sexta-feira, 3 de julho de 2020

O sofrimento de Jó

Jó e seus amigos (1869), de Ilya Repin

Os amigos de Jó, ao fim de certo tempo, acharam que ele se comprazia em sofrer e lamentar-se porque o Senhor o havia abandonado. Sentiam-se enervados com a prantina infindável.
É preciso dar jeito na vida de Jó — dizia um. — Ninguém mais suporta as suas lamentações. Vamos propor-lhe uma viagem ao país de Tiro, onde ele se deleitará com as coisas belas e agradáveis ofertadas pelo rei Hirão?
Jó recusou o convite, alegando que não tinha amigos, e a proposta visava sua perdição eterna. Trancou a porta a Elifaz, a Baldad e a Sofaz, e continuou a dizer-se o mais desgraçado dos homens. A Morte, que rondava, escutou-o. E sugeriu-lhe:
Venha comigo. Darei cura total a seus males.
Muito obrigado — respondeu Jó. — Não posso mais viver sem eles. Desaprendi a alegria e, pensando bem, qualquer estado é sempre o mesmo; todas as coisas são uma só e triste coisa. Deixe-me em paz, isto é, em guerra comigo mesmo.
O Senhor, ouvindo tamanho dislate, apiedou-se de Jó e restituiu-lhe as graças e bens perdidos, mas Jó nunca mais foi o mesmo homem. Conhecera o sofrimento, que lhe voltava em sonho.
Esta versão, que contraria o livro clássico, foi divulgada pela terceira filha de Jó, chamada Cornustíbia, a quem os cronistas da época não concedem maior crédito, alegando que nascera de cinco meses e não tinha a cabeça no lugar.
Carlos Drummond de Andrade, in Contos plausíveis

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