segunda-feira, 13 de julho de 2020

O chamado da espécie

Os meses iam e vinham. Havia muita comida e nenhum trabalho na Terra do Sul, e Caninos Brancos vivia gordo, próspero e feliz. Ele não estava apenas no sul geográfico, mas no sul da vida. A bondade humana era como um sol brilhante sobre Caninos Brancos, e ele florescia como uma flor plantada em terra boa.
Mas continuava de certa maneira diferente dos outros cachorros. Conhecia a lei até melhor do que os cachorros que não tinham conhecido outra vida, e observava a lei mais escrupulosamente, mas ainda assim havia nele uma sugestão de ferocidade à espreita, como se a Floresta ainda permanecesse em Caninos Brancos e o lobo dentro dele apenas dormisse.
Ele nunca fazia amizade com os outros cachorros. Tinha vivido solitário, no que dizia respeito à sua espécie, e solitário continuaria a viver. Nos seus dias de filhote, sob a perseguição de Lip-lip e o bando de cachorrinhos, e nos seus dias de luta com Beleza Smith, ele tinha adquirido uma aversão fixa por cachorros. O curso natural da sua vida fora desviado, e, afastando-se da sua espécie, ele se ligara ao humano.
Além disso, todos os cachorros do sul o olhavam com suspeição. Ele despertava neles o medo instintivo da Floresta, e eles sempre o saudavam com rosnados, grunhidos e um ódio beligerante. Por outro lado, aprendeu que não era necessário usar os seus dentes neles. As presas à mostra e os lábios torcidos eram em geral eficazes, raramente deixando de forçar o cachorro que investia aos gritos a recuar sobre as ancas.
Mas havia um tormento na vida de Caninos Brancos – Collie. Ela nunca lhe dava um momento de paz. Não era tão receptiva à lei como ele. Desafiava todos os esforços do dono para que se tornasse amiga de Caninos Brancos. Nos ouvidos desse, nunca deixava de soar o seu rosnado agudo e nervoso. Ela nunca lhe perdoara o episódio da matança das galinhas, e persistia na crença de que as intenções de Caninos Brancos eram ruins. Ela o considerava culpado antes do ato, e tratava-o de acordo com esse julgamento. Tornou-se uma peste para ele, seguindo-o como um policial pelo estábulo e pelo terreno, e se ele se atrevia a olhar curiosamente para uma pomba ou galinha, irrompia num alarido de indignação e fúria. Quanto a Caninos Brancos, o modo favorito de ignorá-la era deitar-se, com a cabeça sobre as patas dianteiras, e fingir que dormia. Isso sempre a confundia e silenciava.
À exceção de Collie, tudo ia bem para Caninos Brancos. Ele aprendera controle e equilíbrio, e conhecia a lei. Alcançou uma serenidade, uma calma, uma tolerância filosófica. Já não vivia num ambiente hostil. O perigo, a dor e a morte não rondavam à espreita por toda parte. Com o tempo, o desconhecido, como um terror e ameaça sempre iminente, esmaecia. A vida era suave e fácil. Fluía sem obstáculos, e nem o medo nem o inimigo o espreitavam pelo caminho.
Sentia saudades da neve sem disso ter consciência. “Um verão estranhamente longo” teria sido o seu pensamento, se tivesse pensado a respeito; nas circunstâncias, apenas sentia saudades da neve de um modo vago e subconsciente. Da mesma forma, especialmente no calor do verão quando sofria com o sol forte, experimentava tênues saudades do norte. No entanto, o único efeito dessa saudade sobre Caninos Brancos era deixá-lo inquieto e desassossegado sem saber o que o incomodava.
Caninos Brancos jamais fora de demonstrar o afeto. Além de se aconchegar e introduzir uma nota sentimental no seu grunhido de amor, não tinha como expressar o seu sentimento. Mas foi-lhe dado descobrir uma terceira maneira. Ele sempre fora suscetível ao riso dos deuses. O riso sempre lhe provocara loucura, deixando-o frenético de raiva. Mas não estava na sua natureza zangar-se com o senhor do amor, e quando o deus decidiu rir de Caninos Brancos de um modo bonachão e por brincadeira, ele ficou confuso. Sentiu a ferroada e o acicate da velha raiva lutando para crescer no seu interior, mas ela lutava contra o amor. Não conseguiu se zangar, mas tinha de fazer alguma coisa. A princípio assumiu uma pose digna, e o dono riu ainda mais. Depois tentou ser mais digno, e o dono riu com mais força do que antes. Por fim, os risos do dono acabaram com a sua dignidade. As mandíbulas se abriram levemente, os lábios levantaram um pouco, uma expressão zombeteira, mais amor que humor, apareceu nos seus olhos. Ele aprendera a rir.
Da mesma forma, aprendeu a fazer brincadeiras com o dono, a ser derrubado e rolado pelo chão, a ser a vítima de inúmeros truques violentos. Em troca fingia raiva, eriçando o pelo e rosnando ferozmente, estalando os dentes em mordidas que tinham toda a aparência de intenção mortal. Mas ele nunca perdia a cabeça. As mordidas eram sempre dadas no ar vazio. Ao fim de uma dessas brincadeiras rudes, quando os golpes, bofetadas, mordidas e rosnados eram rápidos e furiosos, eles se separavam de repente e paravam a alguns metros de distância, olhando um para o outro. E depois, com a mesma subitaneidade, como o sol nascendo num mar de tempestade, começavam a rir. Isso sempre culminava com os braços do dono se fechando ao redor do pescoço e ombros de Caninos Brancos, enquanto o último emitia e rosnava o seu canto de amor.
Mas ninguém mais fazia dessas brincadeiras com Caninos Brancos. Ele não o permitia. Fazia questão da sua dignidade e, quando tentavam qualquer brincadeira, o seu rosnado de aviso e o pelo eriçado eram tudo menos travessos. O fato de dar ao dono essas liberdades não era razão para que fosse um cachorro comum, amando aqui e amando ali, o objeto de qualquer um para uma brincadeira e uma boa diversão. Ele amava com um coração exclusivista, recusando-se a baratear a si mesmo ou ao seu amor.
O dono saía bastante a cavalo, e acompanhá-lo era um dos principais deveres na vida de Caninos Brancos. Na Terra do Norte, ele demonstrara a sua lealdade labutando nos arreios; mas não havia trenós na Terra do Sul, nem os cachorros transportavam cargas nos lombos. Assim ele manifestava a sua lealdade de outro modo, correndo com o cavalo do dono. O dia mais longo jamais o deixava exausto. Ele tinha o caminhar do lobo, macio, incansável e sem esforço, e ao final de oitenta quilômetros chegava lépido à frente do cavalo.
Foi em conexão com as cavalgadas que Caninos Brancos alcançou outro modo de expressão – notável porque o utilizou apenas duas vezes em toda a sua vida. A primeira vez ocorreu quando o dono estava tentando ensinar a um puro-sangue fogoso o método de abrir e fechar portões sem que o cavaleiro precisasse apear. Muitas e repetidas vezes, ele emparelhou o cavalo com o portão tentando fechá-lo, mas toda vez o cavalo se assustava, recuava e arremetia para longe. O animal ficava mais nervoso e excitado a cada momento. Quando empinava, o dono o esporeava obrigando-o a repor as patas dianteiras no chão, com o que ele começava a dar coices com as patas traseiras. Caninos Brancos observava esses movimentos com uma ansiedade crescente até não poder mais se conter, quando pulou na frente do cavalo e latiu selvagem e ameaçadoramente.
Embora muitas vezes tentasse latir depois desse episódio, e o dono o encorajasse, só conseguiu latir apenas mais uma vez, e então não foi na presença do dono. Uma correria pelo pasto, uma lebre aparecendo de repente embaixo das patas do cavalo, uma guinada violenta, um tropeção, uma queda e uma perna quebrada para o dono foram a causa do latido. Caninos Brancos pulou com fúria na garganta do cavalo agressor, mas foi contido pela voz do dono.
Para casa! Vá para casa! – comandou o dono, quando tinha se certificado do seu ferimento.
Caninos Brancos não tinha vontade de abandoná-lo. O dono pensou em escrever uma nota, mas procurou em vão lápis e papel nos seus bolsos. Mais uma vez ordenou que Caninos Brancos fosse para casa.
O último o olhou ansioso, partiu, depois retornou e ganiu baixinho. O dono lhe falou com uma voz gentil mas séria, e ele levantou as orelhas e escutou com uma atenção dolorida.
Tudo bem, meu velho, apenas corra para casa – dizia a voz. – Vá para casa e conte o que aconteceu comigo. Para casa, lobo. Trate de ir para casa!
Caninos Brancos sabia o significado de “casa” e, embora não compreendesse o restante da conversa, sabia que a vontade do dono era que ele fosse para casa. Virou-se e partiu relutante. Depois parou, indeciso, e olhou para trás por cima do ombro.
Para casa! – foi o comando áspero, e desta vez ele obedeceu.
A família estava na varanda, tomando o ar fresco da tarde, quando Caninos Brancos apareceu. Meteu-se entre as pessoas, ofegante, coberto de poeira. – Weedon está de volta – anunciou a mãe de Weedon.
As crianças acolheram Caninos Brancos com gritos de alegria e correram ao seu encontro. Ele as evitou e passou pela varanda, mas elas o encurralaram contra uma cadeira de balanço e a balaustrada. Ele rosnou e tentou abrir caminho entre elas. A mãe olhou apreensiva na sua direção.
Confesso que ele me deixa nervosa ao redor das crianças – disse. – O meu pavor é que algum dia ele as ataque sem mais nem menos.
Rosnando selvagemente, Caninos Brancos pulou do seu canto, derrubando o menino e a menina. A mãe os chamou e consolou, dizendo-lhes para deixar Caninos Brancos em paz.
Um lobo é um lobo – comentou o juiz Scott. – Não dá para confiar em nenhum.
Mas ele não é todo lobo – interveio Beth, falando pelo irmão na sua ausência.
Você só tem a opinião de Weedon a esse respeito – replicou o juiz. – Ele meramente presume que haja algum sangue de cachorro em Caninos Brancos, mas, como ele próprio lhe dirá, nada sabe a esse respeito. Quanto à aparência de Caninos Brancos...
Ele não terminou a frase. Caninos Brancos estava na sua frente, rosnando ferozmente.
Vai embora! Deita! – comandou o juiz Scott.
Caninos Brancos virou-se para a esposa do senhor do amor. Ela gritou de susto, quando ele agarrou o vestido com os dentes e puxou-o até o tecido frágil se rasgar. A essa altura, Caninos Brancos tinha se tornado o centro das atenções. Ele deixara de rosnar e estava parado, a cabeça levantada, olhando nas suas faces. A garganta se mexia espasmodicamente, mas não produzia som, enquanto ele lutava com todo o seu corpo, convulsionado pelo esforço de livrar-se de algo incomunicável que forcejava para ser expresso.
Espero que não esteja ficando louco – disse a mãe de Weedon. – Falei para Weedon que o clima quente talvez não fizesse bem a um animal ártico.
Acho que ele está tentando falar – anunciou Beth.
Nesse momento a fala acudiu a Caninos Brancos, irrompendo numa grande explosão de latidos.
Alguma coisa aconteceu a Weedon – disse a esposa resolutamente.
Agora estavam todos de pé, e Caninos Brancos desceu correndo os degraus, olhando para trás para que o seguissem. Pela segunda e última vez na sua vida, ele latira e se fizera compreender.
Depois desse acontecimento, Caninos Brancos encontrou um lugar mais caloroso nos corações do pessoal de Sierra Vista, e até o criado cujo braço ele tinha rasgado admitia que era um cachorro muito sábio, mesmo que fosse um lobo. O juiz Scott ainda mantinha a sua opinião, e para o desagrado de todos provava o seu pensamento por medições e descrições tiradas da enciclopédia e de várias obras de história natural.
Os dias iam e vinham, despejando o brilho ininterrupto do sol sobre o Vale Santa Clara. Mas, quando se tornaram mais curtos e começou o segundo inverno de Caninos Brancos na Terra do Sul, ele fez uma estranha descoberta. Os dentes de Collie já não eram afiados. Havia um quê de brincadeira nas suas mordidas e uma gentileza que os impedia de machucar de verdade. Ele esqueceu que ela tornara a sua vida um fardo e, quando ela cabriolava ao seu redor, reagia de forma solene, procurando ser brincalhão e tornando-se nada menos que ridículo.
Certo dia, ela o levou para uma longa perseguição pelo pasto dos fundos e dentro da mata. Era a tarde em que o dono devia cavalgar, e Caninos Brancos sabia disso. O cavalo estava selado e esperando à porta. Caninos Brancos hesitou. Mas havia nele algo mais profundo do que toda a lei que tinha aprendido, do que os costumes que lhe foram incutidos, do que o seu amor pelo dono, do que a própria vontade de viver isolado; e quando, no momento de sua indecisão, Collie lhe deu uma mordida e saiu correndo, ele virou-se e seguiu atrás. O dono cavalgou sozinho naquele dia; e na mata, lado a lado, Caninos Brancos correu junto a Collie, assim como a sua mãe, Kiche, e o velho Caolho tinham corrido há muitos anos na silenciosa floresta boreal.
Jack London, in Caninos Brancos

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