terça-feira, 28 de julho de 2020

Viver em paz com a humanidade inteira

Sr. representante do Sr. governador do Estado
Senhoras
Senhores
Companheiros da Associação Brasileira de Escritores.

Começo agradecendo a hospitalidade que nos ofereceram em Porto Alegre. Isto é lugar-comum: os habitantes desta cidade podem julgar que recebi a tarefa de expor aqui salamaleques e cortesias. Não é verdade: estamos realmente agradecidos. Não esperávamos tanto: acomodar-nos-íamos de qualquer modo — e o que o Rio Grande do Sul nos deu foi excessivo e nos sensibiliza.
Adiante. O IV Congresso de Escritores se sentiu honrado e fortalecido com o apoio do povo. Sem isso, nada teríamos podido fazer. Não nos reunimos para lá de portas fechadas: as portas, durante uma semana, estiveram abertas — e pedimos que toda a gente viesse trabalhar conosco. Não somos vaidosos: aceitamos, com humildade, a colaboração do homem da rua.
Cavalheiros sabidos andaram a afirmar seguros, em jornais ricos, que somos uns pobres-diabos, mais ou menos analfabetos. Paciência. Não nos zangamos. Quando, no correr do tempo, essas grandes, essas enormes suficiências perceberem que não temos propósitos subversivos, descerão um pouco, chegarão até nós — e nos ensinarão qualquer coisa. Não somos vaidosos, repito.
Ninguém teve o intuito de jogar bombas em Porto Alegre. Desejaríamos fixar a alegria que esse nome nos apresenta. Não estamos a serviço de nenhuma potência estrangeira. Nunca diríamos ao gringo: “Entre, tome conta disto. A casa é sua.”
Não, meus amigos. A casa, pobre, é nossa. E denunciamos os traidores que desejam vendê-la.
Enfim, pequeninas calúnias, pequeninas infâmias, não nos atingem. O Congresso, bem ou mal, deu conta do recado, provou ser possível conseguirmos entendimentos para objetivo comum. Escritores de várias tendências aqui se encontram — e, apesar de todo o veneno espalhado lá fora, não houve barulho, graças a Deus. Estamos de acordo.
Encontros como este são indispensáveis, parece-me. Divergências, pontos obscuros, equívocos, tudo afinal desaparece, tudo se explica. E saímos com uma firmeza que não tínhamos quando chegamos. Amanhã não nos separaremos: em Belém, no Rio, em São Paulo, em Porto Alegre, continuaremos a trabalhar juntos.
Agridem-nos por sermos políticos. Bela novidade. Claro que somos políticos. Quiseram afastar-nos. Norte contra Sul; materialistas contra idealistas; o realismo e o romantismo de mangas arregaçadas, coléricos. Atiraram-nos uns aos outros. Para tal fim, utilizaram-se diversos disparates. Termos nascido por acaso no Nordeste não é razão para atacarmos o pampa e a planície amazônica.
Não faremos isso. Nesta semana mostramos que não faremos isso. Política? Perfeitamente. Nem só os idiotas e os malandros devem ocupar-se dela. Resolveremos as nossas questões em família. Política? Perfeitamente. É uma vergonha ouvirmos o que ouvi de um estrangeiro, há pouco tempo, num banquete: “Façam isto, façam aquilo.” O dedinho ameaçador: “Façam isto, façam aquilo.” Não. Faremos o que acharmos razoável fazer. Seremos inimigos desse homem que nos vem dar ordens, em língua estranha? De nenhum modo. Apenas desejamos que ele não nos dê ordens. Já não somos crianças. Queremos viver em paz com ele, viver em paz com a humanidade inteira.
Necessitamos novas reuniões. Falar muito, discutir, brigar às vezes. Ótimo. Sairemos dessa luta fortalecidos. Lá fora defenderemos os nossos interesses e a cultura exígua de que somos capazes. Surgirão descontentamentos, numerosos descontentamentos, é claro. Sempre haverá quem diga de nós cobras e lagartos. Que fazer? Estamos habituados, essas ofensas não nos perturbarão.
Agradecemos especialmente à senhora Lila Ripoll, admirável mulher franzina que realizou sozinha o trabalho de vinte homens fortes.
Graciliano Ramos, in Garranchos (discurso proferido por Graciliano Ramos, então presidente da Associação Brasileira de Escritores (ABDE), no ato de encerramento do IV Congresso da entidade, realizado em Porto Alegre, em setembro de 1951).

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