Um
homem sem lar e esfomeado, que com a mulher ao lado e os filhos
magros no assento traseiro viaja pelas estradas, poderia olhar para
os campos em pousio, capazes de produzir para comer mas não para dar
lucros financeiros, e esse homem saberia que um campo em pousio era
um pecado, e que a terra não cultivada era um crime, um crime
cometido contra seus filhos magros. E um homem assim viajava pela
estrada e sentia cobiça por essas terras e sentia a tentação de
apoderar-se de terras assim e fazê-las produzir com exuberância
para os seus filhos, fazê-las dar um pouco de conforto para a
mulher. A tentação o dominava sempre; estava permanentemente diante
dele. As terras atraíam-no, e a boa água da Companhia ajudava a
aguilhoar-lhe a tentação.
Ao
sul ele via as laranjas douradas penderem dos ramos, as pequenas
laranjas cor de ouro no verde-escuro das ramagens; e guardas com
armas de fogo que patrulhavam o lugar, de maneira a evitar que alguém
se apoderasse de uma laranja sequer, para o filho magro; laranjas que
estavam destinadas a apodrecer ali mesmo se os preços fossem muito
baixos.
Ele
guiou o velho carro até a cidade. Revolveu as fazendas em busca de
trabalho. Onde vamos dormir hoje?
Bem,
vão dormir mesmo é em Hooverville, na beira do rio. Lá já tem um
bando de Okies.
Ele
guiou o velho carro até Hooverville. E não precisou perguntar nada,
porque nos arredores de todas as cidades havia uma Hooverville.
A
cidade dos maltrapilhos estendia-se perto da água; as casas eram
tendas e choças cobertas de erva daninha, casas de papel, um monte
de coisas imprestáveis. O homem chegava aí com a família e
tornava-se um cidadão de Hooverville... sempre esses lugares se
chamavam Hooverville. O homem armava sua tenda, o mais perto possível
da água; ou quando não tinha lona pra fazer uma tenda ele ia ao
depósito de lixo da cidade e apanhava folhas de papelão e construía
uma casa. Quando a chuva vinha, a casa desmoronava e era levada pela
enxurrada. Ele tomava lugar em Hooverville e dali saía à cata de
trabalho, o pouco dinheiro que lhe restava gastava-o em gasolina, na
busca de trabalho. À noite, os homens se reuniam e palestravam uns
com os outros. Acocorados em roda, falavam da terra que acabavam de
conhecer.
Tem
uma fazenda de doze mil hectares ali adiante, mais pro oeste. Tá lá
abandonada. Meu Deus, o que eu ia fazer só com dois hectares
daquilo! Dava pra a gente comer o que quisesse.
Cê
já reparou numa coisa? Nessas fazenda não tem nem horta, nem
galinha, nem porco. Eles só faz uma coisa: plantar algodão, ou
então só pêssegos, ou só alface. Ou então só faz é criar
galinha. E eles compram as coisas que podiam ter de graça se
plantassem ali mesmo, atrás da casa da fazenda.
Deus,
quanta coisa eu podia fazer com um casal de porcos!
Bom,
não vale a pena falar; isso não é seu, nem nunca será.
Mas
o que é que a gente vai fazer, afinal? As crianças não podem ser
criadas desse jeito.
Nos
acampamentos o aviso vinha em sussurro; em Shafter tem serviço. E
aí, de noite, os carros eram carregados, as estradas enchiam-se; uma
corrida do ouro pelo trabalho. As pessoas chegavam em penca a
Shafter, cinco vezes mais do que era preciso. Era como a corrida do
ouro. Eles eram uma massa frenética em busca de trabalho. E ao longo
das estradas estendia-se a tentação, as terras que garantiam a
comida.
Já
tem dono. Não são nossas.
Mas,
quem sabe?, a gente podia arrumar nem que fosse um pedacinho bem
pequeno. Olha, aquele pedaço ali. Tá abandonado, só dá mato. E
quanta batata eu podia colher ali! Puxa, dava bem pra toda a família
encher a barriga!
É,
mas isso não é nosso. Tem que ficar assim mesmo, cheio de mato.
De
vez em quando alguém tentava; rastejava pela terra, arrancava o mato
e tentava, como um ladrão, roubar à terra um pouco de sua riqueza.
Hortas clandestinas, no meio do mato. Um punhado de sementes de
cenouras, um pouco de nabos e de batatas. Furtivamente, ele saía à
noite e preparava o pedaço de terra roubada.
Deixa
o mato crescer ao redor, que assim ninguém vê você. Também no
meio convém deixar um pouco daquele capim comprido.
Jardinagem
secreta à noite, e água carregada em latas enferrujadas.
Então
um dia vem a polícia:
Ei,
que negócio é esse que você tá fazendo aí?
Não
faço nada demais.
Ando
de olho em você. Pensa que essa terra aí é sua, hem? Você está
infringindo a lei?
Mas
a terra tá abandonada. Não tô fazendo mal nenhum. Não prejudico
ninguém.
Seu
acocorado duma figa! Não demora e você tá dizendo que é dono
dessas terras. Fica aí querendo mandar. Bom, vá dando o fora.
E
os brotos de cenoura são arrancados e os nabos esmagados com os pés.
Então o mato tornava a crescer ali. Mas o polícia estava com a
razão. Bastava mais um pouco... e a terra ficava pertencendo ao
intruso. Cuidada, plantada a terra, comida a primeira cenoura... um
homem estaria disposto a lutar por ela. Convém botá-lo logo para
fora. Senão, acaba pensando que é mesmo dele. Senão, é capaz de
morrer até pelo pedacinho de horta oculto entre as ervas daninhas.
Você
viu a cara dele, quando a gente pisou naqueles nabos? Tinha um olhar
capaz de matar. Se a gente deixar, esse pessoal acaba tomando conta
de tudo. Sim, senhor, toma conta de tudo, no duro!
Estranhos,
estrangeiros.
Sim,
eles falam a mesma língua que nós, mas não é a mesma coisa. Olha
como eles vivem. Você acha que a gente era capaz de viver assim?
Não, garanto que não!
À
noite, eles se acocoravam em roda e conversavam. E um homem excitado
dizia:
Por
que é que a gente não se reúne, junta uns vinte de nós e toma um
pedaço de terra? Armas, a gente tem. Toma ela e diz: Tirem nós
daqui, se puderem. Por que não fazemo isso?
Eles
matavam a gente que nem bicho.
Que
é que tem? É melhor morrer que apodrecer aqui. Debaixo da terra ou
numa casa de sacos de batata? Cê quer que teus filhos morram agora
ou daqui a dois anos? Daqui a dois anos, de inanição — que é
como eles dizem. Cê sabe o que foi que a gente comeu a semana toda?
Pão de panela e urtigas. Cê sabe onde a gente arrumou a farinha no
pão? Ajuntou do piso de um caminhão de farinha.
Assim
se falava nos acampamentos, e os polícias, homens gordos,
bem-nutridos, com coldres de revólver nas ancas gordas, giravam
pelos acampamentos. É pra eles não se esquecerem. A gente tem que
ter as rédeas, senão... senão Deus sabe o que são capazes de
fazer. São piores que os negros no Sul. Se se ajuntarem, ninguém
vai poder com eles.
Notícia:
em Lawrenceville, um policial expulsou um desses acocorados. O homem
resistiu, fazendo com que o policial usasse da força. Um filho dele,
de apenas onze anos, deu um tiro na autoridade, matando-a. A arma
usada foi um rifle, calibre 22.
Cascavéis!
Não convém facilitar com eles. É atirar primeiro. Se uma criança
é capaz de matar um polícia, que fará um adulto? A única coisa
que se pode fazer é ser mais durão do que eles; é maltratar essa
gente, meter-lhe medo.
Se
eles não se deixarem assustar? Se eles fizerem frente e quiserem
atirar? Esses homens usam armas desde crianças. Uma arma é uma
extensão deles mesmos. Que fazer se eles não se assustarem? Se
algum dia eles formarem verdadeiros regimentos e marcharem pela terra
como fizeram os lombardos na Itália, e os alemães na Gália, e os
turcos em Bizâncio? Também eles tinham fome de terra, também eles
formavam bandos mal-armados e as legiões não os conseguiram deter.
Morte e terror não os detinham. Como é que se pode incutir medo num
homem que não sente fome apenas em seu estômago, mas também na
barriga torturada dos filhos? Não se pode assustar um homem assim...
ele já passou por todos os transes.
John
Steinbeck, in As vinhas da ira
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