quarta-feira, 22 de julho de 2020

A terra não cultivada é um crime contra o homem esfomeado

Um homem sem lar e esfomeado, que com a mulher ao lado e os filhos magros no assento traseiro viaja pelas estradas, poderia olhar para os campos em pousio, capazes de produzir para comer mas não para dar lucros financeiros, e esse homem saberia que um campo em pousio era um pecado, e que a terra não cultivada era um crime, um crime cometido contra seus filhos magros. E um homem assim viajava pela estrada e sentia cobiça por essas terras e sentia a tentação de apoderar-se de terras assim e fazê-las produzir com exuberância para os seus filhos, fazê-las dar um pouco de conforto para a mulher. A tentação o dominava sempre; estava permanentemente diante dele. As terras atraíam-no, e a boa água da Companhia ajudava a aguilhoar-lhe a tentação.
Ao sul ele via as laranjas douradas penderem dos ramos, as pequenas laranjas cor de ouro no verde-escuro das ramagens; e guardas com armas de fogo que patrulhavam o lugar, de maneira a evitar que alguém se apoderasse de uma laranja sequer, para o filho magro; laranjas que estavam destinadas a apodrecer ali mesmo se os preços fossem muito baixos.
Ele guiou o velho carro até a cidade. Revolveu as fazendas em busca de trabalho. Onde vamos dormir hoje?
Bem, vão dormir mesmo é em Hooverville, na beira do rio. Lá já tem um bando de Okies.
Ele guiou o velho carro até Hooverville. E não precisou perguntar nada, porque nos arredores de todas as cidades havia uma Hooverville.
A cidade dos maltrapilhos estendia-se perto da água; as casas eram tendas e choças cobertas de erva daninha, casas de papel, um monte de coisas imprestáveis. O homem chegava aí com a família e tornava-se um cidadão de Hooverville... sempre esses lugares se chamavam Hooverville. O homem armava sua tenda, o mais perto possível da água; ou quando não tinha lona pra fazer uma tenda ele ia ao depósito de lixo da cidade e apanhava folhas de papelão e construía uma casa. Quando a chuva vinha, a casa desmoronava e era levada pela enxurrada. Ele tomava lugar em Hooverville e dali saía à cata de trabalho, o pouco dinheiro que lhe restava gastava-o em gasolina, na busca de trabalho. À noite, os homens se reuniam e palestravam uns com os outros. Acocorados em roda, falavam da terra que acabavam de conhecer.
Tem uma fazenda de doze mil hectares ali adiante, mais pro oeste. Tá lá abandonada. Meu Deus, o que eu ia fazer só com dois hectares daquilo! Dava pra a gente comer o que quisesse.
Cê já reparou numa coisa? Nessas fazenda não tem nem horta, nem galinha, nem porco. Eles só faz uma coisa: plantar algodão, ou então só pêssegos, ou só alface. Ou então só faz é criar galinha. E eles compram as coisas que podiam ter de graça se plantassem ali mesmo, atrás da casa da fazenda.
Deus, quanta coisa eu podia fazer com um casal de porcos!
Bom, não vale a pena falar; isso não é seu, nem nunca será.
Mas o que é que a gente vai fazer, afinal? As crianças não podem ser criadas desse jeito.
Nos acampamentos o aviso vinha em sussurro; em Shafter tem serviço. E aí, de noite, os carros eram carregados, as estradas enchiam-se; uma corrida do ouro pelo trabalho. As pessoas chegavam em penca a Shafter, cinco vezes mais do que era preciso. Era como a corrida do ouro. Eles eram uma massa frenética em busca de trabalho. E ao longo das estradas estendia-se a tentação, as terras que garantiam a comida.
Já tem dono. Não são nossas.
Mas, quem sabe?, a gente podia arrumar nem que fosse um pedacinho bem pequeno. Olha, aquele pedaço ali. Tá abandonado, só dá mato. E quanta batata eu podia colher ali! Puxa, dava bem pra toda a família encher a barriga!
É, mas isso não é nosso. Tem que ficar assim mesmo, cheio de mato.
De vez em quando alguém tentava; rastejava pela terra, arrancava o mato e tentava, como um ladrão, roubar à terra um pouco de sua riqueza. Hortas clandestinas, no meio do mato. Um punhado de sementes de cenouras, um pouco de nabos e de batatas. Furtivamente, ele saía à noite e preparava o pedaço de terra roubada.
Deixa o mato crescer ao redor, que assim ninguém vê você. Também no meio convém deixar um pouco daquele capim comprido.
Jardinagem secreta à noite, e água carregada em latas enferrujadas.
Então um dia vem a polícia:
Ei, que negócio é esse que você tá fazendo aí?
Não faço nada demais.
Ando de olho em você. Pensa que essa terra aí é sua, hem? Você está infringindo a lei?
Mas a terra tá abandonada. Não tô fazendo mal nenhum. Não prejudico ninguém.
Seu acocorado duma figa! Não demora e você tá dizendo que é dono dessas terras. Fica aí querendo mandar. Bom, vá dando o fora.
E os brotos de cenoura são arrancados e os nabos esmagados com os pés. Então o mato tornava a crescer ali. Mas o polícia estava com a razão. Bastava mais um pouco... e a terra ficava pertencendo ao intruso. Cuidada, plantada a terra, comida a primeira cenoura... um homem estaria disposto a lutar por ela. Convém botá-lo logo para fora. Senão, acaba pensando que é mesmo dele. Senão, é capaz de morrer até pelo pedacinho de horta oculto entre as ervas daninhas.
Você viu a cara dele, quando a gente pisou naqueles nabos? Tinha um olhar capaz de matar. Se a gente deixar, esse pessoal acaba tomando conta de tudo. Sim, senhor, toma conta de tudo, no duro!
Estranhos, estrangeiros.
Sim, eles falam a mesma língua que nós, mas não é a mesma coisa. Olha como eles vivem. Você acha que a gente era capaz de viver assim? Não, garanto que não!
À noite, eles se acocoravam em roda e conversavam. E um homem excitado dizia:
Por que é que a gente não se reúne, junta uns vinte de nós e toma um pedaço de terra? Armas, a gente tem. Toma ela e diz: Tirem nós daqui, se puderem. Por que não fazemo isso?
Eles matavam a gente que nem bicho.
Que é que tem? É melhor morrer que apodrecer aqui. Debaixo da terra ou numa casa de sacos de batata? Cê quer que teus filhos morram agora ou daqui a dois anos? Daqui a dois anos, de inanição — que é como eles dizem. Cê sabe o que foi que a gente comeu a semana toda? Pão de panela e urtigas. Cê sabe onde a gente arrumou a farinha no pão? Ajuntou do piso de um caminhão de farinha.
Assim se falava nos acampamentos, e os polícias, homens gordos, bem-nutridos, com coldres de revólver nas ancas gordas, giravam pelos acampamentos. É pra eles não se esquecerem. A gente tem que ter as rédeas, senão... senão Deus sabe o que são capazes de fazer. São piores que os negros no Sul. Se se ajuntarem, ninguém vai poder com eles.
Notícia: em Lawrenceville, um policial expulsou um desses acocorados. O homem resistiu, fazendo com que o policial usasse da força. Um filho dele, de apenas onze anos, deu um tiro na autoridade, matando-a. A arma usada foi um rifle, calibre 22.
Cascavéis! Não convém facilitar com eles. É atirar primeiro. Se uma criança é capaz de matar um polícia, que fará um adulto? A única coisa que se pode fazer é ser mais durão do que eles; é maltratar essa gente, meter-lhe medo.
Se eles não se deixarem assustar? Se eles fizerem frente e quiserem atirar? Esses homens usam armas desde crianças. Uma arma é uma extensão deles mesmos. Que fazer se eles não se assustarem? Se algum dia eles formarem verdadeiros regimentos e marcharem pela terra como fizeram os lombardos na Itália, e os alemães na Gália, e os turcos em Bizâncio? Também eles tinham fome de terra, também eles formavam bandos mal-armados e as legiões não os conseguiram deter. Morte e terror não os detinham. Como é que se pode incutir medo num homem que não sente fome apenas em seu estômago, mas também na barriga torturada dos filhos? Não se pode assustar um homem assim... ele já passou por todos os transes.
John Steinbeck, in As vinhas da ira

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