domingo, 14 de junho de 2020

Dos compassivos

Meus amigos, palavras zombeteiras chegaram até vosso amigo: “Olhai para Zaratustra! Ele não anda entre nós como se fôssemos animais?”.
Mas seria melhor falar assim: “O homem do conhecimento anda entre os homens como se estivesse entre animais”.
Para o homem do conhecimento, no entanto, o próprio ser humano é “o animal de faces vermelhas”.
Como lhe aconteceu isso? Não seria porque frequentemente teve de se envergonhar?
Oh, meus amigos! Assim fala o homem do conhecimento: Vergonha, vergonha, vergonha — eis a história do ser humano!
E por isso o homem nobre impõe a si mesmo não envergonhar: impõe a si mesmo ter vergonha diante de todos que sofrem.
Em verdade, não gosto deles, os misericordiosos que são bem-aventurados em sua compaixão: carecem por demais de vergonha.
Se tenho de ser compassivo, não quero que assim me chamem; e, quando o sou, então de preferência à distância.
E também de bom grado escondo a cabeça e fujo, antes de ser reconhecido: e vos digo para assim fazer, meus amigos!
Que o destino sempre ponha em meu caminho pessoas não sofredoras, como vós, e aquelas com quem eu possa ter esperança, refeição e mel em comum!
Em verdade, fiz isso e aquilo pelos que sofrem: mas pareceu-me sempre fazer melhor ao aprender a me alegrar melhor.
Desde que existem homens, o homem se alegrou muito pouco: apenas isso, meus irmãos, é nosso pecado original!
Se aprendemos a nos alegrar melhor, melhor desaprendemos de causar dor nos outros e planejar dores.
Por isso lavo a minha mão que ajudou um sofredor, por isso limpo também a minha alma.
Tendo visto o sofredor sofrer, envergonhei-me por sua vergonha; ao ajudá-lo, ofendi gravemente seu orgulho.
Grandes obséquios não tornam alguém grato, mas sim vingativo; e, se o pequeno benefício não é esquecido, ele vem a se tornar um verme roedor.
Sede esquivos no aceitar! Que seja uma distinção a vossa aceitação!” — assim aconselho aos que nada têm para presentear.
Eu, porém, sou um presenteador: de bom grado presenteio, como um amigo aos amigos. Mas que os desconhecidos e pobres colham eles mesmos os frutos de minha árvore: isso envergonha menos.
Mas os mendigos devem ser suprimidos! Em verdade, é irritante lhes dar e irritante não lhes dar.
E assim também os pecadores e as más consciências! Crede em mim, amigos: remorsos ensinam a morder.
O pior, no entanto, são os pensamentos mesquinhos. Em verdade, é ainda melhor agir mal do que pensar mesquinhamente!
Certamente direis: “O prazer nas pequenas maldades nos poupa de alguns grandes malfeitos”. Mas nisso não se deve querer poupar.
Como um abscesso é o malfeito: coça, incomoda e rebenta — fala honestamente.
Vede, eu sou uma doença” — assim fala o malfeito; eis a sua honestidade.
Mas o pensamento mesquinho parece um cogumelo: rasteja, curva-se e pretende não estar em nenhum lugar — até que o corpo inteiro se ache podre e murcho de tantos pequenos cogumelos.
Mas àquele que está possuído pelo Demônio eu cochicho estas palavras: “É melhor que faças teu Demônio crescer! Também para ti há um caminho para a grandeza!” —
Ah, meus irmãos! Sabe-se algo demais de cada pessoa! E algumas se tornam transparentes para nós, mas ainda assim estamos longe de poder ver através delas.
É difícil viver com os homens, sendo tão difícil calar.
E não com aquele que nos é antipático somos mais injustos, mas sim com aquele que nada tem conosco.
Se tens um amigo que sofre, sê um local de repouso para seu sofrimento, mas como um leito duro, um leito de campanha: assim lhe serás mais útil.
E, se um amigo te fizer mal, dize-lhe: “Perdoo-te o que me fizeste; mas que o tenhas feito a ti — como poderia eu perdoá-lo?”.
Assim fala todo grande amor: ele supera até o perdão e a compaixão.
Deve-se conter o próprio coração; pois, se o deixamos solto, logo a cabeça também se vai!
Ah, onde foram feitas maiores tolices, no mundo, do que entre os compassivos? E o que produziu mais sofrimento no mundo do que as tolices dos compassivos?
Ai de todos os que amam e que não atingiram uma altura acima de sua compaixão!
Assim me falou certa vez o Demônio: “Também Deus tem seu inferno: é seu amor aos homens”.
E recentemente o ouvi dizer isto: “Deus está morto; morreu de sua compaixão pelos homens”.
Desse modo, estais prevenidos contra a compaixão: dali ainda virá uma pesada nuvem para os homens! Em verdade, eu conheço bem os sinais do tempo!
Mas notai também estas palavras: todo grande amor ainda se acha acima de sua compaixão: pois ele ainda quer — criar o amado!
Ofereço-me eu próprio a meu amor, e o meu próximo como eu ” — eis o que dizem todos os criadores.
Mas todos os criadores são duros. —
Assim falou Zaratustra.
Friedrich Nietzsche, in Assim falou Zaratustra

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