Ilustração: Darcy Penteado
Tiraram-me
da escola da mestiça, puseram-me na de um mestiço, não porque esta
se avantajasse àquela, mas porque minha família se mudou para a Rua
da Matriz, e D. Maria do O, no Juazeiro, ficava longe, graças a
Deus. O novo mestre funcionava no Largo do Comércio, numa casa de
jardim com duas ou três palmeiras.
Um
irmão dele, claro e simpático, certo dia me apareceu zangado no
armazém de Seu Costa, sentou-se num fardo de algodão, abriu um
jornal, fechou-o, encarou-me e rugiu:
— Tenho
o meu lugar definido na sociedade.
Não
o contrariei. Admirava-lhe a caligrafia, os discursos na Loja
Maçônica e a linguagem nas conversas. Desejaria falar tão
facilmente, rir como ele. Mas naquela hora o homem não queria falar
nem rir. Bêbedo, espumava, recordando alguma ofensa:
— Tenho
o meu lugar definido.
Provavelmente
alguém o molestara, alguém que não recebera a resposta adequada e
ali, na perturbação da embriaguez, se confundia comigo.
— Sem
dúvida.
O
sujeito desdenhou a confirmação: bateu na coxa e martelou, reimoso,
disposto a luta, babando-se:
— Tenho
o meu lugar definido.
Mas
isso foi muito depois de eu entrar na escola do irmão. Este não
tinha lugar definido na sociedade. Para bem dizer, não tinha lugar
definido na espécie humana: era um tipo mesquinho, de voz fina,
modos ambíguos, e passava os dias alisando o pixaim com uma escova
de cabelos duros. Azeite e banha não domavam a carapinha — e o
dono teimava, esfregava-a constantemente, mirando-se num espelho,
namorando-se, mordendo a ponta da língua. Era feio, quase negro —
e a feiúra e o pretume o afligiam. Porque tinha senso de beleza, mas
procurava-a loucamente no seu corpo mofino. Friccionava-se,
empoava-se, arrebicava-se, examinava-se no vidro, entortando os
bugalhos estriados de vermelho.
Eu
permanecia nas histórias enigmáticas do Barão de Macaúbas.
Soletrava
mentalmente, sabendo que não conseguiria dizer alto as frases
arranjadas no interior. E cabeceava na ardósia, sobre os algarismos
de somas e diminuições lentas. Mas a atenção se desviava dali,
buscava a janela, que me exibia cabeças de transeuntes, muros,
telhados, as palmeiras grávidas abanando-se. Inquietava-me o
espelho, onde se refletia a pacholice do mulato. Bom que o
pó-de-arroz se fixasse na pele azinhavrada, o óleo assentasse no
crânio miúdo os pêlos rebeldes.
Quando
isso acontecia, o professor deixava a sala, ia apresentar-se às
irmãs, saracoteando-se, lançando guinchinhos de quem sente cócegas.
Voltava iluminado, um sorriso infantil boiando-lhe nos beiços
grossos. Abancava, observava os dedos, as unhas enfeitadas de manchas
brancas, metia-se num sonho dengoso. Estremecia, despertava, olhava
as quatro paredes, soltava um largo suspiro. Em seguida, ronceiro,
como se levantasse grande peso, tomava as nossas escritas, corria por
elas a vista baça e distante, julgava-as atirando-lhes números
convencionais. Com um gesto lânguido, chamava-nos à lição, que
decorria sonolenta e morna.
Aproveitava-me
desses instantes para saltar linhas, engolir períodos, subtrair
páginas inteiras. No começo aventurava-me receoso a tais
contravenções, jogando ao pardavasco olhadelas tímidas e culposas.
Vendo-o tranquilo, escorregava de novo na prosa desenxabida,
animava-me a outro pulo, fantasiava em sossego um livro diferente,
sem explicações confusas, sem lengalengas cheias de moral. Uma
interjeição me puxava à realidade, esfriava-me o sangue; a falta
se revelava, erguia-me o rosto alarmado. Nenhum castigo.
O
professor andava no mundo da lua, as pálpebras meio cerradas,
mexendo-se devagar na cadeira, como sonâmbulo. Não se espantara,
não se indignara: a exclamação traduzia algum sentimento nebuloso,
estranho à leitura. Findo o susto, considerava-me isolado,
continuava nas infrações sem nenhuma vergonha.
Às
vezes, porém, o espelho nos anunciava borrasca. O desgraçado não
se achava liso e alvacento, azedava-se, repentina aspereza substituía
a doçura comum. Arriava na cadeira, agitava-se, parecia mordido de
pulgas. Tudo lhe cheirava mal. Segurava a palmatória como se
quisesse derrubar com ela o mundo. E nós, meia dúzia de alunos,
tremíamos da cólera maciça, tentávamos esconder-nos uns por
detrás dos outros. Daríamos os nossos cabelos, trocaríamos as
nossas figuras por aquela miséria que se acabrunhava junto à mesa.
Por que se aperreava tanto? Insignificâncias. Eu dizia comigo que o
professor, como o irmão, poderia recitar discursos brilhantes e
crescer. Tornar-se um homem.
O
infeliz não pretendia ser homem. E ali estava, sucumbido, enxofrado,
ressumando peçonha. Os olhos ensanguentavam-se, os dentes rangiam. E
consertava-nos furiosamente a pronúncia, obediente a vírgulas e
pontos, forçava-nos a repetir uma frase dez vezes, punha notas
baixas nas escritas, rasgando o papel, farejava as contas até que o
erro surgia e se publicava com estridência arrepiada. Nesse
policiamento súbito acuávamos — e as folhas virgens endureciam.
Desalentava-me
no banco, os miolos a arder, zonzo. Quando se acabaria aquele
horrível estrupício? Evidentemente não se acabaria: precisava
habituar-me a ele, gostar da insipidez. Voltava à obrigação,
reduzida por bocejos e cochilos.
Felizmente
a exigência durava pouco. O sujeito melindroso enxergava no vidro
uma cara atraente, alvoroçava-se, deixava-me em paz. As complicações
do livro adelgaçavam, perdiam-se, enquanto o meu espírito vagaroso
andava longe, pezunhando nos atoleiros que se espalhavam na cidade.
Ia à estação da estrada de ferro, apreciava locomotivas, fumaça,
apitos, vagões, passageiros e carregadores, trilhos, dormentes,
rapaduras de carvão; detinha-se no mercado, que aos sábados se
povoava de matutos ruidosos; visitava lojas, armazéns, a agência do
correio; subia e descia ladeiras, passeava nos montes verdes, nas
margens do rio largo e pedregoso. Assim divagando, sapequei o resto
das histórias espessas, surdo aos conselhos que havia nelas. Nem me
inteirava da existência dos conselhos.
Despedi-me
enfim do Barão de Macaúbas, larguei a cartonagem, respirei.
Mas
a satisfação foi rápida: meteram-me noutra escola ruim e adquiri
uma seleta clássica.
Graciliano
Ramos, in Infância
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