“Aquilo
que é meu, eu sempre consigo de outras mãos.”
Antonio
Porchia
No
momento em que esboço este capítulo, alguns rostos ressurgem.
Muitos são jovens — mulheres, em grande parte, mas também
meninos. São bastante sorridentes, embora tenham vivido episódios
difíceis em decorrência da violência ou da ditadura que seus
países conheceram. Basta ouvi-los um pouco para que contem
espontaneamente histórias. E contam bem. Quando penso neles, vejo-os
sempre em movimento. Alguns seguem viagem mesmo com jumentos
carregados de livros, tal como Luis Soriano, com Alfa e Beto,
no norte da Colômbia. Ou levam livros ilustrados em barcos e navegam
até as ilhas ao sul do Chile, enquanto outros atravessam o Paraná
ou a Amazônia, como os jovens do grupo Vaga Lume. “Os livros
adoram a errância”, diz a iraniana Noush-Afarin Ansari, e os “que
ficam na biblioteca são livros tristes”.
Ainda
que não sejam responsáveis por bibliotecas ambulantes, as pessoas
em que penso parecem estar sempre entre duas viagens: acabam de
percorrer a Patagônia, as Minas Gerais ou as Chiapas, de carro ou
ônibus, onde leem durante horas, como Javier mergulhado no Quixote
e morrendo de rir sozinho, rodeado de passageiros intrigados.
São
os mediadores de livros: bibliotecários, fomentadores de leitura,
professores que propõem experiências um pouco diferentes, poetas,
ilustradores, psicanalistas. Eles também vão a pé, como as jovens
em torno da biblioteca El Tunal, que sobem nos bairros mais
estigmatizados de Bogotá, carregando nas costas muitas histórias
que serão lidas para as crianças e para os adolescentes. E estes,
com o passar do tempo, as seguem até o prédio de arquitetura
futurista onde agora trabalham. Um pouco mais longe, nos jardins
públicos da cidade andina, jovens montam grandes estandes onde
livros (ilustrados ou não) são dispostos. Crianças se aproximam,
ou seus pais; observam o que é proposto; e também aí os
intercessores leem.
Um
mundo que caminha e narra. Na África e na Ásia existem mediadores
semelhantes a eles. Na Europa também, claro. Eles têm o desejo de
transmitir, de ensinar, de dividir suas questões e percorrem também
dezenas, centenas de quilômetros, para pensar suas experiências
junto com os seus pares, ou com escritores, com pesquisadores.
Muitos
são artistas das relações e da palavra, que exercem sua arte com
talento e generosidade, aproveitando-se de sua experiência
profissional, de sua intuição, de sua imaginação. Outros são
menos seguros ou mais rígidos e pedem receitas que ninguém será
capaz de lhes dar. A maioria, como eu disse, situa-se muito ao largo
da caridade e das boas obras: estão convencidos de que todos têm o
direito de se apropriar da cultura escrita e de que uma tal privação
leva a uma marginalização ainda maior. Sem ingenuidade, sentem que
o que fazem, pelo contrário, é em grande medida uma história de
amor: com aqueles que os acompanham e com os objetos do seu trabalho.
Mas, como escreve Thomas Pavel, “a inteligência do coração não
exclui a do intelecto, ela a convoca”. Ela pressupõe
conhecimentos, noções literárias, observação atenta, um
questionamento sobre si mesmo, uma reconsideração. Tanto mais
porque atravessam períodos desestimulantes, nos quais chegam a
perder até o sentido do que fazem e de seu engajamento, e o futuro
do seu trabalho é incerto, ameaçado por uma mudança política, a
perda de uma subvenção, o capricho de uma autoridade tutelar. Dada
a realidade social e política difícil enfrentam.
Michèle
Petit, in
A
arte de ler: ou como resistir à adversidade
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