segunda-feira, 29 de junho de 2020

Antinomia do casamento

Estamos numa baita crise. Discutimos muito”, desabafou com o melhor amigo, aquele casado ainda com a namorada da faculdade, pai de dois moleques, dono de um golden que “retrieve” até pensamento e de uma rotina aparentemente invejável.
Amigo que, como sua mulher, não aparentava a idade que tinha. Casal esportista, queimado pelo sol, causava admiração. Os dois sempre bem-humorados. Nunca expunham desavenças, se existiam.
Se um casamento pode dar certo, ali estava o exemplo a ser seguido. Qual o segredo?
O que detona uma discussão?”, o amigo perguntou, como um sábio socrático.
Decisões. Em viagens, por exemplo. Brigamos em todas as viagens que fizemos. Só quando namorávamos, uma vez deu certo.”
E se lembrou da viagem teste para Bariloche, de classe executiva, com direito a uma tarde em Buenos Aires para compras.
Estavam se conhecendo. Viagem teste: se conseguissem o consenso em toda a programação turística, se conseguissem esquiar, passear, comprar e ainda transar como dois adolescentes, a relação ultrapassaria o cabo das tormentas a caminho de um mundo novo, paradisíaco, cheio de especiarias e ritos exóticos.
Rolou. Foram morar juntos um mês depois de voltarem da Argentina.
Mas, na primeira semana juntos, “casados”, o alarme apitou. A primeira discussão pública.
Tinha levado a mulher para jantar num japonês escondido que só ele conhecia, daqueles que gritam “irashaimase” assim que os clientes entram. Ele era chamado pelo nome pelos garçons. Sabia de cor o cardápio e o time para qual cada japa torcia.
Ela deixou ele escolher o combinado; afinal, ele era um “local”. Enquanto o garçom íntimo anotava o pedido, ela lia o cardápio e questionava se o custo de um outro combinado, que tinha mais peças e era pouca coisa mais caro, não valia o benefício.
Você me diz para escolher o prato, mas acabou de interferir na decisão”, comentou irônico.
Só estou tentando ajudar”, foi a desculpa que passou a ser o mantra a atormentar a vida do casal.

Nas viagens seguintes, já na ida ao aeroporto começavam os conflitos. Ele preferia fazer hora num duty free a mofar ansioso num congestionamento. Planejava sair com cinco horas de antecedência. Ela o chamava de estressado e tentava acalmá-lo com um desesperador “vai dar tempo”.
No check-in, mais conflitos, já que chegavam em cima da hora: lugar no avião e o que levar como bagagem de mão.
Assim que decolavam, ele se dopava. Preferia apagar por todo o voo. Ela queria papear, ver todos os filmes, ler.
No exterior, ele preferia andar de metrô e gastar mais tempo em museus do que solas de sapatos. Ela preferia andar a pé.
Ele preferia café da manhã no quarto. Ela, na rua. Ele detestava igrejas e museus de arte contemporânea. Ela era fascinada por todos os templos, sem distinção de estilo e religião, e seguia as dicas de viagem de uma revista feminina de moda.
Ele queria conhecer a cidade num ônibus de dois andares, que parasse em todos os pontos turísticos e resumisse numa tarde o que deve ser visto e fotografado. Ela preferia jogar com o acaso e sair sem plano traçado.
Ele queria conhecer a gastronomia local. Quanto mais esquisita, mais interessava. Ela temia por novidades da flora e da fauna local e sempre sugeria restaurantes básicos, mediterrâneos. Seu maior pavor era uma intoxicação alimentar paga em moeda estrangeira.
Por fim, o amigo deu o conselho que serviria para a vida toda, e mudaria para sempre a relação daquele casal:
Deixa ela decidir tudo. Faça como eu. Enquanto ela discute no check-in do aeroporto, fique lá na calçada fumando.”
Mas eu não fumo.”
Comece.”
E assim foi.
Planejou outra viagem para colocar em prática o novo comportamento.
A ida para Orlando foi um sucesso. Ele não palpitou. Nem questionou quando ela pediu na Disney que ele ficasse ao lado do Pateta, para uma foto que postou no Instagram.
E começou a fumar. Em toda e qualquer indecisão turística, ele dizia: “Decide você, que vou lá fora fumar um cigarrinho.”
Não discutiu com ela quando na volta deu excesso de bagagem. E passou o voo acordado vendo as fotos que ela tirou com o Pato Donald, o Mickey, a Margarida, o Tio Patinhas e todo o casting imbecil da família Disney. Voltaram e concluíram que nasceram um para o outro.

Ela decidiu se casarem formalmente.
Ele topou, apesar de agnóstico.
Ela escolheu a data, o local, as músicas e o bufê. Fez sozinha a lista de convidados. E sugeriu mudarem de casa.
Ele topou.
Ela escolheu o bairro, a rua, o condomínio e a companhia que faria a mudança.
Ele apenas encaixotou.
Ela decorou o novo apê. E era a última palavra em tudo: se sairiam ou ficariam em casa assistindo a um DVD, selecionado por ela, lógico, no novo blu-ray que ela escolheu e que combinava com os móveis da sala. É, foi na mudança que ela decidiu que a TV ficaria na sala.
Às quartas, jogatina. Na mesa de pôquer, só os maridos.
Enquanto eles apontavam quem era o small e o big blind, reclamavam das mulheres mandonas e dos conflitos infindáveis. Só ele jogava concentrado, ciente de que encontrara a fórmula perfeita, que pendia para um lado.
Mal sabia que, na sala ao lado, na tranca das mulheres, a sua era a que sempre puxava o debate, com a cumplicidade da mesa.
Ela não tinha outro assunto:
Não entendo, ele parece interessado, mas no final sou eu quem acaba fazendo tudo. Fico esperando ele tomar atitudes, mas nada. E ainda começou a fumar!”
Marcelo Rubens Paiva, in As verdades que ela não diz

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