quarta-feira, 22 de julho de 2020

Dos virtuosos

Com trovões e celestes fogos de artifício é que se deve falar aos sentidos frouxos e adormecidos.
Mas a voz da beleza fala suavemente: insinua-se apenas nas almas mais alertas.
Suavemente estremeceu hoje meu escudo e sorriu para mim; este é o sagrado riso e tremor da beleza.
De vós, virtuosos, riu hoje minha beleza. E assim chegou sua voz até mim: “Eles querem ainda — ser pagos!”.
Ainda quereis ser pagos, ó virtuosos! Quereis recompensa pela virtude, céu pela terra e eternidade por vosso hoje?
E agora vos irritais comigo por ensinar que não existe um tesoureiro pagador? E, em verdade, não ensino sequer que a virtude é sua própria recompensa.
Ah, esta é minha tristeza: no fundo das coisas foram mentirosamente introduzidos a recompensa e o castigo — e agora também no fundo de vossas almas, ó virtuosos!
Mas minha palavra, semelhante ao focinho do javali, revolverá o fundo de vossas almas; uma relha de arado serei para vós.
Todos os segredos de vosso fundo virão à luz; e, quando estiverdes deitados ao sol, cavoucados e despedaçados, também vossa mentira estará separada de vossa verdade.
Pois é esta a vossa verdade: sois demasiado limpos para a sujeira das palavras “vingança”, “castigo”, “recompensa”, “retribuição”.
Amais vossa virtude como a mãe ao filho; mas desde quando uma mãe quis ser paga por seu amor?
Vossa virtude é o mais querido em vós mesmos. A ânsia do anel habita em vós: alcançar novamente a si mesmo, para isso luta e gira cada anel.
E semelhante à estrela que se apaga é toda obra de vossa virtude: sempre sua luz está a caminho e viaja — e quando deixará de estar a caminho?
Assim a luz de vossa virtude se acha a caminho, mesmo quando a obra está feita. Pode estar esquecida e morta: seu raio de luz continua a viver e viajar.
O fato de vossa virtude ser vós mesmos e não algo alheio, uma pele, uma coberta: eis a verdade do fundo de vossas almas, ó virtuosos! —
Mas há aqueles para os quais a virtude é o espasmo sob o açoite: e já ouvistes demais os seus gritos!
E há outros que chamam virtude ao afrouxamento de seus vícios; e, quando seu ódio e seu ciúme estiram os membros, sua “justiça” acorda e esfrega os olhos sonolentos.
E há outros que são puxados para baixo: seus demônios os puxam. Mas, quanto mais afundam, tanto mais lhes cintilam os olhos e o desejo por seu Deus.
Ah, também seus gritos chegaram aos vossos ouvidos, ó virtuosos: “O que eu não sou, isso é, para mim, Deus e virtude!”.
E há outros que vêm pesados e aos guinchos, como carroças a carregar pedras numa descida: falam muito em dignidade e virtude — chamam a seus freios de virtude!
E há outros que são como relógios simples a que se deu corda: fazem seu tique-taque e pretendem que se chame virtude — ao tique-taque.
Na verdade, com esses me divirto: onde eu encontrar esses relógios, lhes darei corda com minha zombaria; e deverão ainda ronronar!
E outros têm orgulho de seu punhado de justiça e em nome dela cometem ultrajes contra todas as coisas: de modo que o mundo se afoga em sua injustiça.
Ah, como lhes fica mal na boca a palavra “virtude”! E, quando dizem “sou justo”, soa sempre igual a “estou vingado!”.
Com sua virtude querem arrancar os olhos dos inimigos; e se erguem apenas para rebaixar os outros.
E há também aqueles que ficam em seu pântano e falam de dentro do caniço: “Virtude — é ficar quieto no pântano.
Não mordemos ninguém e evitamos quem quer morder; e em tudo temos a opinião que nos é dada.”
E há também aqueles que amam gestos e pensam: Virtude é uma espécie de gesto.
Seus joelhos sempre rezam, e suas mãos louvam a virtude, mas seu coração nada sabe disso.
E há também aqueles que consideram virtude dizer: “Virtude é necessária”; mas no fundo acreditam apenas que a polícia é necessária.
E alguns, que não podem ver o que há de elevado nos homens, chamam de virtude o fato de verem muito de perto o que neles é baixo: assim, chamam virtude a seu mau-olhado.
E alguns querem ser edificados e erguidos e chamam a isso virtude: enquanto outros querem ser lançados para cima — e também a isso chamam virtude.
E desse modo quase todos acreditam participar da virtude; e cada qual pretende, no mínimo, conhecer o “bem” e o “mal”.
Mas Zaratustra não veio para dizer a todos esses mentirosos e tolos: “Que sabeis vós sobre a virtude? Que podíeis saber sobre a virtude?” —
E sim para que vós, meus amigos, ficásseis cansados das velhas palavras que aprendestes dos mentirosos e tolos:
Cansados das palavras “recompensa”, “retribuição”, “castigo”, “vingança com justiça”. —
Cansados de dizer: “Para uma ação ser boa, é preciso ser desinteressada”.
Ah, meus amigos! Que o vosso ser esteja na ação como a mãe no filho: sejam estas as vossas palavras sobre a virtude!
Em verdade, tirei de vós cem palavras e os brinquedos favoritos de vossa virtude; e agora vos irritais comigo como se irritam as crianças.
Elas brincavam junto ao mar — então chegou uma onda e levou-lhes o brinquedo para o fundo: agora choram.
Mas a mesma onda deverá lhes trazer novos brinquedos e lançar à sua frente novas conchas coloridas!
Desse modo serão consoladas; e, tal como elas, também vós, meus amigos, tereis vosso consolo — e novas conchas coloridas! —
Assim falou Zaratustra.
Friedrich Nietzsche, in Assim falou Zaratustra

Nenhum comentário:

Postar um comentário