Eu
amo meu marido. De manhã à noite. Mal acordo, ofereço-lhe café.
Ele suspira exausto da noite sempre maldormida e começa a
barbear-se. Bato-lhe à porta três vezes, antes que o café esfrie.
Ele grunhe com raiva e eu vocifero com aflição. Não quero meu
esforço confundido com um líquido frio que ele tragará como me
traga duas vezes por semana, especialmente no sábado.
Depois,
arrumo-lhe o nó da gravata e ele protesta por consertar-lhe
unicamente a parte menor de sua vida. Rio para que ele saia mais
tranquilo, capaz de enfrentar a vida lá fora e trazer de volta para
a sala de visita um pão sempre quentinho e farto.
Ele
diz que sou exigente, fico em casa lavando a louça, fazendo compras,
e por cima reclamo da vida. Enquanto ele constrói o seu mundo com
pequenos tijolos, e ainda que alguns destes muros venham ao chão, os
amigos o cumprimentam pelo esforço de criar olarias de barro, todas
sólidas e visíveis.
A
mim também me saúdam por alimentar um homem que sonha com
casas-grandes, senzalas e mocambos, e assim faz o país progredir. E
é por isto que sou a sombra do homem que todos dizem eu amar. Deixo
que o sol entre pela casa, para dourar os objetos comprados com
esforço comum. Embora ele não me cumprimente pelos objetos
fluorescentes. Ao contrário, através da certeza do meu amor,
proclama que não faço outra coisa senão consumir o dinheiro que
ele arrecada no verão. Eu peço então que compreenda minha
nostalgia por uma terra antigamente trabalhada pela mulher, ele
franze o rosto como se eu lhe estivesse propondo uma teoria que
envergonha a família e a escritura definitiva do nosso apartamento.
O
que mais quer, mulher, não lhe basta termos casado em comunhão de
bens? E dizendo que eu era parte do seu futuro, que só ele porém
tinha o direito de construir, percebi que a generosidade do homem
habilitava-me a ser apenas dona de um passado com regras ditadas no
convívio comum. Comecei a ambicionar que maravilha não seria viver
apenas no passado, antes que este tempo pretérito nos tenha sido
ditado pelo homem que dizemos amar. Ele aplaudiu o meu projeto.
Dentro de casa, no forno que era o lar, seria fácil alimentar o
passado com ervas e mingau de aveia, para que ele, tranquilo, gerisse
o futuro. Decididamente, não podia ele preocupar-se com a matriz do
meu ventre, que devia pertencer-lhe de modo a não precisar cheirar o
meu sexo para descobrir quem mais, além dele, ali estivera,
batera-lhe à porta, arranhara suas paredes com inscrições e datas.
Filho meu tem que ser só meu, confessou aos amigos no sábado do mês
que recebíamos. E mulher tem que ser só minha e nem mesmo dela. A
ideia de que eu não podia pertencer-me, tocar no meu sexo para
expurgar-lhe os excessos, provocou-me o primeiro sobressalto na
fantasia do passado em que até então estivera imersa. Então o
homem, além de me haver naufragado no passado, quando se sentia
livre para viver a vida a que ele apenas tinha acesso, precisava
também atar minhas mãos, para minhas mãos não sentirem a doçura
da própria pele, pois talvez esta doçura me ditasse em voz baixa
que havia outras peles igualmente doces e privadas, cobertas de pêlo
felpudo, e com a ajuda da língua podia lamber-se o seu sal?
Olhei
meus dedos revoltada com as unhas longas pintadas de roxo. Unhas de
tigre que reforçavam a minha identidade, grunhiam quanto à verdade
do meu sexo. Alisei meu corpo, pensei, acaso sou mulher unicamente
pelas garras longas e por revesti-las de ouro, prata, o ímpeto do
sangue de um animal abatido no bosque? Ou porque o homem adorna-me de
modo a que quando tire estas tintas de guerreira do rosto
surpreende-se com uma face que lhe é estranha, que ele cobriu de
mistério para não me ter inteira? De repente, o espelho pareceu-me
o símbolo de uma derrota que o homem trazia para casa e tornava-me
bonita. Não é verdade que te amo, marido? perguntei-lhe enquanto
lia os jornais, para instruir-se, e eu varria as letras de imprensa
cuspidas no chão logo após ele assimilar a notícia. Pediu,
deixe-me progredir, mulher. Como quer que eu fale de amor quando se
discutem as alternativas econômicas de um país em que os homens
para sustentarem as mulheres precisam desdobrar um trabalho de
escravo. Eu lhe disse então, se não quer discutir o amor, que
afinal bem pode estar longe daqui, ou atrás dos móveis para onde às
vezes escondo a poeira depois de varrer a casa, que tal se após
tantos anos eu mencionasse o futuro como se fosse uma sobremesa?
Ele
deixou o jornal de lado, insistiu que eu repetisse. Falei na palavra
futuro com cautela, não queria feri-lo, mas já não mais desistia
de uma aventura africana recém-iniciada naquele momento. Seguida por
um cortejo untado de suor e ansiedade, eu abatia os javalis,
mergulhava meus caninos nas suas jugulares aquecidas, enquanto Clark
Gable, atraído pelo meu cheiro e do animal em convulsão, ia pedindo
de joelhos o meu amor. Sôfrega pelo esforço, eu sorvia água do
rio, quem sabe em busca da febre que estava em minhas entranhas e eu
não sabia como despertar. A pele ardente, o delírio, e as palavras
que manchavam os meus lábios pela primeira vez, eu ruborizada de
prazer e pudor, enquanto o pajé salvava-me a vida com seu ritual e
seus pêlos fartos no peito. Com a saúde nos dedos, da minha boca
parecia sair o sopro da vida e eu deixava então o Clark Gable
amarrado numa árvore, lentamente comido pelas formigas. Imitando a
Nayoka, eu descia o rio que quase me assaltara as forças, evitando
as quedas d’água, aos gritos proclamando liberdade, a mais antiga
e miríade das heranças.
O
marido, com a palavra futuro a boiar-lhe nos olhos e o jornal caído
no chão, pedia-me, o que significa este repúdio a um ninho de amor,
segurança, tranquilidade, enfim a nossa maravilhosa paz conjugal? E
acha você, marido, que a paz conjugal se deixa amarrar com os fios
tecidos pelo anzol, só porque mencionei esta palavra que te
entristece, tanto que você começa a chorar discreto, porque o teu
orgulho não lhe permite o pranto convulso, este sim, reservado à
minha condição de mulher? Ah, marido, se tal palavra tem a descarga
de te cegar, sacrifico-me outra vez para não vê-lo sofrer. Será
que apagando o futuro agora ainda há tempo de salvar-te? Suas
crateras brilhantes sorveram depressa as lágrimas, tragou a fumaça
do cigarro com volúpia e retomou a leitura. Dificilmente se
encontraria homem como ele no nosso edifício de dezoito andares e
três portarias. Nas reuniões de condomínio, a que estive presente,
era ele o único a superar os obstáculos e perdoar aos que o haviam
magoado. Recriminei meu egoísmo, ter assim perturbado a noite de
quem merecia recuperar-se para a jornada seguinte.
Para
esconder minha vergonha, trouxe-lhe café fresco e bolo de chocolate.
Ele aceitou que eu me redimisse. Falou-me das despesas mensais. Do
balanço da firma ligeiramente descompensado, havia que cuidar dos
gastos. Se contasse com a minha colaboração, dispensaria o sócio
em menos de um ano. Senti-me feliz em participar de um ato que nos
faria progredir em doze meses. Sem o meu empenho, jamais ele teria
sonhado tão alto. Encarregava-me eu à distância da sua capacidade
de sonhar. Cada sonho do meu marido era mantido por mim. E, por tal
direito, eu pagava a vida com cheque que não se poderia
contabilizar.
Ele
não precisava agradecer. De tal modo atingira a perfeição dos
sentimentos, que lhe bastava continuar em minha companhia para querer
significar que me amava, eu era o mais delicado fruto da terra, uma
árvore no centro do terreno de nossa sala, ele subia na árvore,
ganhava-lhe os frutos, acariciava a casca, podando seus excessos.
Durante
uma semana bati-lhe à porta do banheiro com apenas um toque
matutino. Disposta a fazer-lhe novo café, se o primeiro esfriasse,
se esquecido ficasse a olhar-se no espelho com a mesma vaidade que me
foi instilada desde a infância, logo que se confirmou no nascimento
tratar-se de mais uma mulher. Ser mulher é perder-se no tempo, foi a
regra de minha mãe. Queria dizer, quem mais vence o tempo que a
condição feminina? O pai a aplaudia completando, o tempo não é o
envelhecimento da mulher, mas sim o seu mistério jamais revelado ao
mundo.
Já
viu, filha, que coisa mais bonita, uma vida nunca revelada, que
ninguém colheu senão o marido, o pai dos seus filhos? Os
ensinamentos paternos sempre foram graves, ele dava brilho de prata à
palavra envelhecimento.
Vinha-me
a certeza de que ao não se cumprir a história da mulher, não lhe
sendo permitida a sua própria biografia, era-lhe assegurada em troca
a juventude.
Só
envelhece quem vive, disse o pai no dia do meu casamento. E porque
viverás a vida do teu marido, nós te garantimos, através deste
ato, que serás jovem para sempre. Eu não sabia como contornar o
júbilo que me envolvia com o peso de um escudo, e ir ao seu coração,
surpreender-lhe a limpidez. Ou agradecer-lhe um estado que eu não
ambicionara antes, por distração talvez. E todo este troféu logo
na noite em que ia converter-me em mulher. Pois até então
sussurravam-me que eu era uma bela expectativa. Diferente do irmão
que já na pia batismal cravaram-lhe o glorioso estigma de homem,
antes de ter dormido com mulher.
Sempre
me disseram que a alma da mulher surgia unicamente no leito, ungido
seu sexo pelo homem. Antes dele a mãe insinuou que o nosso sexo mais
parecia uma ostra nutrida de água salgada, e por isso vago e
escorregadio, longe da realidade cativa da terra. A mãe gostava de
poesia, suas imagens sempre frescas e quentes.
Meu
coração ardia na noite do casamento. Eu ansiava pelo corpo novo que
me haviam prometido, abandonar a casca que me revestira no cotidiano
acomodado. As mãos do marido me modelariam até os meus últimos
dias e como agradecer-lhe tal generosidade? Por isso talvez sejamos
tão felizes como podem ser duas criaturas em que uma delas é a
única a transportar para o lar alimento, esperança, a fé, a
história de uma família.
Ele
é único a trazer-me a vida, ainda que às vezes eu a viva com uma
semana de atraso. O que não faz diferença. Levo até vantagens,
porque ele sempre a trouxe traduzida. Não preciso interpretar os
fatos, incorrer em erros, apelar para as palavras inquietantes que
terminam por amordaçar a liberdade. As palavras do homem são
aquelas de que deverei precisar ao longo da vida. Não tenho que
assimilar um vocabulário incompatível com o meu destino, capaz de
arruinar meu casamento.
Assim
fui aprendendo que a minha consciência que está a serviço da minha
felicidade ao mesmo tempo está a serviço do meu marido. É seu
encargo podar meus excessos, a natureza dotou-me com o desejo de
naufragar às vezes, ir ao fundo do mar em busca das esponjas. E para
que me serviriam elas senão para absorver meus sonhos,
multiplicá-los no silêncio borbulhante dos seus labirintos cheios
de água do mar? Quero um sonho que se alcance com a luva forte e que
se transforme algumas vezes numa torta de chocolate, para ele comer
com os olhos brilhantes, e sorriremos juntos. Ah, quando me sinto
guerreira, prestes a tomar das armas e ganhar um rosto que não é o
meu, mergulho numa exaltação dourada, caminho pelas ruas sem
endereço, como se a partir de mim, e através do meu esforço, eu
devesse conquistar outra pátria, nova língua, um corpo que sugasse
a vida sem medo e pudor. E tudo me treme dentro, olho os que passam
com um apetite de que não me envergonharei mais tarde. Felizmente, é
uma sensação fugaz, logo busco o socorro das calçadas familiares,
nelas a minha vida está estampada. As vitrines, os objetos, os seres
amigos, tudo enfim orgulho da minha casa.
Estes
meus atos de pássaro são bem indignos, feririam a honra do meu
marido. Contrita, peço-lhe desculpas em pensamento, prometo-lhe
esquivar-me de tais tentações. Ele parece perdoar-me a distância,
aplaude minha submissão ao cotidiano feliz, que nos obriga a
prosperar a cada ano. Confesso que esta ânsia me envergonha, não
sei como abrandá-la. Não a menciono senão para mim mesma. Nem os
votos conjugais impedem que em escassos minutos eu naufrague no
sonho. Estes votos que ruborizam o corpo mas não marcaram minha vida
de modo a que eu possa indicar as rugas que me vieram através do seu
arrebato.
Nunca
mencionei ao marido estes galopes perigosos e breves. Ele não
suportaria o peso dessa confissão. Ou que lhe dissesse que nessas
tardes penso em trabalhar fora, pagar as miudezas com meu próprio
dinheiro. Claro que estes desatinos me colhem justamente pelo tempo
que me sobra. Sou uma princesa da casa, ele me disse algumas vezes e
com razão. Nada pois deve afastar-me da felicidade em que estou para
sempre mergulhada. Não posso reclamar. Todos os dias o marido
contraria a versão do espelho. Olho-me ali e ele exige que eu me
enxergue errado. Não sou em verdade as sombras, as rugas com que me
vejo. Como o pai, também ele responde pela minha eterna juventude. É
gentil de sentimentos. Jamais comemorou ruidosamente meu aniversário,
para eu esquecer de contabilizar os anos. Ele pensa que não percebo.
Mas, a verdade é que no fim do dia já não sei quantos anos tenho.
E
também evita falar do meu corpo, que se alargou com os anos, já não
visto os modelos de antes. Tenho os vestidos guardados no armário,
para serem discretamente apreciados. às sete da noite, todos os
dias, ele abre a porta sabendo que do outro lado estou à sua espera.
E quando a televisão exibe uns corpos em floração, mergulha a cara
no jornal, no mundo só nós existimos.
Sou
grata pelo esforço que faz em amar-me. Empenho-me em agradá-lo,
ainda que sem vontade às vezes, ou me perturbe algum rosto estranho,
que não é o dele, de um desconhecido sim, cuja imagem nunca mais
quero rever. Sinto então a boca seca, seca por um cotidiano que
confirma o gosto do pão comido às vésperas, e que me alimentará
amanhã também. Um pão que ele e eu comemos há tantos anos sem
reclamar, ungidos pelo amor, atados pela cerimônia de um casamento
que nos declarou marido e mulher. Ah, sim, eu amo meu marido.
Nélida
Piñon, in Os cem melhores contos brasileiros do século
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