Na
borda da clareira, havia um mirante onde Mariam gostava de ficar.
Nesse momento, estava sentada ali, na grama quente e seca. Podia-se
ver Herat, espalhada lá embaixo como um daqueles jogos de tabuleiro:
o Jardim das Mulheres, ao norte da cidade; o Char-suq Bazaar e as
ruínas da antiga cidadela de Alexandre Magno, ao sul. Dava para ver
os minaretes ao longe, como os dedos empoeirados de gigantes, e as
ruas por onde, em sua imaginação, circulavam pessoas, charretes e
mulas. Viu andorinhas descendo rápidas ou girando lá no céu. Como
invejava essas aves... Elas já tinham estado em Herat.
Tinham
sobrevoado as suas mesquitas, os seus mercados. Talvez houvessem
pousado nas paredes da casa de Jalil, nos degraus da entrada de seu
cinema.
Pegou
dez pedrinhas e arrumou todas elas na vertical, formando três
colunas. Era uma brincadeira que fazia de vez em quando, se Nana não
estivesse por perto. Pôs quatro pedras na primeira coluna,
representando os filhos de Khadija, três para os de Afsoon e três,
na terceira coluna, para os filhos de Nargis. Acrescentou, então,
uma quarta coluna. Uma décima primeira pedrinha, solitária.
Na
manhã seguinte, Mariam pôs um vestido creme que lhe batia nos
joelhos, calças de algodão e um hijab verde na cabeça.
Ficou um pouco aflita com o hijab, porque, sendo verde, não
combinava bem com o vestido, mas não havia outro jeito, pois o
branco tinha sido roído pelas traças.
Olhou
as horas no seu velho relógio de corda, com algarismos pretos sobre
um mostrador verde, que o mulá Faizullah lhe dera de presente. Eram
nove horas. Onde estaria Nana? Pensou em ir lá fora procurar pela
mãe, mas tinha medo de uma briga, de ter de encarar aqueles olhares
de censura.
Nana
a acusaria de traição. Debocharia de suas ambições equivocadas.
Sentou-se,
então. Tentando fazer o tempo passar, ficou desenhando elefantes, um
atrás do outro, daquele jeito que Jalil havia lhe ensinado, com um
único traço. Já estava até doída de tanto ficar sentada ali, mas
não queria se deitar com medo de amassar o vestido.
Quando
afinal os ponteiros marcaram 11:00h30m, Mariam pôs as 11 pedrinhas
no bolso e saiu. No meio do caminho até o riacho, avistou Nana
sentada numa cadeira, à sombra da copa abobadada de um
salgueiro-chorão. Não saberia dizer se a mãe a tinha visto ou não.
Chegando
ao riacho, ficou esperando no local combinado. No céu, umas poucas
nuvens cinzentas que lembravam couves-flores iam passando. Jalil
tinha lhe ensinado que as nuvens adquiriam aquela cor porque eram tão
densas que a sua parte superior absorvia a luz do sol e projetava a
própria sombra na parte de baixo. “O que se vê, Mariam jo,
é isso”, disse ele, “a escuridão na barriga das nuvens”.
Algum
tempo se passou.
Mariam
voltou para a kolba. Dessa vez, deu a volta pelo lado oeste da
clareira, evitando ter de passar por onde Nana estava. Olhou as
horas. Era quase uma da tarde.
“Ele
é um homem de negócios”, pensou. “Deve ter acontecido alguma
coisa.”
Voltou
então para o riacho e esperou por mais algum tempo. Havia uns melros
voando em círculos lá no alto e mergulhando em algum lugar por ali.
Ficou observando uma lagarta que ia se arrastando num espinheiro
ainda jovem.
Esperou
até as suas pernas ficarem dormentes. Dessa vez, não voltou para a
kolba. Arregaçou as calças até a altura dos joelhos,
atravessou o riacho e, pela primeira vez na vida, desceu a colina
rumo a Herat.
Nana
também estava enganada a respeito de Herat. Ninguém ficava
apontando para ela na rua.
Ninguém
ria. Mariam saiu andando pelas avenidas margeadas de ciprestes,
barulhentas e apinhadas de gente; lá ia ela em meio a um fluxo denso
de pedestres, ciclistas, charretes puxadas por mulas, e ninguém lhe
atirou pedras. Ninguém a chamou de harami. Aliás, mal a
olhavam. De uma forma inesperada, e maravilhosa, ali ela era uma
pessoa comum.
Parou
por um instante junto a um lago ovalado, no meio de um grande Parque
todo recortado por caminhos calçados de pedrinhas. Deslumbrada,
Passou os dedos pelos belíssimos cavalos de mármore que ficavam na
beira do lago fitando a água com olhos opacos. Depois, voltou sua
atenção para um grupo de garotos brincando com barquinhos de papel.
Havia flores toda parte, tulipas, lírios, petúnias, com as pétalas
banhadas pelo sol. As pessoas andavam pelos caminhos, sentavam-se nos
bancos e tomavam chá.
Mariam
mal podia acreditar que estava em Herat. Seu coração batia,
entusiasmado. Adoraria que o mulá Faizullah pudesse vê-la naquele
momento. Ele a acharia tão audaciosa... Tão corajosa... Ficou ali,
inteiramente entregue à nova vida que estava a sua espera nessa
cidade, uma vida com um pai e irmãos, uma vida em que seria amada e
retribuiria esse amor, sem reservas ou dias marcados, sem se
envergonhar.
Animada,
saiu andando de volta para a ampla avenida próxima ao parque. Passou
por velhos mercadores com o rosto curtido, sentados a sombra dos
plátanos, que a fitavam impassíveis por detrás de pirâmides de
cerejas e pilhas de cachos de uvas. Meninos descalços corriam atrás
de carros e ônibus, agitando sacolas de marmelos. Mariam parou numa
esquina e ficou olhando os passantes, sem conseguir entender como
podiam ser tão indiferentes diante de todas aquelas maravilhas que
os cercavam.
Khaled
Hossein, in A Cidade do Sol
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