Naquele
tempo os hóspedes fervilhavam em nossa casa. Na cidade ainda não
havia hotéis, e à tardinha, ao chegar o trem, quase diariamente nos
apareciam carregadores que transportavam bagagens. Sujeitos
desconhecidos entravam, incerimoniosos, como se tivéssemos obrigação
de recebê-los, ficavam dois, três dias, embarcavam de madrugada,
sem agradecimentos, à socapa.
Minha
mãe se arreliava, prometia uma desfeita àquela súcia de parasitas.
Mas baixava a pancada, engolia a indignação, ia lacrimejar na
fumaça da cozinha, à beira do fogo, rosnar o desgosto à criada e
aos moleques.
Meu
pai afetava paciência magnânima, não isenta de interesse.
Calculista, é possível que enxergasse na hospitalidade matuta um
emprego de capital. Alargara as transações, devia muito, e no
inverno o dinheiro minguava. Sendo os intrusos em geral
caixeiros-viajantes, fiscais dos estabelecimentos fornecedores,
convinha suportá-los. Davam, em paga, bons informes do pequeno
retalhista do interior. E indicavam-lhe negócios vantajosos, a
compra de massas falidas, baratas. Nessas liquidações abundavam
pregos de tamanho exorbitante, agulhas enferrujadas, chita de padrões
horríveis. Ao cabo de anos os fregueses desconfiaram que todas as
mercadorias tinham defeito, e os balanços apresentavam rumas de
inutilidades.
Os
cometas atraíram indivíduos alheios ao comércio e transformaram a
casa em pensão. Entre estes, Seu Ramiro se notabilizou. Trazia o
encargo de fundar uma Loja Maçônica, empresa odiosa e cheia de
riscos.
Minha
família não era rigorosamente cristã: fugia do confessionário,
rezava pouco, ia à igreja com temperança, nas festas. Mas admirava
as procissões, jejuava na semana santa e sabia perfeitamente que os
pedreiros-livres dão sangue ao diabo, obtêm fortuna e condenam-se.
O velho Pedro Rico, nosso parente afastado, procedera desse jeito e
estava no inferno. Sem dúvida. Percorria a vizinhança dos lugares
mal-assombrados, vagava pelos caminhos, galopando num cavalo negro,
pedindo missas e gemendo:
— Sou
a alma do finado Pedro Rico.
Seu
Ramiro percebia as dificuldades e foi cauteloso, não revelou de
supetão os seus desígnios sinistros. Fez diversas viagens e, com
persistência e manha, declarando-se religioso em demasia, iniciou
uma propaganda tímida, fortaleceu-se, conseguiu prosélitos e
inaugurou a loja Mensageiros da Pé, que teve como venerável o chefe
político. Na estreia, pomposa, tipos sérios, de Maceió, declamaram
longos discursos.
Meu
pai esteve alguns meses cabeceando sobre cartonagens e folhetos
marcados com triângulos e compassos. Guardou a princípio esses
utensílios na gaveta, a chave; largou-os depois à toa, deixou-nos
ver as abreviaturas enigmáticas, findas em três pontinhos. Enjoou
as sessões secretas, e julgo que permaneceu em grau muito baixo, não
passou de aprendiz.
Enquanto
se aliciavam adeptos e se reconstruía um casarão triste no
Gurganema, Seu Ramiro nos visitou com frequência. Era um sujeito
espesso e moreno, de cabeleira grisalha, rugas, e ponderoso, tão
ponderoso que dificilmente o imaginaríamos sem colarinho e gravata.
A voz pausada gotejava, para não perdermos uma sílaba. Sobrancelhas
hirsutas, olhar sereno e olímpico.
Tinha
essa figura uns modos de estátua, a convicção talvez de que era
estátua e devíamos admirá-la. Antes de quebrar o silêncio,
fungava, contraía os cantos da boca, achatava mais a, nariz, tufava
o bigode vasto. Ensinava-nos que o filipino é terrivelmente forte,
conduz sem se cansar dois filipinos. Como as formigas. E descrevia a
organização do formigueiro. Ninguém aludira a filipinos nem a
formigas, mas o homem achava meio de lançar mão desses viventes e
dissertava.
De
ordinário isso acontecia depois do jantar. Mastigada a refeição
abundante e má, retirados os pratos, Seu Ramiro pregava os cotovelos
na toalha, examinava as caras em redor e esperava deixa conveniente a
uma exposição volumosa. Aprofundava as rugas, eriçava os pelos,
engrossava o papo, inchava todo, discorria uma hora, e não havia
brecha para nenhum aparte. Os dois caixeiros fixavam nele os bugalhos
atentos; o patrão balançava a cabeça, em apoiados reverenciosos;
minha mãe, a um canto da mesa, reprimia bocejos, mordia os beiços.
Foi
nessas arengas que, entre avanços e recuos, surgiu o Supremo
Arquiteto do Universo e produziu considerável efeito. Seu Ramiro
falava no Supremo Arquiteto do Universo com devoção, erguendo-se um
pouco.
Aborreci
aquela sabedoria, a linguagem magnífica: habituei-me a fugir depois
do café, espantando os ouvintes, fuzilado pelos óculos do orador,
que, chamando-me à ordem, tentou punir-me o desrespeito. Leu no
primeiro número do Dilúculo a minha história Pequeno
Mendigo e censurou-me vários erros. Essa literatura, recomposta
por Mário Venâncio, me parecia certa, mas Seu Ramiro discordou e
corrigiu tudo de novo. Alterou a disposição das palavras, arranjou
sinônimos vistosos, arrepiou-se vendo a minha personagem estender a
mão à caridade pública: fê-la estender as mãos, pois não estava
explicado que ela fosse maneta. Enfim uma crítica medonha, a pior
que já recebi. Grande raiva me encheu o coração, mentalmente
desenvolvi compridas injúrias, odiei os filipinos e as formigas.
E
só me aliviei quando o monstro se ausentou, deixando uma lembrança
deplorável. Enquanto os Mensageiros da Fé engatinhavam, Seu Ramiro,
grau trinta ou mais, lhes ensinou as regras necessárias, as pancadas
do martelo, os deveres de cada um. Findas as lições, espaçou as
visitas, sumiu-se afinal. Meu pai emprestou-lhe cem mil-réis e
perdeu-o de vista. Desiludiu-se, conteve imenso rancor. Certamente os
irmãos deviam auxiliar-se, mas aquela maneira de arrancar auxílio
era safadeza. Calou-se, roendo a indignação. Foi por isso, creio,
que repugnou os três pontinhos, as brochuras misteriosas, ou
triângulos, os compassos e o Supremo Arquiteto do Universo.
Graciliano
Ramos, in Infância
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