Quero
dizer, antes de tudo, do prazer que é estar aqui partilhando um
momento que tem como tecto duplo a noite e a Biologia. A noite sugere
o lugar encantado dos contadores de histórias. Uma biologia noturna
sugere um saber mais feminino, sob uma luz lunar em contraste com uma
certa arrogância de um outro conhecimento que se apresenta como
fonte solar.
Os
encontros designados Biologia na noite sugerem a possibilidade
de recriar uma fogueira imaginária em redor da qual podemos fazer
aquilo que creio ser tão necessário nos nossos dias. E que é
reencantar o mundo. Uma constrangedora aridez foi-se instalando como
nossa condição comum. A culpa não é evidentemente nossa. Mas nós
herdamos uma ideia de ciência que vive de costas para a necessidade
de trazer leveza e construir beleza. Alguma coisa que se pretenda
científica deve-se apresentar de trajes cinzentos, solenes. Para
merecer credenciais científicas as nossas ações precisam de ter
uma seriedade quase ascética. As cerimônias de graduação das
universidades em Portugal e Moçambique parecem rituais medievais,
com professores e estudantes envergando assustadoras túnicas escuras
que quase sugerem um culto satânico.
A
cidade de Aveiro só pode suscitar um sentimento oposto a estes
cultos sombrios de glorificação do saber. A luminosidade da cidade
é tão intensa que cria a ilusão de nos dissolvermos no espaço. E
lembrei-me de uma pequena lição que aprendi este ano, numa pequena
aldeia de Moçambique. Quando fui recebido pelos chefes tradicionais
eles quiseram saber de mim, da minha viagem. “Cheguei há três
dias”, comecei por dizer. E logo o régulo me corrigiu: “Não,
você só chegou agora, agora que estamos abrindo o coração do
lugar”. De outro modo, o que esse homem me dizia era que os lugares
não são coisas. São entidades vivas, possuem um coração que está
nas mãos daqueles que falam com as vozes do chão. Por isso eu
agradeço às pessoas que me estão abrindo o coração de Aveiro.
Sem eles eu não teria ainda chegado a este lugar.
Quando
me convidaram para participar neste ciclo de conferências confesso
que resisti. E fiz-lhes recordar os meus argumentos que eu já havia
invocado quando me pediram para falar na sessão de abertura do
Primeiro Encontro de Biólogos da CPLP, em setembro de 2004. É que
realmente não se pode confiar em mim, não pertenço a esse
respeitável círculo de colegas que fazem do pensamento científico
a sua profissão de fé, a sua crença única e exclusiva. Sou um
biólogo mas não moro, a tempo inteiro, na casa da ciência.
Já
nessa altura, perante essa outra conferência, eu me desculpei
dizendo: mais do que uma disciplina, a Biologia é para mim uma
indisciplina científica, um modo de estar mais próximo das
perguntas do que das respostas. Acredito na ciência, sim, mas apenas
como um dos caminhos do saber. Existem outros caminhos e quero estar
disponível para os percorrer. Uma parte da nossa formação
científica confunde-se com a atividade de um polícia de fronteiras,
revistando os pensamentos de contrabando que viajam na mala de outras
sabedorias. Apenas passam os pensamentos de carimbada cientificidade.
A
Biologia é um modo maravilhoso de emigrarmos de nós, de
transitarmos para lógicas de outros seres, de nos descentrarmos.
Aprendemos que não somos o centro da Vida nem o topo da evolução.
Aprendemos que as bactérias são seres sofisticados que fizeram mais
do que nós, espécie humana, pela existência da Terra como um
organismo vivo. O dr. Amadeu Soares sabe lidar com seres complexos
como as cianobactérias e, por isso, está, automaticamente,
habilitado a lidar com escritores em apuros. O meu amigo Soares
encontrou a resposta rápida para as minhas sucessivas hesitações:
“Pois vens falar ao mesmo tempo como escritor e biólogo”. Uma
sugestão simbiótica: como se pode resistir? Não gosto propriamente
de falar. Prefiro conversar.
Combinamos,
assim, que eu não traria comigo uma comunicação acadêmica.
“Trazes uma notas soltas e eu até invento um título para a
conferência” (este título Mitos e pecados de uma indisciplina
científica é da autoria do Amadeu). Com este acordo viajei
tranquilo pensando que as tais notas soltas surgiriam de forma
simples. Não surgiram. Houve um momento em que me arrependi de não
trazer uma comunicação mais formal. Rabisquei este breve texto e se
pudesse rebatizar o nosso encontro eu dar-lhe-ia este outro título:
Rios, cobras e camisas de dormir.
Dentro
de duas semanas lançarei em Portugal o meu último romance que se
chama O outro pé da sereia. Nesse texto, refiro de passagem
um povo do norte de Moçambique, os chamados achikundas, descendentes
de escravos, que se especializaram na travessia do rio Zambeze. Esta
gente dizia de si mesma ser “o povo do rio” e, ao fazer as suas
juras e rezas, invocava o nome do rio. Ainda hoje há quem, naquela
região, empenha a palavra dizendo: “juro pelo rio”. E dizem “o
Rio” sem que nunca lhes tivesse ocorrido dar um outro nome, pois
era como se nenhum outro rio houvesse no mundo.
Faço
um parêntese, tendo chegado à primeira baliza do título da minha
intervenção. Acreditamos que todos sabemos o que é um rio. No
entanto, essa definição é quase sempre redutora e falsa. Nenhum
rio é apenas um curso de água, esgotável sob o prisma da
hidrologia. Um rio é uma entidade vasta e múltipla. Compreende as
margens, as áreas de inundação, as zonas de captação, a flora, a
fauna, as relações ecológicas, os espíritos, as lendas, as
histórias. É uma rede de entidades vivas, um assunto mais da
Biologia que da Engenharia. Habituados a olhar as coisas como
engenhos, esquecemos que estamos perante um organismo que nasce,
respira e vive de trocas com a vizinhança.
Regresso
aos nossos amigos Achikundas. Durante o final do século XIX, o vale
do Zambeze foi alvo de frequentes ataques, e os sucessivos ocupantes
queriam fazer uso das habilidades de navegadores dos tais achikundas.
A dado passo, este povo começou a sentir-se inseguro e, sempre que
sabia da chegada de estranhos, a primeira coisa que fazia era amarrar
a canoa nas pedras do fundo das águas. Depois, quando eram
abordados, os achikundas apresentavam-se do seguinte modo: “Nós
não somos quem vocês esperam”. Eles eram sempre outros, os do
outro lado, da outra margem.
Pois
eu também, de vez em quando, afundo a minha canoa e me apresento
como o da outra margem. Quando estou em ambientes demasiado
literários, puxo do meu chapéu de biólogo. Quando estou entre
biólogos que se levam muito a sério, rapidamente puxo do chapéu de
escritor.
Não
é este o caso, estou num ambiente familiar e posso assumir a minha
condição não dividida mas repartida, a exemplo do russo Anton
Tchekhov, que dizia que entre medicina e literatura não havia um
caso de traição, pois a esposa e a amante eram uma mesma e única
pessoa.
Uma
das perguntas que mais frequentemente me fazem é a seguinte: “Como
concilia literatura e Biologia?”. A pergunta é curiosa, mas mais
curioso ainda é saber por que razão me fazem tanto essa pergunta. O
que leva as pessoas a pensar que existe um problema de
compatibilidade entre os dois fazeres?
Vou
contar-vos um episódio estranho mas verídico que sucedeu
recentemente em Moçambique, no distrito do Dondo, perto da minha
cidade natal, a Beira. Este caso mereceu durante semanas o maior
destaque na imprensa nacional. Sucedeu o seguinte: uma cobra, uma
mamba preta, fez moradia no edifício da Administração. Um número
não definido de mortes (que nunca se confirmaram) foi reportado. As
vítimas não tinham sido mordidas. Morriam, diz-se, porque pisavam a
sombra da serpente. Não deixa de ser interessante que alguém possa
pisar a sombra de uma serpente. Mas o mais misterioso era que, todas
as noites, a cobra entoava o hino nacional. Pelas janelas sem vidros
do edifício se espalhavam os afinados acordes. Os residentes
escutavam em perfilado respeito, e alguns faziam mesmo coro com a
patriótica serpente. O pânico espalhou-se na vila e as autoridades
convocaram os cientistas. Poucas vezes chamam os cientistas e aquela
repentina subida de divisão era um momento vivido com exaltação.
Foram desenhadas tácticas e estratégias: derrubou-se um morro de
muchém e as árvores em redor da Administração, que se pensava
serem o habitat do perigoso réptil. Durante dias, o jornal
governamental deu conta das atribulações da caça à serpente. O
sector privado foi chamado a financiar as operações de captura. Um
colega meu esteve dois dias no chamado “centro dos acontecimentos”,
para fazer sessões de esclarecimento sobre a necessidade de proteger
répteis em perigo de extinção.
Como
sempre, acreditamos que a tecnologia nos salva de todos os embaraços
e esse colega herpetólogo muniu-se de todos os apetrechos: câmara
de vídeo, projetor de diapositivos, indicador de raios laser.
(Existe, meus amigos, uma espécie de loja do Coronel Tapioca montada
para os cientistas que trabalham nos trópicos.) Quando terminou a
campanha de sensibilização, as autoridades locais agradeceram do
seguinte modo: “Gostamos muito do que nos mostrou; só é pena que
não tenha falado desta cobra”. “Como não falei?”, reagiu ele.
“Então não falei da mamba negra?” E os camponeses responderam:
“Falou sim, mas não é esta”. Desesperado, o biólogo só queria
uma derradeira confirmação: “Digam-me só uma coisa: isso que tem
aparecido aqui é realmente uma cobra?”. E a resposta final foi:
“Quase é, doutor. Quase é”.
Shakespeare
proclamou a existencial dúvida do “ser ou não ser” porque,
certamente, não estava avisado desta categoria do “quase ser”.
Nem eu sabia dessa possibilidade. Pois se soubesse, quando me
perguntassem se me considero mais um escritor ou um biólogo eu
responderia: “Quase considero, quase considero”.
A
verdade é que para mim não existe conflito. Pelo contrário, hoje
não sei como poderia ser escritor caso eu não fosse biólogo. E
vice-versa. Nenhuma das actividades me basta. O que me alimenta é o
diálogo, a intersecção entre os dois saberes. O que me dá prazer
é percorrer como um equilibrista essa linha de fronteira entre
pensamento e sensibilidade, entre inteligência e intuição, entre
poesia e saber científico.
Um
poeta chamado Zhu Xi escreveu o seguinte há cerca de 1200 anos: “No
topo das altas montanhas vejo conchas que me dizem que antigos
lugares de baixa altitude se elevaram para os céus e moram agora nos
mais elevados picos. Estas conchas dizem-me também que materiais
vivos de animais se converteram nas mais duras e inertes rochas”.
Estas
palavras foram durante séculos lidas como se fossem versos. Mas Zhu
Xi não era apenas um poeta: era um cientista, aquilo que, até há
pouco, se chamava um naturalista. As suas palavras referiam
claramente o processo de fossilização. O chinês falava de animais
que se haviam extinguido num mundo em que montanhas e mares
continuamente se deslocavam. A sua dedução parece simples. Mas a
ciência nem sempre se fez por métodos muito científicos. E foram
precisos mais de mil anos depois da sua morte para que a ciência
aceitasse a existência e o significado dos fósseis como testemunho
da dinâmica da Vida. Preconceitos ideológicos e religiosos impediam
de olhar a Terra e a Vida como estando em constante mudança. A ideia
de que espécies tivessem falhado e extinções maciças tivessem
ocorrido chocava com a noção de uma obra perfeita e acabada do
Criador.
Nos
finais de 1700, barcos que regressavam da América do Norte trouxeram
ossadas de um animal gigantesco. Sugeriu-se que esses restos
provinham de um elefante. Mas era pouco provável que esses mamíferos
tropicais ocorressem naquelas regiões geladas. Havia os ossos, não
havia o animal. Os nossos colegas da época designaram o estranho
bicho de INCÓGNITO. Por um tempo, mantiveram a esperança de que
algum explorador avistasse o monstro. Mas isso nunca aconteceu. Até
que Georges Cuvier — um anatomista e paleontologista francês —
sugeriu que o tal INCÓGNITO seria um animal extinto que ele designou
por mastodonte. Teriam, afinal, existido cataclismos que conduziram
ao desaparecimento de espécies vivas.
É
importante dizer que as conclusões de Cuvier só foram aceites
porque ele as apresentou como consistentes com as teses bíblicas das
pragas e das cheias. Durante séculos, o desejo do conhecimento tinha
sido cerceado pela ameaça da punição. Sucessivos mitos como o de
Prometeu, o de Pandora, o de Adão e Eva (castigados por comer o
fruto da árvore do conhecimento), atuaram como travões para a
curiosidade que está na base do conhecimento. Quando Cuvier apontou
as ossadas fósseis como prova de um animal extinto, esse clima de
censura já estava mais aliviado. Eram tolerados os conhecimentos que
nos aproximassem de Deus. Mas não eram apenas os pecados de
pensamento que se procurava prevenir. A vida privada estava sujeita,
mesmo no Renascimento, a pesadas interdições. Durante todo esse
tempo, os casais estavam proibidos de dormirem nus. As camisas de
dormir que ainda hoje conhecemos não são apenas uma peça de
vestuário. São também uma herança das cruzadas puritanas contra
os pecados do corpo e da paixão.
As
ciências sempre foram policiadas e manipuladas pelos poderes. Hoje
não vivemos uma situação de excepção. Esses poderes não têm um
rosto definido. Um deles chama-se mercado. Cabe-nos a nós
interrogarmo-nos se não nos estamos convertendo em funcionários
desse gigantesco laboratório sem nome.
É
verdade que já não nos impõem restrições de uma forma clara. Mas
existem preconceitos que subjazem ao nosso trabalho científico. A
ciência e a literatura podem pôr em causa as ideias arrumadas que
apresentam a Terra, a Vida e o Ambiente como entidades feitas,
exteriores ao Homem. Tanto a Terra como a Vida são produções
contínuas, são redes de interações feitas de inacabados
processos, de irresolúveis desequilíbrios.
O
Meio Ambiente foi hoje convertido numa bandeira, numa entidade
mistificada. Eu sou biólogo e preocupo-me evidentemente com as
causas ambientalistas. Não é isso que está em jogo. O que está em
causa é podermos questionar a noção de Ambiente. Não podemos
deixar que as noções sejam construídas como conceitos de moda, uma
espécie de fait-divers do jornalismo de ocasião.
Na
realidade, não existe ambiente como uma entidade única, fixa e
exterior à sociedade humana. O ambiente é múltiplo e com
significados contextuais diversos — os incêndios florestais em
Portugal têm implicações bem diversas dos fogos da savana. O
ambiente (que deve ser dito no plural) tem dinâmicas de mudança
cuja complexidade nós nem sempre entendemos. Este céu límpido e
azul de que hoje desfrutamos já foi naturalmente espesso e castanho.
Este azul celestial que associamos à pureza foi resultado de uma das
maiores catástrofes ecológicas que atingiu a Terra. O oxigênio que
hoje nos sugere um ar puro e respirável surgiu como um dos mais
mortíferos poluentes da história do nosso Planeta. Se houvesse, na
altura, um Ministério do Ambiente e normas ambientais da União
Europeia correríamos o risco de viver sob um céu de metano, terroso
e triste. O chamado Meio Ambiente é uma co-produção de cuja equipa
produtora fazemos parte.
Não
é tanto de “defesa” que o ambiente necessita. Precisa, primeiro,
de um melhor entendimento. Depois, precisa de uma produção menos
centrada nos interesses de lucro de uma pequena elite que fala em
nome do mundo.
Um
dos princípios que nos guiam estabelece que as ciências se ocupam
de verdades e não de beleza. Essa parede divisória foi muitas vezes
violada. Quem ergueu esta parede divisória não saberá da aptidão
para ser feliz. Em rigor, não existem “coisas” belas. Para ser
bela, a “coisa” deixa de ser coisa. Passa a ser entidade viva,
passa a ser parte da Vida. Porque ela só é bela enquanto produtora
de sentimento de beleza. Só é bela enquanto nos fala e nos conduz
secretamente para reavivar uma relação de parentesco com o
Universo.
Watson
e Crick, quando imaginavam a arquitetura do DNA, foram guiados também
por princípios estéticos. Como se uma voz lhes murmurasse: “A
dupla hélice está certa porque é bonita”. Sei que estou
simplificando. Mas as moléculas sabem mais de poesia do que nós
podemos imaginar. E as conchas fósseis que há 1200 anos comoveram o
chinês Zhu Xi eram ciência escrita em versos. O poeta apenas
reconheceu o casamento entre beleza e verdade.
Afinal,
a ciência e a arte são como margens de um mesmo rio. A Biologia não
é diurna nem noturna se não se assumir como autora de uma espantosa
narração que é o relato da Evolução da Vida. Podem ter a certeza
de que a História da Evolução é tão extraordinária que só pode
ser escrita juntando o rigor da ciência ao fulgor da arte.
A
fechar, quero dizer o seguinte: poesia e ciência são entidades que
não se podem confundir, mas podem e devem deitar-se na mesma cama. E
quando o fizerem espero bem que dispam as velhas camisas de dormir.
Mia
Couto, in Conferência no Ciclo Biologia na noite,
Universidade de Aveiro, Aveiro, 2006.
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