sábado, 25 de abril de 2020

Tudo começa por uma recepção

Aquilo que é meu, eu sempre consigo de outras mãos.”
Antonio Porchia

No momento em que esboço este capítulo, alguns rostos ressurgem. Muitos são jovens — mulheres, em grande parte, mas também meninos. São bastante sorridentes, embora tenham vivido episódios difíceis em decorrência da violência ou da ditadura que seus países conheceram. Basta ouvi-los um pouco para que contem espontaneamente histórias. E contam bem. Quando penso neles, vejo-os sempre em movimento. Alguns seguem viagem mesmo com jumentos carregados de livros, tal como Luis Soriano, com Alfa e Beto, no norte da Colômbia. Ou levam livros ilustrados em barcos e navegam até as ilhas ao sul do Chile, enquanto outros atravessam o Paraná ou a Amazônia, como os jovens do grupo Vaga Lume. “Os livros adoram a errância”, diz a iraniana Noush-Afarin Ansari, e os “que ficam na biblioteca são livros tristes”.
Ainda que não sejam responsáveis por bibliotecas ambulantes, as pessoas em que penso parecem estar sempre entre duas viagens: acabam de percorrer a Patagônia, as Minas Gerais ou as Chiapas, de carro ou ônibus, onde leem durante horas, como Javier mergulhado no Quixote e morrendo de rir sozinho, rodeado de passageiros intrigados.
São os mediadores de livros: bibliotecários, fomentadores de leitura, professores que propõem experiências um pouco diferentes, poetas, ilustradores, psicanalistas. Eles também vão a pé, como as jovens em torno da biblioteca El Tunal, que sobem nos bairros mais estigmatizados de Bogotá, carregando nas costas muitas histórias que serão lidas para as crianças e para os adolescentes. E estes, com o passar do tempo, as seguem até o prédio de arquitetura futurista onde agora trabalham. Um pouco mais longe, nos jardins públicos da cidade andina, jovens montam grandes estandes onde livros (ilustrados ou não) são dispostos. Crianças se aproximam, ou seus pais; observam o que é proposto; e também aí os intercessores leem.
Um mundo que caminha e narra. Na África e na Ásia existem mediadores semelhantes a eles. Na Europa também, claro. Eles têm o desejo de transmitir, de ensinar, de dividir suas questões e percorrem também dezenas, centenas de quilômetros, para pensar suas experiências junto com os seus pares, ou com escritores, com pesquisadores.
Muitos são artistas das relações e da palavra, que exercem sua arte com talento e generosidade, aproveitando-se de sua experiência profissional, de sua intuição, de sua imaginação. Outros são menos seguros ou mais rígidos e pedem receitas que ninguém será capaz de lhes dar. A maioria, como eu disse, situa-se muito ao largo da caridade e das boas obras: estão convencidos de que todos têm o direito de se apropriar da cultura escrita e de que uma tal privação leva a uma marginalização ainda maior. Sem ingenuidade, sentem que o que fazem, pelo contrário, é em grande medida uma história de amor: com aqueles que os acompanham e com os objetos do seu trabalho. Mas, como escreve Thomas Pavel, “a inteligência do coração não exclui a do intelecto, ela a convoca”. Ela pressupõe conhecimentos, noções literárias, observação atenta, um questionamento sobre si mesmo, uma reconsideração. Tanto mais porque atravessam períodos desestimulantes, nos quais chegam a perder até o sentido do que fazem e de seu engajamento, e o futuro do seu trabalho é incerto, ameaçado por uma mudança política, a perda de uma subvenção, o capricho de uma autoridade tutelar. Dada a realidade social e política difícil enfrentam.
Michèle Petit, in A arte de ler: ou como resistir à adversidade

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