quinta-feira, 4 de junho de 2020

O tango


Onde estarão? Pergunta-se a elegia
De quem não vive mais, como se houvesse
Uma região em que o Ontem pudesse
Ser o Hoje, o Ainda e o Todavia.

Onde estará (repito) o malfeitor
Que fundou nesses becos empoeirados
De terra ou nos perdidos povoados
A seita do facão, do destemor?

Onde estarão aqueles que passaram,
Deixando à epopeia um episódio,
Uma fábula ao tempo e que, sem ódio,
Lucro ou paixão de amor se esfaquearam?

Em sua lenda eu os busco, derradeira
Brasa que, a modo de uma vaga rosa,
Guarda algo dessa chusma valorosa
Vinda dos Corrales, de Balvanera.

Em quais escuros becos, em que ermos
Do outro mundo se instalará a dura
Sombra de quem era uma sombra escura,
Muraña, essa navalha de Palermo?

E esse Iberra fatal (de quem os santos
Se apiadem) que na ponte de uma via
Matou seu irmão Nato, que devia
Mais mortes que ele e assim igualou tantos?

Uma mitologia de punhais
Lentamente se anula no esquecer-se;
Uma canção de gesta foi perder-se
Em sórdidas notícias policiais.

Há outra brasa, outra candente rosa
Das cinzas que inteiros guardará;
Soberbos navalhistas estão lá
E a adaga, com seu peso, silenciosa.

Embora a adaga hostil, ess’outra adaga,
O tempo, os perdessem em maldição,
Hoje, ultrapassando o tempo e a aziaga
Morte, os mortos no tango viverão.

Na música estão, e na cordagem
Da teimosa guitarra trabalhosa,
Que trama na milonga venturosa
A festa e a inocência da coragem.

Gira no baldio a amarela roda
De cavalos e leões, e ouço o ecoar
Desses tangos de Greco e os de Arolas
Que eu vi pelas calçadas a bailar,

Num instante que emerge hoje isolado,
Sem antes nem depois, contra o olvido,
E que tem o sabor do já perdido,
Do já perdido e do recuperado.

Nos acordes, antigas coisas gemem:
O outro pátio com a entrevista parra.
(Por trás dessas paredes que ainda temem,
O Sul guarda um punhal e uma guitarra.)

Essa rajada, o tango, essa diabrura,
Os trabalhosos anos desafia;
Feito de pó e tempo, o homem dura
Menos que a inconsequente melodia,

Que só é tempo. O tango cria um turvo
Passado irreal, pouco se duvida,
A lembrança incrível de dar a vida
Brigando, numa esquina do subúrbio.
Jorge Luis Borges

Nenhum comentário:

Postar um comentário