segunda-feira, 27 de julho de 2020

“O que é a instrução... — O que é a cidade-grande...”

Miguel operava ativo, vacinando. Ele mesmo não deixava de ver a satisfação com que nhô Gualberto reparava nisso. Sempre, surdamente, Miguel guardava temor de estar ocioso e de errar. Um horror de que se errasse, de que ainda existisse o erro. A mais, como se, de repente, de alguém, de algum modo, na viração do dia, na fresca da tarde, estivesse para se atirar contra ele a violência de uma reprovação, de uma censura injusta. Trabalhava atento, com afinco. Somente assim podia enfeixar suas forças no movimento pequeno do mundo. Como se estivesse comprando, aos poucos, o direito a uma definitiva alegria, por vir, e que ele carecia de não saber qual iria ser. Aí bem que o sonho era a princípio um jardim de grandes árvores de bela vista, da banda do nascente, um lugar de agrado. Mas o sonho tinha de ser tomado apenas em goles curtos, entre hostilidades. O sol repassava, versado e de fôgo, sertanejo; não parecia estar-se em maio. Miguel sentia como se seus pensamentos sempre estivessem transparecendo, devassados por todos. — “Não vê, que: esses bezerros não dão para levar só metade duma?” — nhô Gualberto perguntava, segurando uma ampola, que remirava de contraluz. Nhô Gualberto tudo queria entender, no que fosse de prático. A bezerrada, muito costeada, mansa, mesmo assim refugia, com a hora de agitação, se reuniam num ângulo do curral, em cerrado grupo, as cabeças convergentes, formando uma rosácea. Os vaqueiros escolhiam, seu o seu, enrodilhavam os laços em pequenas voltas, boleavam, jogavam. O debater do bezerro já era um começo de submissão. O curral tinha dois esteios e ainda um pau, um jenipapeiro antigo, árvore que se guarda porque é sempre meio príncipe, de imponente. Nhô Gualberto corrigia alguma treta, ralhava brando, como se ralhar fosse também um ponto da tarefa comum. Andava ficando loquaz. — “Agora, o senhor cuida daquele. Ah, vendo? Bom boi! Todo boi que não tem o serrote no encavador, não presta... Eh, é regra aprendida dum Avelino, homem sabido... Não puxa, não faz força, serve nada pra o carro...” Lacem este... Agora o senhor vai neste... Nhô Gualberto chega pegara no braço de Miguel, que o desprendeu, rude. Assim refugam na estrada os cavalos jovens, quando no luscufo da tardinha uma casca de palha esvoaça diante. — “O senhor espere. E não converse, que estorva!” Miguel repontou. Nhô Gualberto obedeceu, parecia nem ter notado essa mudança de modos. Nem Miguel fizera atenção ao outro boi indicado. — “Aquele bezerro baio, agora”, ele ordenou. Os vaqueiros cumpriram, encambixaram. Mas o olhavam, um tanto esturdiados, com essa curiosidade em que o campônio põe um pouco de desprezo, para não se debilitar com excesso de admiração.
Aqueles vaqueiros apreendiam com esquisita sutileza todo momento em que alguma coisa demudava — para então olharem assim. Antes, desconfiavam da aparelhagem, do mecanismo das vacinas, quase uma forma de pecado; queriam o que fosse uma benzedura, com virtude de raminho verde de planta e mágicas palavras no encoberto — queriam atalhos. Miguel sabia isso, sentia isso. O cheiro de curral, a poeira esverdeada do estrabo, eram os mesmos em qualquer fazenda, em toda a parte. Miguel dispunha dos campeiros: mandou que trouxessem agora o bezerro caruara — o pobre, que era triste de se ver. O pêlo desse se arrepiava como em plastras, e ele nem sabia encolher-se, feioso, magro, tolhido pelo endurecimento das juntas. — “Croara...” — nhô Gualberto explicou. — “... Não veja que a doença dê em trem desta idade...” Nhô Gualberto desgostava de que no seu gado houvesse reses com defeitos. — “O que há aqui é berne, muito. Em pastos do meu alto-sertão, lá grassa quase imundície nenhuma...” — Miguel disse, malmente. Nhô Gualberto o espiara, admirado. — “O senhor é do sertão? Dadonde?” Parecia não crer. — “Do alto dos gerais. Dum mato, um sitiozinho da serra... Tenho o jeito não?” — Miguel se ria, com um desdém. Aquele bezerro caruara dava gastura, de se reparar, era um nôjo, um defeito no mundo. Como se um erro tivesse falseado seu ser, contra a forma que devia de ser o molde para ele, a ideia para um bezerro belo; não podido pois ser realizado. Mais valera não existisse, então, deviam tê-lo matado. Entretanto, Miguel, ao cuidá-lo, ia tendo maior paciência, quase com carinho; o bezerro palpitava, com seu calor infeliz, como criatura muito viva, sem embargo. A morte daquele bezerro seria uma coisa tristíssima.
— “O que é a instrução... — O que é a cidade-grande...” — nhô Gualberto se pasmava. Depois sacudia a cabeça. Estivesse reafirmando a impossibilidade de com ele ter acontecido uma coisa dessas, uma sorte tão civilizada. Ele nascera para roceiro, e sua vida já começava a ir do meio-dia para a tarde. Agora, nhô Gualberto, seus gestos se repetiam. A vida na roça, devagarinho uma guerra. Nhô Gualberto de repente falou, sua voz era amiga: — “Lá no Buriti Bom tem duas moças, quer dizer, tem uma moça, muito linda... Ela é estudada, também...” Disse, feito estivesse revelando um segredo. — “O senhor vai conhecer, ela é a filha do iô Liodoro...” Ou fazendo afetuoso oferecimento: — “Essa, é que é moça para se casar com um doutor... Nome dela é Maria-da-Glória...”
Curvado, Miguel lavava as mãos, no rego do pátio. Os porcos andavam por lá e as galinhas, ciscando no esterco. De toda hora, era o arrulho da pomba-rola, a que se atoleimou de amor. Aquele chão, o campo, as estradas — tudo devia ser liso, ingastável, sem sujo, sem poeira, duro onde se pisasse, de um metal fosco e eterno, impossível de mudança ou corrupção. De vivo e renovável, só as águas, as relvas e as árvores, em recantos — curvos como ilhas — como canteiros aprazíveis. Portanto, havia uma mulher, no Buriti Bom, Maria da Glória. Como Miguel e nhô Gualberto Gaspar ficavam a ver, quando passava um picapau-da-cabeça-vermelha, em seu voo de arranco: que tatala, dando impulso ao corpo, com abas asas, ganha velocidade e altura, e plana, e perde-as, de novo, e se dá novo ímpeto, se recobra, bate e solta, bate e solta, parece uma diástole e uma sístole — um coração na mão —; já atravessou o mundo.
Guimarães Rosa, in Buriti

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