Um
dos martírios da vida social moderna é o buffet. Ele nasceu
com boas intenções, como resposta à necessidade de alimentar da
maneira mais prática o maior número de pessoas com o máximo de
elegância possível. Isto é, sem que a festa pareça um rififi
no refeitório. É difícil servir 300 ou 400 pessoas nas suas mesas
e ao mesmo tempo, à francesa, a não ser que haja quase tantos
garçons quanto convidados. A solução, já que a comida não pode
ir às pessoas, é as pessoas irem à comida. Outra vantagem do é
que, com todos os pratos concentrados sobre uma única e bem
ornamentada mesa, ele dá a correta impressão de abundância. Que é,
afinal, o que nos leva a festas. Todo buffet é uma alegoria à
fartura. Há cascatas de camarões, leitões esquartejados e
remontados sobre pedestais de farofa, everestes de maionese,
continentes de saladas e de frios. Uma vez, juro, vi um faisão
empalhado no centro da mesa, na pose de quem se preparava para
decolar deste insensato mundo. Só o que o mantinha na terra era a
sua própria carne, em fatias, a seus pés. Diante de um buffet
você deve se debater entre dois sentimentos: a vontade de comer tudo
e o remorso por estragar a arquitetura. Depois, é claro, de
agradecer à providência por pertencer aos 30% da população que
comem e à minoria ainda menor que é convidada a buffets.
Pois o buffet também é a apoteose da boca-livre.
Os
críticos mais moderados do buffet o comparam a uma linha de
montagem, e fazem uma injustiça. A linha de montagem é mais
organizada. Ao redor de uma mesa de buffet o ser humano
reverte ao seu protótipo mais primitivo: a fera diante do alimento.
A pátina de civilização se quebra, como o exterior caramelado do
presunto, e é cada um por si e pelo seu estômago. Já vi velhos
amigos duelarem a empurrões diante de um rosbife, e marido e mulher
chegarem aos tapas na disputa do último camarão. Porque a verdade é
que o buffet não dá certo. Ele pressupõe um desprendimento
com relação à comida que ninguém tem. Embora alguns finjam que
têm.
— Vou
esperar que os selvagens se sirvam e depois vou até lá — diz ele,
sorrindo com desprezo para a horda em volta da mesa.
— Eu,
se fosse você, não esperava. O bolo de peixe já estava pela metade
— avisa alguém.
— Epa
— diz ele, e mergulha no meio da horda, usando os cotovelos para
abrir caminho.
Mas
o buffet é irreversível e o negócio é aprender a conviver
com ele. Existem algumas regras de conduta que nos ajudam a sair de
um buffet, mesmo o mais concorrido, razoavelmente bem
alimentados e sem danos, fora alguns rasgões na roupa. Aprendi com a
experiência e tenho as marcas de garfo na mão para provar. Tome
nota.
Antes
de mais nada, não obedeça a ordens. É comum o anfitrião sugerir,
bem-humorado, alguma espécie de hierarquia no acesso ao buffet.
Primeiro, as mesas deste lado ou daquele, primeiro os mais velhos, as
autoridades, os mutilados de guerra etc. Ignore-o. Seja o primeiro a
saltar da mesa, mesmo fora de ordem. O máximo que pode acontecer é
você receber olhares feios. O que importa isto diante de uma cascata
de camarões ainda intocada e da oportunidade de escolher os melhores
tomates? Nunca desmereça as vantagens de chegar primeiro.
Estude
o terreno — O planejamento é importantíssimo. Ao entrar na
festa, examine cuidadosamente o buffet. Resista à tentação
de começar a botar camarões no bolso. Isto é apenas um
reconhecimento.
Decore
a localização dos pratos mais importantes.
Geralmente,
há 17 tipos diferentes de salada de batata. Concentre-se numa para
não perder tempo depois.
Faça
uma anotação mental do melhor acesso à lagosta, se houver.
Lembre-se de que dois ou três pedaços de lagosta valem uma travessa
de peito de peru em qualquer mercado de valores do mundo. Decida-se
por uma estratégia de ataque. Se preciso, estude uma ação
diversionista. Na hora de avançar, dirija-se resolutamente para os
embutidos e, à última hora, desvie rapidamente para a lagosta,
confundindo o inimigo.
Macetes
— Com o tempo, você os desenvolverá sozinho. Cada um tem seu
estilo. Alguns lembretes, no entanto. Se possível, sirva-se com dois
pratos, com o pretexto de que está servindo a sua mulherzinha, ou o
seu maridinho, também. Se você realmente está com sua mulher ou
seu marido, melhor. Ela ou ele pode fazer o mesmo e dizer que está
servindo você. O trabalho em equipe é importante desde que se
combine previamente quem ficará com todos os camarões. Atenção:
jamais use a colherzinha que está junto ao pote para servir o caviar
se houver uma colher de sopa à mão.
Seja
impiedoso — Está bem, ninguém quer ser imoral, mas estamos
falando de comida! Se a pessoa à sua frente não se mexe e impede
seu acesso aos mexilhões, que desaparecem rapidamente, use o cabo do
garfo discretamente entre a última e a penúltima costela. Se não
der certo, use a ponta do garfo. Espalhe o boato de que o leitão no
centro é de plástico e só está ali como enfeite. Finja que vai
verificar e apalpe todo o leitão com as mãos. Diga coisas como:
“Ninguém se mova, acho que caiu uma mosca na vitela tonê.”
Pegue todo o prato, dando a entender que vai despejá-lo pela janela.
Espirre, distraidamente, em cima dos cogumelos.
Use
coação — Geralmente, há um garçom servindo o prato quente.
Provavelmente estrogonofe. É comum o garçom carregar no arroz para
poupar o estrogonofe. Ao apresentar seu prato, encare-o e diga, com o
olhar: “Eu conheço a sua laia, patife. Se me sonegar o
estrogonofe, enfiarei a sua cabeça no molho vinagrete até que você
morra!”. Despeça-se dele dando a entender que voltará em breve e
ai dele se disser qualquer coisa como “você por aqui de novo?”.
No caso de você e outro convidado espetarem o último pedaço de
matambre ao mesmo tempo, sorria enquanto lhe aplica um pontapé. É
incrível o que se consegue com um sorriso.
Você
conseguiu e já está saboreando o prato quente enquanto outros,
menos empreendedores, ainda nem chegaram perto dos tomates. Não se
desmobilize, no entanto. Lembre-se de que ainda falta a batalha dos
doces.
Luís
Fernando Veríssimo, in A mesa voadora
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