Miguel
operava ativo, vacinando. Ele mesmo não deixava de ver a satisfação
com que nhô Gualberto reparava nisso. Sempre, surdamente, Miguel
guardava temor de estar ocioso e de errar. Um horror de que se
errasse, de que ainda existisse o erro. A mais, como se, de repente,
de alguém, de algum modo, na viração do dia, na fresca da tarde,
estivesse para se atirar contra ele a violência de uma reprovação,
de uma censura injusta. Trabalhava atento, com afinco. Somente assim
podia enfeixar suas forças no movimento pequeno do mundo. Como se
estivesse comprando, aos poucos, o direito a uma definitiva alegria,
por vir, e que ele carecia de não saber qual iria ser. Aí bem que o
sonho era a princípio um jardim de grandes árvores de bela vista,
da banda do nascente, um lugar de agrado. Mas o sonho tinha de ser
tomado apenas em goles curtos, entre hostilidades. O sol repassava,
versado e de fôgo, sertanejo; não parecia estar-se em maio. Miguel
sentia como se seus pensamentos sempre estivessem transparecendo,
devassados por todos. — “Não vê, que: esses bezerros não dão
para levar só metade duma?” — nhô Gualberto perguntava,
segurando uma ampola, que remirava de contraluz. Nhô Gualberto tudo
queria entender, no que fosse de prático. A bezerrada, muito
costeada, mansa, mesmo assim refugia, com a hora de agitação, se
reuniam num ângulo do curral, em cerrado grupo, as cabeças
convergentes, formando uma rosácea. Os vaqueiros escolhiam, seu o
seu, enrodilhavam os laços em pequenas voltas, boleavam, jogavam. O
debater do bezerro já era um começo de submissão. O curral tinha
dois esteios e ainda um pau, um jenipapeiro antigo, árvore que se
guarda porque é sempre meio príncipe, de imponente. Nhô Gualberto
corrigia alguma treta, ralhava brando, como se ralhar fosse também
um ponto da tarefa comum. Andava ficando loquaz. — “Agora, o
senhor cuida daquele. Ah, vendo? Bom boi! Todo boi que não tem o
serrote no encavador, não presta... Eh, é regra aprendida dum
Avelino, homem sabido... Não puxa, não faz força, serve nada pra o
carro...” Lacem este... Agora o senhor vai neste... Nhô Gualberto
chega pegara no braço de Miguel, que o desprendeu, rude. Assim
refugam na estrada os cavalos jovens, quando no luscufo da tardinha
uma casca de palha esvoaça diante. — “O senhor espere. E não
converse, que estorva!” Miguel repontou. Nhô Gualberto obedeceu,
parecia nem ter notado essa mudança de modos. Nem Miguel fizera
atenção ao outro boi indicado. — “Aquele bezerro baio, agora”,
ele ordenou. Os vaqueiros cumpriram, encambixaram. Mas o olhavam, um
tanto esturdiados, com essa curiosidade em que o campônio põe um
pouco de desprezo, para não se debilitar com excesso de admiração.
Aqueles
vaqueiros apreendiam com esquisita sutileza todo momento em que
alguma coisa demudava — para então olharem assim. Antes,
desconfiavam da aparelhagem, do mecanismo das vacinas, quase uma
forma de pecado; queriam o que fosse uma benzedura, com virtude de
raminho verde de planta e mágicas palavras no encoberto — queriam
atalhos. Miguel sabia isso, sentia isso. O cheiro de curral, a poeira
esverdeada do estrabo, eram os mesmos em qualquer fazenda, em toda a
parte. Miguel dispunha dos campeiros: mandou que trouxessem agora o
bezerro caruara — o pobre, que era triste de se ver. O pêlo desse
se arrepiava como em plastras, e ele nem sabia encolher-se, feioso,
magro, tolhido pelo endurecimento das juntas. — “Croara...” —
nhô Gualberto explicou. — “... Não veja que a doença dê em
trem desta idade...” Nhô Gualberto desgostava de que no seu gado
houvesse reses com defeitos. — “O que há aqui é berne, muito.
Em pastos do meu alto-sertão, lá grassa quase imundície
nenhuma...” — Miguel disse, malmente. Nhô Gualberto o espiara,
admirado. — “O senhor é do sertão? Dadonde?” Parecia não
crer. — “Do alto dos gerais. Dum mato, um sitiozinho da serra...
Tenho o jeito não?” — Miguel se ria, com um desdém. Aquele
bezerro caruara dava gastura, de se reparar, era um nôjo, um defeito
no mundo. Como se um erro tivesse falseado seu ser, contra a forma
que devia de ser o molde para ele, a ideia para um bezerro belo; não
podido pois ser realizado. Mais valera não existisse, então, deviam
tê-lo matado. Entretanto, Miguel, ao cuidá-lo, ia tendo maior
paciência, quase com carinho; o bezerro palpitava, com seu calor
infeliz, como criatura muito viva, sem embargo. A morte daquele
bezerro seria uma coisa tristíssima.
— “O
que é a instrução... — O que é a cidade-grande...” — nhô
Gualberto se pasmava. Depois sacudia a cabeça. Estivesse reafirmando
a impossibilidade de com ele ter acontecido uma coisa dessas, uma
sorte tão civilizada. Ele nascera para roceiro, e sua vida já
começava a ir do meio-dia para a tarde. Agora, nhô Gualberto, seus
gestos se repetiam. A vida na roça, devagarinho uma guerra. Nhô
Gualberto de repente falou, sua voz era amiga: — “Lá no Buriti
Bom tem duas moças, quer dizer, tem uma moça, muito linda... Ela é
estudada, também...” Disse, feito estivesse revelando um segredo.
— “O senhor vai conhecer, ela é a filha do iô Liodoro...” Ou
fazendo afetuoso oferecimento: — “Essa, é que é moça para se
casar com um doutor... Nome dela é Maria-da-Glória...”
Curvado,
Miguel lavava as mãos, no rego do pátio. Os porcos andavam por lá
e as galinhas, ciscando no esterco. De toda hora, era o arrulho da
pomba-rola, a que se atoleimou de amor. Aquele chão, o campo, as
estradas — tudo devia ser liso, ingastável, sem sujo, sem poeira,
duro onde se pisasse, de um metal fosco e eterno, impossível de
mudança ou corrupção. De vivo e renovável, só as águas, as
relvas e as árvores, em recantos — curvos como ilhas — como
canteiros aprazíveis. Portanto, havia uma mulher, no Buriti Bom,
Maria da Glória. Como Miguel e nhô Gualberto Gaspar ficavam a ver,
quando passava um picapau-da-cabeça-vermelha, em seu voo de arranco:
que tatala, dando impulso ao corpo, com abas asas, ganha velocidade e
altura, e plana, e perde-as, de novo, e se dá novo ímpeto, se
recobra, bate e solta, bate e solta, parece uma diástole e uma
sístole — um coração na mão —; já atravessou o mundo.
Guimarães
Rosa, in Buriti
Nenhum comentário:
Postar um comentário