Auto-retrato
com a morte tocando violino (1872), de
Arnold
Böckin
No
dia seguinte ninguém morreu. O fato, por absolutamente contrário às
normas da vida, causou nos espíritos uma perturbação enorme,
efeito em todos os aspectos justificado, basta que nos lembremos de
que não havia notícia nos quarenta volumes da história universal,
nem ao menos um caso para amostra, de ter alguma vez ocorrido
fenômeno semelhante, passar-se um dia completo, com todas as suas
pródigas vinte e quatro horas, contadas entre diurnas e noturnas,
matutinas e vespertinas, sem que tivesse sucedido um falecimento por
doença, uma queda mortal, um suicídio levado a bom fim, nada de
nada, pela palavra nada. Nem sequer um daqueles acidentes de
automóvel tão frequentes em ocasiões festivas, quando a alegre
irresponsabilidade e o excesso de álcool se desafiam mutuamente nas
estradas para decidir sobre quem vai conseguir chegar à morte em
primeiro lugar. A passagem do ano não tinha deixado atrás de si o
habitual e calamitoso regueiro de óbitos, como se a velha átropos
da dentuça arreganhada tivesse resolvido embainhar a tesoura por um
dia. Sangue, porém, houve-o, e não pouco. Desvairados, confusos,
aflitos, dominando a custo as náuseas, os bombeiros extraíam da
amálgama dos destroços míseros corpos humanos que, de acordo com a
lógica matemática das colisões, deveriam estar mortos e bem
mortos, mas que, apesar da gravidade dos ferimentos e dos
traumatismos sofridos, se mantinham vivos e assim eram transportados
aos hospitais, ao som das dilacerantes sereias das ambulâncias.
Nenhuma dessas pessoas morreria no caminho e todas iriam desmentir os
mais pessimistas prognósticos médicos, Esse pobre diabo não tem
remédio possível, nem valia a pena perder tempo a operá-lo, dizia
o cirurgião à enfermeira enquanto esta lhe ajustava a máscara à
cara. Realmente, talvez não houvesse salvação para o coitado no
dia anterior, mas o que estava claro é que a vítima se recusava a
morrer neste. E o que acontecia aqui, acontecia em todo o país. Até
à meia-noite em ponto do último dia do ano ainda houve gente que
aceitou morrer no mais fiel acatamento às regras, quer as que se
reportavam ao fundo da questão, isto é, acabar-se a vida, quer as
que atinham às múltiplas modalidades de que ele, o referido fundo
da questão, com maior ou menor pompa e solenidade, usa revestir-se
quando chega o momento fatal. Um caso sobre todos interessante,
obviamente por se tratar de quem se tratava, foi o da idosíssima e
veneranda rainha-mãe. Às vinte e três horas e cinquenta e nove
minutos daquele dia trinta e um de dezembro ninguém seria tão
ingênuo que apostasse um pau de fósforo queimado pela vida da real
senhora. Perdida qualquer esperança, rendidos os médicos à
implacável evidência, a família real, hierarquicamente disposta ao
redor do leito, esperava com resignação o derradeiro suspiro da
matriarca, talvez umas palavrinhas, uma última sentença edificante
com vista à formação moral dos amados príncipes seus netos,
talvez uma bela e arredondada frase dirigida à sempre ingrata
retentiva dos súbditos vindouros. E depois, como se o tempo tivesse
parado, não aconteceu nada. A rainha-mãe nem melhorou nem piorou,
ficou ali como suspensa, baloiçando o frágil corpo à borda da
vida, ameaçando a cada instante cair para o outro lado, mas atada a
este por um tênue fio que a morte, só podia ser ela, não se sabe
por que estranho capricho, continuava a segurar. Já tínhamos
passado ao dia seguinte, e nele, como se informou logo no princípio
deste relato, ninguém iria morrer.
A
tarde já ia muito adiantada quando começou a correr o rumor de que,
desde a entrada do novo ano, mais precisamente desde as zero horas
deste dia um de janeiro em que estamos, não havia constância de se
ter dado em todo o país um só falecimento que fosse. Poderia
pensar-se, por exemplo, que o boato tivesse tido origem na
surpreendente resistência da rainha-mãe a desistir da pouca vida
que ainda lhe restava, mas a verdade é que a habitual parte médica
distribuída pelo gabinete de imprensa do palácio aos meios de
comunicação social não só assegurava que o estado geral da real
enferma havia experimentado visíveis melhoras durante a noite, como
até sugeria, como até dava a entender, escolhendo cuidadosamente as
palavras, a possibilidade de um completo restabelecimento da
importantíssima saúde. Na sua primeira manifestação o rumor
também poderia ter saído com toda a naturalidade de uma agência de
enterros e trasladações, Pelos vistos ninguém parece estar
disposto a morrer no primeiro dia do ano, ou de um hospital, Aquele
tipo da cama vinte e sete não ata nem desata, ou do porta-voz da
polícia de trânsito, É um autêntico mistério que, tendo havido
tantos acidentes na estrada, não haja ao menos um morto para
exemplo. O boato, cuja fonte primigênia nunca foi descoberta, sem
que, por outro lado, à luz do que viria a suceder depois, isso
importasse muito, não tardou a chegar aos jornais, à rádio e à
televisão, e fez espevitar imediatamente as orelhas a diretores,
adjuntos e chefes de redação, pessoas não só preparadas para
farejar à distância os grandes acontecimentos da história do mundo
como treinadas no sentido de os tornar ainda maiores sempre que tal
convenha. Em poucos minutos já estavam na rua dezenas de repórteres
de investigação fazendo perguntas a todo o bicho-careta que lhes
aparecesse pela frente, ao mesmo tempo que nas fervilhantes redações
as baterias de telefones se agitavam e vibravam em idênticos
frenesis indagadores. Fizeram-se chamadas para os hospitais, para a
cruz vermelha, para a morgue, para as agências funerárias, para as
polícias, para todas elas, com compreensível exclusão da secreta,
mas as respostas iam dar às mesmas lacônicas palavras, Não há
mortos. Mais sorte teria aquela jovem repórter de televisão a quem
um transeunte, olhando alternadamente para ela e para a câmara,
contou um caso vivido em pessoa e que era a exata cópia do já
citado episódio da rainha-mãe, Estava justamente a dar a
meia-noite, disse ele, quando o meu avô, que parecia mesmo a ponto
de finar-se, abriu de repente os olhos antes que soasse a última
badalada no relógio da torre, como se se tivesse à farmácia, o avô
está lá à espera do remédio, empurrou o homem para dentro do
carro da reportagem, Venha, venha comigo, o seu avô já não precisa
de remédios, gritou, e logo mandou arrancar para o estúdio da
televisão, onde nesse preciso momento tudo estava a preparar-se para
um debate entre três especialistas em fenômenos paranormais, a
saber, dois bruxos conceituados e uma famosa vidente, convocados a
toda a pressa para analisarem e darem a sua opinião sobre o que já
começava a ser chamado por alguns graciosos, desses que nada
respeitam, a greve da morte. A confiada repórter laborava no mais
grave dos enganos, porquanto havia interpretado as palavras da sua
fonte informativa como significando que o moribundo, em sentido
literal, se tinha arrependido do passo que estava prestes a dar, isto
é, morrer, defuntar, esticar o pernil, e portanto resolvera fazer
marcha atrás. Ora, as palavras que o feliz neto havia efetivamente
pronunciado, Como se se tivesse arrependido, eram radicalmente
diferentes de um peremptório Arrependeu-se. Umas quantas luzes de
sintaxe elementar e uma maior familiaridade com as elásticas
subtilezas dos tempos verbais teriam evitado o quiproquó e a
consequente descompostura que a pobre moça, rubra de vergonha e
humilhação, teve de suportar do seu chefe direto. Mal podiam
imaginar, porém, ele e ela, que a tal frase, repetida em direto pelo
entrevistado e novamente escutada em gravação no telejornal da
noite, iria ser compreendida da mesma equivocada maneira por milhões
de pessoas, o que virá a ter como desconcertante consequência, num
futuro muito próximo, a criação de um movimento de cidadãos
firmemente convencidos de que pela simples ação da vontade será
possível vencer a morte e que, por conseguinte, o imerecido
desaparecimento de tanta gente no passado só se tinha devido a uma
censurável debilidade de volição das gerações anteriores. Mas as
cousas não ficarão por aqui. Uma vez que as pessoas, sem que para
tal tenham de cometer qualquer esforço perceptível, irão continuar
a não morrer, um outro movimento popular de massas, dotado de uma
visão prospectiva mais ambiciosa, proclamará que o maior sonho da
humanidade desde o princípio dos tempos, isto é, o gozo feliz de
uma vida eterna cá na terra, se havia tornado em um bem para todos,
como o sol que nasce todos os dias e o ar que respiramos. Apesar de
disputarem, por assim dizer, o mesmo eleitorado, houve um ponto em
que os dois movimentos souberam pôr-se de acordo, e foi terem
nomeado para a presidência honorária, dada a sua eminente qualidade
de precursor, o corajoso veterano que, no instante supremo, havia
desafiado e derrotado a morte. Tanto quanto se sabe, não virá a ser
atribuída particular importância ao facto de o avôzinho se
encontrar em estado de coma profundo e, segundo todos os indícios,
irreversível.
José
Saramago, in As intermitências da morte
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