quinta-feira, 23 de julho de 2020

O lobo adormecido

Foi por essa época que os jornais se encheram com a fuga audaciosa de um condenado da prisão de San Quentin. Era um homem feroz. Fora mal feito. Não nascera direito e não tivera nenhuma ajuda da modelagem que recebera nas mãos da sociedade. As mãos da sociedade eram duras, e esse homem constituía uma amostra impressionante de seu trabalho manual. Era uma besta – uma besta humana, é verdade, mas ainda assim uma besta tão terrível que talvez fosse mais bem caracterizada como carnívora.
Na prisão de San Quentin, ele se mostrara incorrigível. O castigo não conseguiu dobrar o seu espírito. Podia morrer numa loucura surda e lutando até o fim, mas não conseguia viver sendo surrado. Quanto mais ferozmente lutava, com mais aspereza a sociedade o tratava, e o único efeito dessa dureza era torná-lo mais violento. Camisas de força, regimes de fome, surras e pancadas eram o tratamento errado para Jim Hall, mas foi o tratamento que recebeu. Era o tratamento que tinha recebido desde os seus tempos de menino gorducho numa favela de San Francisco – argila macia nas mãos da sociedade e pronta a ser modelada.
Foi durante o terceiro período de Jim Hall na prisão que ele encontrou um guarda quase tão animal quanto ele. O guarda tratou-o injustamente, mentiu sobre Jim Hall para o diretor, causou a perda de seu bom conceito, perseguiu-o. A diferença entre eles era que o guarda carregava um molho de chaves e um revólver. Jim Hall tinha apenas as mãos nuas e os dentes. Mas ele pulou sobre o guarda certo dia e usou os dentes na garganta do outro como qualquer animal da selva.
Depois disso, Jim Hall foi viver na solitária. Ali viveu por três anos. A cela era de ferro, o chão, as paredes, o telhado. Nunca saía dessa cela. Nunca via o céu, nem a luz do sol. O dia era um crepúsculo e a noite, um silêncio negro. Ele estava numa tumba de ferro, enterrado vivo. Não via nenhuma face humana, não falava com nenhum humano. Quando a comida era enfiada na cela, rosnava como um animal selvagem. Odiava todas as coisas. Por dias e noites, urrou a sua fúria ao universo. Por semanas e meses, jamais produziu um som, devorando no silêncio negro a própria alma. Era um homem e uma monstruosidade, tão temível quanto qualquer visão que já assombrou um cérebro enlouquecido.
E então, certa noite, ele escapou. O diretor da prisão disse que era impossível, mas ainda assim a cela estava vazia e, despedaçado em duas metades no lado de fora, estava o corpo de um guarda morto. Os outros guardas mortos marcavam a sua trilha pela prisão até os muros externos, e ele matara com as mãos para evitar fazer barulho.
Estava com as armas dos guardas assassinados – um arsenal vivo a fugir pelos morros, perseguido pelo poder organizado da sociedade. Havia um substancial prêmio de ouro pela sua cabeça. Fazendeiros avarentos o caçavam com espingardas. O seu sangue poderia pagar uma hipoteca ou enviar um filho para a universidade. Cidadãos de espírito público baixavam os seus rifles e partiam em busca de Jim Hall. Um bando de cães de caça seguia o rastro de seus pés ensanguentados. E os sabujos investigadores, os lutadores pagos da sociedade, com telefone, telégrafo e trem especial, agarravam-se à sua trilha noite e dia.
Às vezes deparavam-se com o fugitivo, e os homens o enfrentavam como heróis, ou estouravam como uma boiada pelas cercas de arame farpado, para o grande deleite da comunidade que lia a história à mesa do café da manhã. Depois desses encontros, os mortos e feridos eram transportados em carroças para as cidades, e os seus lugares preenchidos por outros homens ansiosos pela caçada humana.
E então Jim Hall desapareceu. Os sabujos buscaram em vão o rastro perdido. Vaqueiros inofensivos em vales remotos eram detidos por homens armados e obrigados a se identificarem, enquanto os restos mortais de Jim Hall eram descobertos numa dúzia de encostas por homens gananciosos que reclamavam o dinheiro do seu sangue.
Nesse meio tempo, os jornais eram lidos em Sierra Vista, menos por interesse que por ansiedade. As mulheres estavam com medo. O juiz Scott não levava a história a sério e ria, mas sem razão, pois foi nos seus últimos dias no tribunal que Jim Hall se postara à sua frente e recebera a sentença. E, na sala aberta do tribunal, Jim Hall proclamara que chegaria o dia em que se vingaria do juiz que o condenara.
Pelo menos daquela vez, Jim Hall tinha razão. Era inocente do crime pelo qual fora condenado. Era um caso, no jargão dos ladrões e da polícia, de “falso pretexto”. Jim Hall estava sendo “conduzido” à prisão por um crime que não tinha cometido. Devido às duas condenações anteriores, o Juiz Scott lhe impôs uma sentença de cinquenta anos.
O juiz Scott não conhecia todos os detalhes, e não sabia que fazia parte de uma conspiração policial, que a evidência era tramada e fruto de falso testemunho, que Jim Hall não tinha culpa do crime de que o acusavam. E Jim Hall, por outro lado, não sabia que o juiz Scott apenas ignorava os detalhes. Jim Hall acreditava que o juiz sabia tudo sobre o caso e estava mancomunado com a polícia na perpetração da monstruosa injustiça. Assim, quando o destino de cinquenta anos de morte em vida foi pronunciado pelo juiz Scott, Jim Hall, odiando todas as coisas na sociedade que o maltratava, levantou-se e teve uma crise de fúria na sala do tribunal, até ser derrubado por meia dúzia de seus inimigos policiais. Para ele, o juiz Scott era a pedra fundamental no arco da injustiça, e sobre o juiz Scott ele esvaziou os frascos da sua ira e lançou as ameaças de sua futura vingança. Depois Jim Hall partiu rumo à sua morte em vida... e escapou.
De tudo isso, Caninos Brancos nada sabia. Mas entre ele e Alice, a esposa do dono, existia um segredo. Toda noite, depois que Sierra Vista já se retirara para dormir, ela se levantava e deixava Caninos Brancos entrar para dormir no saguão grande. Ora, Caninos Brancos não era um cachorro do interior da casa, nem tinha permissão de dormir na casa; assim toda manhã, bem cedo, ela descia furtiva e deixava que ele saísse antes que a família acordasse.
Numa dessas noites, enquanto toda a casa dormia, Caninos Brancos despertou e continuou deitado muito quieto. E muito quieto farejou o ar, lendo a mensagem que trazia sobre a presença de um deus estranho. E aos seus ouvidos chegaram os sons dos movimentos do deus estranho. Caninos Brancos não irrompeu num alarido furioso. Não era a sua maneira de ser. O deus estranho caminhava sem fazer barulho, porém mais silenciosamente caminhava Caninos Brancos, porque ele não tinha roupas que roçassem contra a carne do corpo. Seguiu em silêncio. Na Floresta tinha caçado caça viva infinitamente pequena, e conhecia a vantagem da surpresa.
O deus estranho parou ao pé da grande escada e escutou, e Caninos Brancos estava tão morto, tão sem movimento que observou e esperou. No alto da escada, a passagem conduzia ao senhor do amor e às posses mais queridas do senhor do amor. Caninos Brancos eriçou o pelo, mas esperou. O pé do deus estranho ergueu-se. Ele estava começando a subida.
Foi então que Caninos Brancos atacou. Não deu nenhum aviso, nenhum rosnado antecipou a sua ação. Ergueu o corpo no ar com o pulo que o fez aterrissar nas costas do deus estranho. Caninos Brancos agarrou-se com as patas dianteiras aos ombros do homem, enterrando ao mesmo tempo as presas na sua nuca. Agarrou-se por um momento, o bastante para derrubar o deus de costas. Juntos espatifaram-se no chão. Caninos Brancos soltou-se com um pulo e, quando o homem lutava para se levantar, atacou de novo com as presas cortantes.
Sierra Vista acordou alarmada. O barulho que vinha do andar térreo era como o de vinte demônios em batalha. Escutaram-se tiros de revólver. A voz de um homem gritou de horror e angústia. Houve muitos rosnados e grunhidos, e acima de tudo elevava-se o som de estilhaços e o estrondo de mobília e vidro.
Mas quase tão rápido quanto tinha irrompido, a comoção esmoreceu. A luta não tinha durado mais que três minutos. O pessoal da casa assustado se aglomerou no topo da escada. Lá de baixo, como se de um abismo de escuridão, subia um som de gorgolejo, como de ar fazendo bolhas na água. Às vezes esse gorgolejar tornava-se sibilante, quase um assobio. Mas isso também esmoreceu rapidamente e cessou. Já nenhum som subia da escuridão, a não ser o ofegar pesado de uma criatura lutando dolorosamente por um pouco de ar.
Weedon Scott apertou um botão, e a escada e o saguão térreo foram inundados de luz. Ele e o juiz Scott, revólveres na mão, desceram cautelosamente. Não havia necessidade para essa cautela. Caninos Brancos tinha cumprido o seu dever. No meio dos destroços da mobília derrubada e despedaçada, deitado um pouco de lado, a face escondida por um dos braços, estava um homem. Weedon Scott inclinou-se, retirou o braço e virou a face do homem para cima. A garganta aberta explicava a maneira da sua morte.
Jim Hall – disse o juiz Scott, e pai e filho olharam significativamente um para o outro.
Depois voltaram-se para Caninos Brancos. Ele também estava deitado de lado. Os olhos estavam fechados, mas as pálpebras se ergueram de leve com o esforço de olhar para os deuses que se inclinavam sobre ele, e o rabo agitou-se perceptivelmente num vão esforço de abanar. Weedon Scott o afagou, e a garganta roncou um rosnado de reconhecimento. Mas era um rosnado fraco quando muito, e logo cessou. As pálpebras se abaixaram e fecharam, e todo o corpo pareceu relaxar e achatar-se sobre o chão.
Ele está liquidado, pobre diabo – resmungou o dono.
Vamos cuidar disso – afirmou o juiz, enquanto partia para o telefone.
Francamente, ele tem uma chance em mil – anunciou o cirurgião, depois de trabalhar uma hora e meia em Caninos Brancos.
O amanhecer irrompia pelas janelas e enfraquecia as luzes elétricas. À exceção das crianças, toda a família estava reunida ao redor do cirurgião para ouvir o seu veredicto.
Uma pata traseira quebrada – continuou. – Três costelas quebradas, e pelo menos uma delas perfurou os pulmões. Perdeu quase todo o sangue do corpo. Há uma grande probabilidade de lesões internas. Alguém deve ter saltado sobre ele. Isso sem falar nos três buracos de bala que o trespassaram. Uma chance em mil é realmente otimista. Ele não tem uma chance em dez mil.
Mas ele não deve perder nenhuma chance – exclamou o juiz Scott. – Não faça caso das despesas. Tire raios X... qualquer coisa. Weedon, telegrafe imediatamente para San Francisco e procure o doutor Nichols. Nada contra o senhor, doutor, compreenda, mas ele tem que aproveitar qualquer chance.
O cirurgião sorriu indulgentemente.
Claro que compreendo. Merece tudo o que pode ser feito por ele. Deve ser cuidado como se cuidaria de um ser humano, uma criança doente. E não esqueça o que lhe disse sobre a temperatura. Volto às dez horas de novo.
Caninos Brancos recebeu todos os cuidados. A sugestão do juiz Scott de uma enfermeira profissional foi rejeitada com indignação pelas meninas, que se encarregaram elas próprias da tarefa. E Caninos Brancos conquistou a única chance em dez mil que o cirurgião lhe negara.
O último não deve ser censurado pelo seu julgamento errôneo. Durante toda a sua vida tratara e operara humanos delicados da civilização, que levavam vidas abrigadas e descendiam de muitas gerações protegidas. Comparados a Caninos Brancos, eram frágeis e débeis, agarrando a vida sem nenhuma força na sua garra. Caninos Brancos viera diretamente da Floresta, onde os fracos morrem cedo e não se concede abrigo a ninguém. Nem no seu pai, nem na sua mãe havia alguma fraqueza, nem nas gerações anteriores. Uma constituição de ferro e a vitalidade da Floresta eram a herança de Caninos Brancos, e ele se agarrava à vida, com todo o seu ser e todas as suas partes, em espírito e carne, com a tenacidade que outrora pertencia a todas as criaturas.
Amarrado prisioneiro, sem poder fazer nenhum movimento por causa do gesso e das ataduras, Caninos Brancos passou semanas enfraquecido. Dormia por longas horas e sonhava muito, e pela sua mente cruzava um desfile interminável de visões da Terra do Norte. Todos os fantasmas do passado se manifestaram e vieram lhe fazer companhia. Mais uma vez viveu na toca com Kiche, subiu tremendo nos joelhos de Castor Cinza para lhe oferecer a sua submissão, correu para salvar a vida diante de Lip-lip e de todo o tumulto uivante do bando de filhotes.
Cruzou mais uma vez o silêncio, caçando o alimento vivo durante os meses da escassez, e de novo correu à frente da matilha do trenó, os chicotes de tripa de Mit-sah e Castor Cinza estalando atrás, as vozes gritando “Raa! Raa!” quando chegavam a uma passagem estreita e a matilha se fechava como um leque para passar. Viveu novamente todos os seus dias com Beleza Smith e as lutas que tinha travado. Nessas horas choramingava e rosnava no seu sono, e aqueles que o observavam diziam que estava tendo sonhos ruins.
Mas havia um pesadelo especial que o fazia sofrer muito – os monstros dos bondes tinindo e tilintando que eram para ele linces colossais aos berros. Ele se deitava ao abrigo de uns arbustos, esperando que um esquilo se aventurasse para bem longe do seu refúgio na árvore. Depois, quando pulava sobre o animalzinho, ele se transformava num bonde, ameaçador e terrível, elevando-se acima dele como uma montanha, berrando, tinindo e cuspindo fogo sobre ele. Acontecia o mesmo quando desafiava o gavião a descer do céu. Do alto do azul ele descia veloz, quando caía sobre Caninos Brancos, transformando-se no bonde ubíquo. Ou, ainda, ele estava no cercado de Beleza Smith. Fora do cercado, os homens começavam a se reunir, e ele sabia que haveria uma luta. Observava a porta à espera de seu antagonista. A porta se abria, e, lançando-se sobre ele, vinha o terrível bonde. Mil vezes isso ocorria, e a cada vez o terror que inspirava era vívido e enorme como nunca.
Por fim, chegou o dia em que a última atadura e o último gesso foram retirados. Foi um dia de gala. Toda a Sierra Vista se reuniu ao redor. O dono lhe esfregou as orelhas, e ele emitiu o rosnado de amor. A esposa do dono o chamou de “Bendito Lobo”, nome que foi adotado com aclamação e todas as mulheres o chamavam de Bendito Lobo.
Ele tentou se levantar, mas, depois de várias tentativas, caiu de fraqueza. Passara tanto tempo deitado que os músculos tinham perdido a agilidade, e toda a força os abandonara. Sentiu um pouco de vergonha por causa da sua fraqueza, como se deveras estivesse faltando ao serviço que devia aos deuses. Por essa razão, fez esforços heroicos para se levantar, e por fim ficou de pé sobre as quatro patas, cambaleando e balançando para frente e para trás.
Bendito Lobo! – entoou o coro das mulheres.
O juiz Scott as observava triunfante.
Que seja como suas bocas acabaram de declarar – falou. – Exatamente como sempre afirmei. Um mero cachorro não poderia ter feito o que ele fez. É um lobo.
Um Bendito Lobo! – emendou a esposa do juiz.
Sim, Bendito Lobo – concordou o juiz. – E, a partir de agora, é assim que vou chamá-lo.
Ele vai ter de aprender a caminhar de novo. – disse o cirurgião. – E bem que poderia começar desde já. O esforço não vai machucá-lo. Levem-no para fora.
E para fora ele partiu, como um rei, com toda a Sierra Vista ao seu redor e cuidando dele. Estava muito fraco, e quando chegou ao gramado deitou-se e descansou um pouco.
Depois o cortejo continuou o seu caminho, pequenos jorros de força entrando nos músculos de Caninos Brancos, à medida que ele os usava e o sangue começava a percorrê-los. Chegaram aos estábulos e ali, na soleira da porta, estava Collie com meia dúzia de filhotes gorduchos brincando à sua volta ao sol.
Caninos Brancos observou a cena com um olhar admirado. Collie rosnou avisando-o, e ele cuidou para manter a distância. Com o pé, o dono ajudou um filhote a se arrastar na direção de Caninos Brancos. Ele eriçou o pelo cheio de suspeitas, mas o dono lhe avisou que tudo estava bem. Collie, presa nos braços de uma das mulheres, observava ciumenta, e com um rosnado lhe avisou que nem tudo estava bem.
O filhote se espraiou na sua frente. Ele levantou as orelhas e observou-o curioso. Os focinhos se tocaram, e ele sentiu a pequena língua quente do filhote na sua queixada. A língua de Caninos Brancos veio para fora, ele não sabia bem por que, e ele lambeu a face do filhote.
Aplausos e gritos satisfeitos dos deuses saudaram a cena. Ele ficou surpreso e olhou-os perplexo. Depois a fraqueza o venceu, e ele se deitou, as orelhas de pé, a cabeça inclinada sobre um lado, observando o filhote. Os outros filhotes vieram se arrastando até Caninos Brancos, para grande desgosto de Collie, e ele permitiu com um ar sério que trepassem e caíssem sobre o seu corpo. A princípio, entre os aplausos dos deuses, deixou transparecer um pouco do seu antigo constrangimento e embaraço. Mas depois isso passou, enquanto continuavam as cambalhotas e as pancadas dos filhotes, e ele se deixou ficar deitado, com os olhos pacientes e meio fechados, cochilando ao sol.
Jack London, Caninos Brancos

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