domingo, 5 de julho de 2020

Vovô Jake enfrenta Cerra-Dente


Jake caminhara com ele até o topo da colina para se despedir e, pouco antes de partir, Sete Luas apontara para um pedaço de chão recentemente escavado, obra de um porco-do-mato, dando um sorriso estupendo:
Ah, aí vemos alguma esperança; o domesticado se tornando selvagem. Os porcos são muito graciosos. Seus corpos são feitos para segurar o céu. Eu não me importaria de ser um porco, alguma vez… um velho porco, louco e grande. Seria ótimo.
Vovô Jake não conseguia tirar isso da cabeça, até que finalmente contou a Miúdo o que achava, isto é, que o Cerra-Dente era o espírito reencarnado de Johnny Sete Luas, e que talvez ele devesse pensar no assunto antes de se fixar demais em matá-lo.
Miúdo sacudiu a cabeça, inflexível.
Simplesmente não é verdade, vovô – replicou quase implorando. – Quando as pessoas morrem, elas se vão. Se vão. E isso é tudo.
Assim, vovô Jake não voltou ao assunto. Não havia por quê. Sua opinião não era tão forte quanto as necessidades de Miúdo. Disse o que precisava dizer e desse modo cumpriu o que sentia ser sua responsabilidade, tanto para com o neto quanto para com seu velho amigo índio. Johnny Sete Luas, em qualquer forma que seu espírito tivesse tomado, teria que cuidar do próprio traseiro.
O mesmo valia para Miúdo, aonde quer que seu espírito o tivesse levando.
Algumas noites depois, tendo saído para sua caminhada noturna, vovô Jake deu com o Cerra-Dente na vellha trilha de cavalos que levava aos Claybourne. Encontraram-se por puro acaso no topo de uma subida; ambos recuaram por um instante e depois atacaram. Vovô foi jogado para cima, bem alto, deu uma meia cambalhota torta e caiu na terra que a chuva amaciara, como se fosse um monte de tripas no chão de um matadouro. Felizmente, a única coisa que quebrou foi a garrafa do Sussurro da Morte no bolso do casaco, e apesar de o Cerra-Dente ter dado algumas investidas de estalar as mandíbulas, açoitando as costelas de Jake, os vapores de uísque derramado logo deixaram o porco-mamute cambaleando, as bochechas raiadas de lágrimas saindo dos olhos em brasa, o muco borbulhando nas fuças destroçadas. Pulou para a moita, deixando vovô Jake fazer o balanço dos danos à sua pessoa. Ele se apalpou por toda parte, metodicamente, achando que devia estar todo fodido, sangrando, mas tudo que encontrou foram dois riachos de baba ao longo do lado direito dos eu corpo. E então, com o choque, lhe veio a imagem: a visão do Cerra-Dente surgindo por cima dele, dando guinadas no escuro com a cabeça imensa, mas velho, bem velho, a pele murcha, as costelas ondulando, duas presas faltando, arrebentadas à altura da linha do queixo, ou talvez simplesmente caídas.
Maldito seja – resmungou vovô, cambaleando para se pôr em pé. – Ainda bem que foi uma luta justa. Acho que não conseguiria sair dessa se ele já não estivesse tão gasto quanto eu.
Raspou a lama o melhor que pôde na escuridão, e então se dirigiu para o Claybourne. Estava satisfeito por não ter prosseguido a conversa com Miúdo, tentando fazê-lo ver que Cerra-Dente talvez fosse o Sete Luas, pois agora já não tinha tanta certeza disso. Johnny Sete Luas, lembrou, teria parado para lamber o uísque derramado.
Não contou ao Miúdo. Depois de pensar no assunto por três tardes, matutando com aquela meticulosidade lenta e voluptuosa que é a recompensa de uma vida tranquila, Jake reafirmou sua neutralidade. Não contaria ao Miúdo a respeito de Cerra-Dente. E não contaria ao Cerra-Dente a respeito do Miúdo. Decidido isso, voltou a atenção para outros assuntos importantes, como ensinar Fup a voar.
Jim Dodge, in Fup

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