terça-feira, 16 de junho de 2020

O batismo do cachorro e o nosso

De todos os caras que ainda moravam na vizinhança, Frank era o mais bacana. Acabamos nos tornando amigos, começamos a sair juntos, não precisávamos muito dos outros garotos. De qualquer modo, eles tinham meio que expulsado Frank do grupo. Assim, ficamos amigos. Ele não era como David, cuja única atividade era voltar da escola junto comigo. Frank tinha muito mais compromissos que David. Cheguei inclusive a frequentar a igreja católica pela simples razão de que Frank frequentava. Meus pais gostavam que eu fosse à igreja. As missas de domingo eram bastante aborrecidas. E nós tínhamos que assistir às aulas de catecismo. Tínhamos que estudar o catecismo. Era apenas um jogo chato de perguntas e respostas.
Certa tarde, estávamos sentados na varanda lá de casa e eu lia em voz alta o catecismo para Frank. Li a seguinte frase:
Deus tem olhos que tudo veem e enxerga todas as coisas.
Olhos que tudo vêem? – perguntou Frank.
Sim.
Você quer dizer assim?
Fechou os punhos e colocou sobre os olhos.
Ele tem garrafas de leite no lugar dos olhos – disse Frank, empurrando os punhos contra os olhos e se voltando em minha direção. Então começou a rir. Comecei a rir também. Rimos por um longo tempo. Até que Frank parou.
Você acha que Ele nos ouviu?
Acho que sim. Se Ele pode ver tudo, provavelmente pode ouvir tudo também.
Estou com medo – disse Frank –, pode ser que Ele nos mate. Você acha que Ele vai nos matar?
Não sei.
É melhor ficarmos sentados aqui e esperar. Não se mova. Fique sentado.
Sentamos nos degraus e esperamos. Esperamos um longo tempo.
Talvez Ele não vá fazer isso agora – eu disse.
É... Vai ser quando Ele quiser.
Esperamos por mais uma hora, então fomos até a casa de Frank. Ele estava montando um aeromodelo, e eu queria dar uma olhada...
Caía a tarde quando decidimos fazer nossa primeira confissão. Caminhamos até a igreja. Conhecíamos um dos padres, o mais importante da paróquia. Nós o tínhamos conhecido numa sorveteria e ele falara conosco. Tínhamos ido inclusive à sua casa certa vez. Ele vivia na casa paroquial ao lado da igreja com uma velha senhora. Ficamos lá por um bocado de tempo e fizemos todo tipo de perguntas sobre Deus. Tais como: Qual era a altura Dele? Ele ficava o dia inteiro sentado numa cadeira? E Ele ia ao banheiro como todo mundo? O padre nunca respondia diretamente às nossas perguntas, mas parecia ser um cara legal, tinha um sorriso simpático.
Seguimos até a igreja pensando em nossas confissões, pensando em como seria. Ao chegarmos perto da igreja, um vira-lata começou a nos acompanhar. Era muito magro e parecia faminto. Paramos e lhe fizemos festa, acariciando suas costas.
É uma pena que os cachorros não possam ir pro céu.
Por que não?
Você precisa ser batizado para entrar no céu.
Precisamos batizá-lo, então.
Acha que devemos?
Ele merece uma chance de ir pro céu.
Peguei-o e entramos com ele dentro da igreja. Levamos o cachorro até a pia de água benta e eu o segurei ali, enquanto Frank aspergia a água sobre a testa do bicho.
Desta forma eu o batizo – disse Frank.
Nós o levamos para fora e o soltamos outra vez na calçada.
Até o aspecto dele mudou – eu disse.
O cachorro perdeu o interesse pela gente e seguiu pela calçada. Voltamos para dentro da igreja, parando primeiro junto à água benta, molhando nossos dedos nela e fazendo o sinal-da-cruz. Nós dois nos ajoelhamos em um banco perto do confessionário e ficamos esperando. Uma gorda saiu de trás da cortina. Seu corpo fedia a suor velho. Pude sentir sua forte catinga quando ela passou. Seu cheiro se misturava com o da igreja, que cheirava a mijo. Todos os domingos as pessoas vinham à missa e sentiam aquele cheiro de mijo e ninguém dizia nada. Eu gostaria de falar com o padre a respeito disso, mas não conseguia. Talvez fossem as velas.
Vou entrar – disse Frank.
Levantou-se, atravessou a cortina e sumiu. Ficou uma eternidade lá dentro. Ao sair, tinha os dentes arreganhados num sorriso.
É sensacional! Simplesmente sensacional! Agora é a sua vez.
Fiquei de pé, afastei a cortina e entrei. Estava escuro. Ajoelhei-me. Tudo que eu podia ver à minha frente era uma tela tramada. Frank dizia que Deus estava ali atrás. De joelhos, tentei lembrar de alguma má ação que eu tivesse cometido, mas não me ocorria nada. Permaneci ajoelhado, tentando, com insistência, lembrar de alguma coisa, mas não conseguia. Não sabia o que fazer.
Vamos – disse a voz. – Fale alguma coisa!
A voz parecia zangada. Achei que não haveria nenhuma voz. Pensei que Deus tivesse tempo de sobra. Fiquei assustado. Decidi mentir.
Está bem – eu disse. – Eu... chutei meu pai. Eu... praguejei contra minha mãe... Roubei dinheiro da bolsa dela. Gastei tudo em doces. Murchei a bola de futebol de Chuck de propósito. Olhei debaixo da saia de uma garotinha. Chutei minha mãe. Comi meleca do nariz. Acho que é tudo. Exceto que hoje batizei um cachorro.
Você batizou um cachorro?
Eu estava condenado. Um pecado mortal. Não tinha sentido em continuar com aquilo. Levantei para ir embora. Não sei se a voz me recomendou rezar uma Ave-Maria ou se a voz não disse uma palavra sequer. Afastei a cortina, e lá estava Frank me esperando. Saímos da igreja e estávamos mais uma vez na rua.
Me sinto purificado – disse Frank. – E você?
Não.
Nunca mais me confessei. Esse negócio conseguia ser pior do que a missa das dez.
Charles Bukowski, in Misto-Quente

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