quinta-feira, 2 de julho de 2020

Em Herat

Na borda da clareira, havia um mirante onde Mariam gostava de ficar. Nesse momento, estava sentada ali, na grama quente e seca. Podia-se ver Herat, espalhada lá embaixo como um daqueles jogos de tabuleiro: o Jardim das Mulheres, ao norte da cidade; o Char-suq Bazaar e as ruínas da antiga cidadela de Alexandre Magno, ao sul. Dava para ver os minaretes ao longe, como os dedos empoeirados de gigantes, e as ruas por onde, em sua imaginação, circulavam pessoas, charretes e mulas. Viu andorinhas descendo rápidas ou girando lá no céu. Como invejava essas aves... Elas já tinham estado em Herat.
Tinham sobrevoado as suas mesquitas, os seus mercados. Talvez houvessem pousado nas paredes da casa de Jalil, nos degraus da entrada de seu cinema.
Pegou dez pedrinhas e arrumou todas elas na vertical, formando três colunas. Era uma brincadeira que fazia de vez em quando, se Nana não estivesse por perto. Pôs quatro pedras na primeira coluna, representando os filhos de Khadija, três para os de Afsoon e três, na terceira coluna, para os filhos de Nargis. Acrescentou, então, uma quarta coluna. Uma décima primeira pedrinha, solitária.
Na manhã seguinte, Mariam pôs um vestido creme que lhe batia nos joelhos, calças de algodão e um hijab verde na cabeça. Ficou um pouco aflita com o hijab, porque, sendo verde, não combinava bem com o vestido, mas não havia outro jeito, pois o branco tinha sido roído pelas traças.
Olhou as horas no seu velho relógio de corda, com algarismos pretos sobre um mostrador verde, que o mulá Faizullah lhe dera de presente. Eram nove horas. Onde estaria Nana? Pensou em ir lá fora procurar pela mãe, mas tinha medo de uma briga, de ter de encarar aqueles olhares de censura.
Nana a acusaria de traição. Debocharia de suas ambições equivocadas.
Sentou-se, então. Tentando fazer o tempo passar, ficou desenhando elefantes, um atrás do outro, daquele jeito que Jalil havia lhe ensinado, com um único traço. Já estava até doída de tanto ficar sentada ali, mas não queria se deitar com medo de amassar o vestido.
Quando afinal os ponteiros marcaram 11:00h30m, Mariam pôs as 11 pedrinhas no bolso e saiu. No meio do caminho até o riacho, avistou Nana sentada numa cadeira, à sombra da copa abobadada de um salgueiro-chorão. Não saberia dizer se a mãe a tinha visto ou não.
Chegando ao riacho, ficou esperando no local combinado. No céu, umas poucas nuvens cinzentas que lembravam couves-flores iam passando. Jalil tinha lhe ensinado que as nuvens adquiriam aquela cor porque eram tão densas que a sua parte superior absorvia a luz do sol e projetava a própria sombra na parte de baixo. “O que se vê, Mariam jo, é isso”, disse ele, “a escuridão na barriga das nuvens”.
Algum tempo se passou.
Mariam voltou para a kolba. Dessa vez, deu a volta pelo lado oeste da clareira, evitando ter de passar por onde Nana estava. Olhou as horas. Era quase uma da tarde.
Ele é um homem de negócios”, pensou. “Deve ter acontecido alguma coisa.”
Voltou então para o riacho e esperou por mais algum tempo. Havia uns melros voando em círculos lá no alto e mergulhando em algum lugar por ali. Ficou observando uma lagarta que ia se arrastando num espinheiro ainda jovem.
Esperou até as suas pernas ficarem dormentes. Dessa vez, não voltou para a kolba. Arregaçou as calças até a altura dos joelhos, atravessou o riacho e, pela primeira vez na vida, desceu a colina rumo a Herat.
Nana também estava enganada a respeito de Herat. Ninguém ficava apontando para ela na rua.
Ninguém ria. Mariam saiu andando pelas avenidas margeadas de ciprestes, barulhentas e apinhadas de gente; lá ia ela em meio a um fluxo denso de pedestres, ciclistas, charretes puxadas por mulas, e ninguém lhe atirou pedras. Ninguém a chamou de harami. Aliás, mal a olhavam. De uma forma inesperada, e maravilhosa, ali ela era uma pessoa comum.
Parou por um instante junto a um lago ovalado, no meio de um grande Parque todo recortado por caminhos calçados de pedrinhas. Deslumbrada, Passou os dedos pelos belíssimos cavalos de mármore que ficavam na beira do lago fitando a água com olhos opacos. Depois, voltou sua atenção para um grupo de garotos brincando com barquinhos de papel. Havia flores toda parte, tulipas, lírios, petúnias, com as pétalas banhadas pelo sol. As pessoas andavam pelos caminhos, sentavam-se nos bancos e tomavam chá.
Mariam mal podia acreditar que estava em Herat. Seu coração batia, entusiasmado. Adoraria que o mulá Faizullah pudesse vê-la naquele momento. Ele a acharia tão audaciosa... Tão corajosa... Ficou ali, inteiramente entregue à nova vida que estava a sua espera nessa cidade, uma vida com um pai e irmãos, uma vida em que seria amada e retribuiria esse amor, sem reservas ou dias marcados, sem se envergonhar.
Animada, saiu andando de volta para a ampla avenida próxima ao parque. Passou por velhos mercadores com o rosto curtido, sentados a sombra dos plátanos, que a fitavam impassíveis por detrás de pirâmides de cerejas e pilhas de cachos de uvas. Meninos descalços corriam atrás de carros e ônibus, agitando sacolas de marmelos. Mariam parou numa esquina e ficou olhando os passantes, sem conseguir entender como podiam ser tão indiferentes diante de todas aquelas maravilhas que os cercavam.
Khaled Hossein, in A Cidade do Sol

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