair com algumas estrelas que vislumbrou num rombo da nuvem.
— Milagre!
Elas conseguiram mas não vai durar, olha aquela nuvem preta que já
vem correndo e cobrindo tudo. Só vai chover mesmo lá pela
madrugada, gosto de dormir ouvindo a chuva.
Miguel
olhava em frente. O outro teve que se inclinar para ouvir o que ele
dizia agora: — Hoje cedo encontrei o relógio despedaçado, aquele
relógio em formulo de oito. Completamente despedaçado. E um rasgão
no lençol. O relógio e o lençol.
— O
lençol?
— Também
não encontrei mais o Rex. A tigela de água virada, a porta da
cozinha aberta... Eu tinha paixão por aquele cachorro. Sai
procurando, perguntei na vizinhança, andei dando voltas pelo
quarteirão. Nada. Você sabe, mas não vai me dizer. Estou vendo nos
seus olhos a minha loucura, mas você não vai me dizer nada.
Caminharam
algum tempo em silêncio. Pararam diante do lago de água
verde-negra, aninhado entre as árvores. Os ramos mais longos do
salgueiro chegavam a tocar na superfície estagnada, com coágulos
finos como lâminas de vidro fosco. Rolf acendeu um cigarro, fez um
comentário sobre a água que devia estar podre e tomou o amigo pelo
braço. Sacudiu-o afetuosamente. Riu.
— Com
esses elementos você pode reconstituir tudo, não pode? O relógio,
o lençol. O cachorro. Você gostava de livro policial, não gostava?
Então é simples, estou preocupado é com o cachorro.
— Não
brinca, Rolf. É sério. Eu preciso saber.
— Mas
não estou brincando — disse e empurrou enérgico o amigo para a
frente. — Vamos, rapaz, tudo bobagem, chega de se atormentar. Não
pensa mais nisso, não aconteceu nada. Acho que você está
precisando é de mulher, essa nossa vida, uma solidão miserável. Se
tivesse por aí umas putinhas simpáticas, hum? Por onde andam nesta
cidade as putinhas simpáticas, antigamente tinha tanta gueixa, vem
me esquentar, vem me agradar! Elas vinham. Agora só encontro umas
meninas chatas, tudo intelectual. Mania de feminismo, competição.
Andei aí com uma nortista que me deixou tonto, falava feito uma
patativa. Era socióloga, já pensou?
Um
jovem de tênis e abrigo de inverno passou correndo e bufando entre
os dois homens, que se afastaram para lhe dar passagem. Quando o
jovem desapareceu na curva da alameda. Miguel Voltou-se para o amigo.
— Curioso
isso. Como você sabe o que aconteceu, sempre que olho para você
vejo que aconteceu alguma coisa.
— Ah,
mas minha cara é muito expressiva! Miguel começou a torcer as mãos
feito trapos. A silhueta atarracada, parecia maior devido ao
sobretudo que vinha de um tempo em que era mais gordo. Levantou a
face de um branco úmido.
— Por
favor, Rolf, por favor! Preciso saber até que ponto eu cheguei,
preciso.
— Mas
o que você quer que eu faça? Só se eu tive o acesso junto, nós
dois completamente loucos, quebrando coisas, espancando o cachorro. E
agora esqueci tudo, os dois sem memória, esses ataques podem dar de
parceria. Ou não, sei lá.
Miguel
enfiou as mãos nos bolsos e prosseguiu no seu andar meio incerto.
Sorriu para o amigo.
— Nós
dois juntos. Rolf? Um acesso na mesma hora? Sacudiu-se de repente num
riso reprimido. Enterrou o chapéu de feltro até as orelhas e
acendeu o cigarro, divertia o a ideia do acesso em conjunto, “Nós
dois. Rolf? Ao mesmo tempo?” Rolf estava sério, andando no seu
passo largo, cadenciado. Olhava o chão.
— Vamos
sair deste parque. Sugiro comer alguma coisa.
— Isso
mesmo. Rolf, também estou com fome. Peixe com vinho tinto meio
aquecido, acho genial. Conheci outro dia um restaurante fabuloso, é
meio longe mas Vale a pena. Vinho tinto italiano, o vinho eu ofereço.
— Machucou
o pé, Miguel?
— Por
quê?
— Você
está mancando.
— Estou?
— Ele se surpreendeu. Olhou espantado para os próprios pés. —
Sabe que não sinto nada. Você disse que estou mancando?
— Um
pouco.
— Não
sinto nada.
Rolf
tirou o lenço do bolso da japona e limpou o nariz. Olhou para o
lenço enquanto o dobrava. Olhou para o amigo.
— Esse
restaurante. É muito longe? Já está meio tarde, será que ainda
servem a gente?
— Claro
que servem, fica aberto até de madrugada. É a dona mesmo quem
cozinha, uma espanhola chamada Esmeralda. Não sei o nome da rua mas
sei onde fica, já fui lá um monte de vezes.
Rolf
atirou a ponta do cigarro no canteiro. A fisionomia se desanuviou.
Apertou os olhos de novo zombeteiros — Tive uma namorada chamada
Esmeralda. Você não conheceu a Esmeralda?
— Não.
Essa não.
— Ela
era engraçada, só pensava em casar, acordava com esse pensamento,
dormia com esse pensamento, casar. Então eu avisei, só me caso
quando chegar aos quarenta, faltam dois anos. Nessa noite fizemos um
amor tão perfeito, dormimos contentes. Me acordou de madrugada,
descobriu não sei como minha cédula de identidade e montou em mim,
seu mentiroso, você tem 45 anos, vamos casar Imediatamente!
— Imediatamente,
Rolf?
Miguel
tomara a dianteira, o passo curto, o cigarro apagado no canto da
boca. Quando saíram da avenida e entraram numa rua mais tranquila,
esperou pelo amigo até se emparelhar com ele. Sacudiu na mão uma
caixa de fósforos.
— A
marca que meu pai usava tinha um olho dentro de um triângulo, eu
ficava fascinado quando ele guardava o olho suplementar dentro do
bolso. Será que ainda existe essa marca?
Rolf
mordiscou o lábio superior até prender nos dentes um fio do bigode.
Contornou com o braço o ombro do amigo.
— Presta
atenção, Miguel, o que passou, passou. Não se preocupe mais, somos
todos normalmente loucos. Fingimos até uma loucura maior mas não
tem importância, faz parte do sistema, é preciso. De vez em quando,
dá aquela piorada e piora mesmo, que diabo. E daí? O tal cotidiano
acaba prevalecendo sobre todas as coisas que nem na Bíblia. Isso de
dizer que só um fio de cabelo nos separa da loucura total é tolice.
— Claro.
Rolf, claro. Você tem razão Com as pontas dos dedos. Rolf começou
a consertar o bigode.
Tirou
de Miguel a caixa de fósforos que ele ainda sacudia.
— Você
está com 51 anos.
— Cinquenta
e dois.
— Certo.
Eu tenho três mais que você. E sua família, rapaz? Continua por
aqui?
— Não,
mudou-se para Casa Branca. Por quê?
— Lembrei
agora da sua mãe. Ela fazia uns pastéis deliciosos.
— Fazia
melhor o amor.
Rolf
desviou do amigo o olhar oblíquo.
— Ai!
meu Hamlet, que cansaço. E esse seu restaurante que não chega
nunca. Hoje você está muito chato, cansei.
— Acho
que é fome, Rolf, perdão, perdão! — E Miguel tomou o amigo pelo
braço, ficou de repente descontraído, alegre, — Faz tempo que não
como direito, deve ser isso. Mas juro que depois ainda vou cantar
para você um tango inteirinho, Cuesta Abajo, tenho uma voz
linda, com vinho então fica um esplendor.
— Nem
diga.
Enveredaram
por uma rua escura, quase deserta. No fim da rua, a ponte, um curvo
traço de união entre as margens do rio. A névoa subia mais densa
na altura da água. Rolf parou de assobiar — Ainda está longe?
— O
quê?
— O
restaurante, rapaz.
— Ah,
fica logo depois da ponte — disse Miguel. E inclinou-se pura
amarrar o cordão do sapato. — Conheço tanto esse rio, eu morava
aqui por perto quando criança. Todo sábado vinha nadar com a
molecada. A água era suja mas imagine se me importava. Também
remava, sempre tive mania de esportes. Não cresci muito mas olha só
a largura do meu ombro.
— Eu
sei, já vi.
Um
cachorro perdido passou a uma certa distância. Estava enlameado e
tinha uma pequena corda dependurada no pescoço. Miguel ficou olhando
o cachorro.
— Podia
ser o Rex — disse, e voltou-se para o amigo. Animou-se.
— Cheguei
a ser campeão de bola ao cesto.
— Acho
que foi por isso que você ficou desse jeito, vida muito saudável
não dá certo. Sempre tive horror de clubes, uma chateação.
Miguel
aproximou-se e puxou o outro pela manga. Riu.
— Um
bicho-de-concha. Você devia ter aprendido ao menos a nadar.
— Namorei
uma nadadora. Cheirava a cloro, por mais que se lavasse, tinha sempre
um pouco daquele cheiro, principalmente no cabelo. É curioso, não
me lembro da sua cara, só do cheiro.
Tinham
atingido a ponte. Miguel parou. Olhou em redor.
— A
gente se esquece de certas coisas e de outras... Ainda tem um
cigarro?
Rolf
tirou do maço o último cigarro, que veio amassado.
— Fuma
este.
— E
você?
— Agora
não quero.
Miguel
abrigou na gruta da mão a chama do fósforo. A face avermelhou,
esbraseada.
— Mas
veja. Rolf, esqueci por completo o que aconteceu ontem e isso não
teria a menor importância se não fosse você. Você e esta ponte. A
única ponte que me liga a véspera — disse e abaixou-se como se
fosse amarrar o sapato.
Rolf
abotoou a japona. Prosseguiu de mãos nos bolsos, um pouco encolhido.
Miguel então veio por detrás e ainda agachado, agarrou o outro
pelas pernas, ergueu-o rapidamente por cima do parapeito de ferro e
atirou-o no rio. As águas se abriram e se fecharam sobre o grito
afogado, se engasgando.
Debruçado
no gradil, Miguel ficou olhando o rio. Vislumbrou seu chapéu que
tinha caído e agora flutuava meio de banda na água agitada. Flutuou
um instante com movimentos de um pequeno barco negro.
Desapareceu,
Um resto de espuma foi se diluindo na superfície acalmada. Miguel
apanhou no chão o cigarro ainda aceso e soprou, avivando a brasa.
Amarfanhou devagar o maço vazio. Durante algum tempo ficou fumando e
contemplando a água. Fez do maço uma bola e atirou-a longe. Não se
voltou quando ouviu passos atrás de si. Sentiu a mão tocar-lhe o
ombro.
— É
proibido atirar coisas no rio.
Ele
mostrou para o policial a cara pasmada.
— Mas
era um maço de cigarro, um maço vazio.
— Eu
sei, mas não pode. É a lei. Miguel sorriu, concordando.
— O
senhor tem razão — disse e levantou a mão para a aba do chapéu.
Interrompeu o gesto. — Toda razão. Não vou repetir isso, prometo.
Mancando
um pouco, atravessou a ponte e sumiu no nevoeiro.
Lygia
Fagundes Telles, in A estrutura da bolha de sabão
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