sábado, 11 de abril de 2020

Um novo professor

Ilustração: Darcy Penteado 

Tiraram-me da escola da mestiça, puseram-me na de um mestiço, não porque esta se avantajasse àquela, mas porque minha família se mudou para a Rua da Matriz, e D. Maria do O, no Juazeiro, ficava longe, graças a Deus. O novo mestre funcionava no Largo do Comércio, numa casa de jardim com duas ou três palmeiras.
Um irmão dele, claro e simpático, certo dia me apareceu zangado no armazém de Seu Costa, sentou-se num fardo de algodão, abriu um jornal, fechou-o, encarou-me e rugiu:
Tenho o meu lugar definido na sociedade.
Não o contrariei. Admirava-lhe a caligrafia, os discursos na Loja Maçônica e a linguagem nas conversas. Desejaria falar tão facilmente, rir como ele. Mas naquela hora o homem não queria falar nem rir. Bêbedo, espumava, recordando alguma ofensa:
Tenho o meu lugar definido.
Provavelmente alguém o molestara, alguém que não recebera a resposta adequada e ali, na perturbação da embriaguez, se confundia comigo.
Sem dúvida.
O sujeito desdenhou a confirmação: bateu na coxa e martelou, reimoso, disposto a luta, babando-se:
Tenho o meu lugar definido.
Mas isso foi muito depois de eu entrar na escola do irmão. Este não tinha lugar definido na sociedade. Para bem dizer, não tinha lugar definido na espécie humana: era um tipo mesquinho, de voz fina, modos ambíguos, e passava os dias alisando o pixaim com uma escova de cabelos duros. Azeite e banha não domavam a carapinha — e o dono teimava, esfregava-a constantemente, mirando-se num espelho, namorando-se, mordendo a ponta da língua. Era feio, quase negro — e a feiúra e o pretume o afligiam. Porque tinha senso de beleza, mas procurava-a loucamente no seu corpo mofino. Friccionava-se, empoava-se, arrebicava-se, examinava-se no vidro, entortando os bugalhos estriados de vermelho.
Eu permanecia nas histórias enigmáticas do Barão de Macaúbas.
Soletrava mentalmente, sabendo que não conseguiria dizer alto as frases arranjadas no interior. E cabeceava na ardósia, sobre os algarismos de somas e diminuições lentas. Mas a atenção se desviava dali, buscava a janela, que me exibia cabeças de transeuntes, muros, telhados, as palmeiras grávidas abanando-se. Inquietava-me o espelho, onde se refletia a pacholice do mulato. Bom que o pó-de-arroz se fixasse na pele azinhavrada, o óleo assentasse no crânio miúdo os pêlos rebeldes.
Quando isso acontecia, o professor deixava a sala, ia apresentar-se às irmãs, saracoteando-se, lançando guinchinhos de quem sente cócegas. Voltava iluminado, um sorriso infantil boiando-lhe nos beiços grossos. Abancava, observava os dedos, as unhas enfeitadas de manchas brancas, metia-se num sonho dengoso. Estremecia, despertava, olhava as quatro paredes, soltava um largo suspiro. Em seguida, ronceiro, como se levantasse grande peso, tomava as nossas escritas, corria por elas a vista baça e distante, julgava-as atirando-lhes números convencionais. Com um gesto lânguido, chamava-nos à lição, que decorria sonolenta e morna.
Aproveitava-me desses instantes para saltar linhas, engolir períodos, subtrair páginas inteiras. No começo aventurava-me receoso a tais contravenções, jogando ao pardavasco olhadelas tímidas e culposas. Vendo-o tranquilo, escorregava de novo na prosa desenxabida, animava-me a outro pulo, fantasiava em sossego um livro diferente, sem explicações confusas, sem lengalengas cheias de moral. Uma interjeição me puxava à realidade, esfriava-me o sangue; a falta se revelava, erguia-me o rosto alarmado. Nenhum castigo.
O professor andava no mundo da lua, as pálpebras meio cerradas, mexendo-se devagar na cadeira, como sonâmbulo. Não se espantara, não se indignara: a exclamação traduzia algum sentimento nebuloso, estranho à leitura. Findo o susto, considerava-me isolado, continuava nas infrações sem nenhuma vergonha.
Às vezes, porém, o espelho nos anunciava borrasca. O desgraçado não se achava liso e alvacento, azedava-se, repentina aspereza substituía a doçura comum. Arriava na cadeira, agitava-se, parecia mordido de pulgas. Tudo lhe cheirava mal. Segurava a palmatória como se quisesse derrubar com ela o mundo. E nós, meia dúzia de alunos, tremíamos da cólera maciça, tentávamos esconder-nos uns por detrás dos outros. Daríamos os nossos cabelos, trocaríamos as nossas figuras por aquela miséria que se acabrunhava junto à mesa. Por que se aperreava tanto? Insignificâncias. Eu dizia comigo que o professor, como o irmão, poderia recitar discursos brilhantes e crescer. Tornar-se um homem.
O infeliz não pretendia ser homem. E ali estava, sucumbido, enxofrado, ressumando peçonha. Os olhos ensanguentavam-se, os dentes rangiam. E consertava-nos furiosamente a pronúncia, obediente a vírgulas e pontos, forçava-nos a repetir uma frase dez vezes, punha notas baixas nas escritas, rasgando o papel, farejava as contas até que o erro surgia e se publicava com estridência arrepiada. Nesse policiamento súbito acuávamos — e as folhas virgens endureciam.
Desalentava-me no banco, os miolos a arder, zonzo. Quando se acabaria aquele horrível estrupício? Evidentemente não se acabaria: precisava habituar-me a ele, gostar da insipidez. Voltava à obrigação, reduzida por bocejos e cochilos.
Felizmente a exigência durava pouco. O sujeito melindroso enxergava no vidro uma cara atraente, alvoroçava-se, deixava-me em paz. As complicações do livro adelgaçavam, perdiam-se, enquanto o meu espírito vagaroso andava longe, pezunhando nos atoleiros que se espalhavam na cidade. Ia à estação da estrada de ferro, apreciava locomotivas, fumaça, apitos, vagões, passageiros e carregadores, trilhos, dormentes, rapaduras de carvão; detinha-se no mercado, que aos sábados se povoava de matutos ruidosos; visitava lojas, armazéns, a agência do correio; subia e descia ladeiras, passeava nos montes verdes, nas margens do rio largo e pedregoso. Assim divagando, sapequei o resto das histórias espessas, surdo aos conselhos que havia nelas. Nem me inteirava da existência dos conselhos.
Despedi-me enfim do Barão de Macaúbas, larguei a cartonagem, respirei.
Mas a satisfação foi rápida: meteram-me noutra escola ruim e adquiri uma seleta clássica.
Graciliano Ramos, in Infância

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