sábado, 18 de abril de 2020

Otacília

O que lembro, tenho. Venho vindo, de velhas alegrias. A Fazenda Santa Catarina era perto do céu ― um céu azul no repintado, com as nuvens que não se removem. A gente estava em maio. Quero bem a esses maios, o sol bom, o frio de saúde, as flores no campo, os finos ventos maiozinhos. A frente da fazenda, num tombado, respeitava para o espigão, para o céu. Entre os currais e o céu, tinha só um gramado limpo e uma restinga de cerrado, de donde descem borboletas brancas, que passam entre as réguas da cerca. Ali, a gente não vê o virar das horas. E a fôgo-apagou sempre cantava, sempre. Para mim, até hoje, o canto da fôgo-apagou tem um cheiro de folhas de assa-peixe. Depois de tantas guerras, eu achava um valor viável em tudo que era cordato e correntio, na tiração de leite, num papudo que ia carregando lata de lavagem para o chiqueiro, nas galinhas-dangola ciscando às carreiras no fedegoso-bravo, com florezinhas amarelas, e no vassoural comido baixo, pelo gado e pelos porcos. Figuro que naquela ocasião tive curta saudade do São Gregório, com uma vontade vã de ser dono de meu chão, meu por posse e continuados trabalhos, trabalho de segurar a alma e endurecer as mãos. Estas coisas eu pensava repassadas. E estava lá, outra vez, nos gerais. O ar dos gerais, o senhor sabe. Tomamos farto leite. Trouxeram café para nós, em xicrinhas. Ao que ficamos por ali, à-tôa, depois de uma conversa com o velhozinho, avô. Otacília eu revi já foi na sobremanhã. Ela apareceu.
Ela era risonha e descritiva de bonita; mas, hoje-em-dia, o senhor bem entenderá, nem ficava bem conveniente, me dava pêjo de muito dizer. Minha Otacília, fina de recanto, em seu realce de mocidade, mimo de alecrim, a firme presença. Fui eu que primeiro encaminhei a ela os olhos. Molhei mão em mel, regrei minha língua. Aí, falei dos pássaros, que tratavam de seu voar antes do mormaço. Aquela visão dos pássaros, aquele assunto de Deus, Diadorim era quem tinha me ensinado. Mas Diadorim agora estava afastado, amuado, longe num emperrêio. Principal que eu via eram as pombas. No bebedouro, pombas bando. E as verdadeiras, altas, cruzando do mato. ― Ah, já passaram mais de vinte verdadeiras... ― palavras de Otacília, que contava. Essa principiou a nossa conversa. Salvo uns risos e silêncios, a tão. Toda moça é mansa, é branca e delicada. Otacília era a mais.
Mas, na beira da alpendrada, tinha um canteirozinho de jardim, com escolha de poucas flores. Das que sobressaíam, era uma flôr branca ― que fosse caeté, pensei, e parecia um lírio ― alteada e muito perfumosa. E essa flôr é figurada, o senhor sabe? Morada em que tem moças, plantam dela em porta da casa-de-fazenda. De propósito plantam, para resposta e pergunta. Eu nem sabia. Indaguei o nome da flôr.
Casa-comigo... ― Otacília baixinho me atendeu. E, no dizer, tirou de mim os olhos; mas o tiritozinho de sua voz eu guardei e recebi, porque era de sentimento. Ou não era? Daquele curto lisim de dúvidas foi que minou meu maisquerer. E o nome da flor era o dito, tal, se chamava ― mas para os namorados respondido somente. Consoante, outras, as mulheres livres, dadas, respondem! ― Dorme-comigo... Assim era que devia de haver de ter de me dizer aquela linda moça Nhorinhá, filha de Ana Duzuza, nos Gerais confins; e que também gostou de mim e eu dela gostei. Ah, a flôr do amor tem muitos nomes. Nhorinhá prostituta, pimenta branca, boca cheirosa, o bafo de menino-pequeno. Confusa é a vida da gente; como esse rio meu Urucúia vai se levar no mar.
Porque, no meio do momento, me virei para onde lá estava Diadorim, e eu urgido quase aflito. Chamei Diadorim ― e era um chamado com remorso ― e ele veio, se chegou. Aí, por alguma coisa dizer, eu disse! que estávamos falando daquela flôr. Não estávamos? E Diadorim reparou e perguntou também que flôr era essa, qual sendo? ― perguntou inocente. ― Ela se chama é liroliro... ― Otacília respondeu. O que informou, altaneira disse, vi que ela não gostava de Diadorim. Digo ao senhor que alegria que me deu. Ela não gostava de Diadorim ― e ele tão bonito moço, tão esmerado e prezável. Aquilo, para mim, semelhava um milagre. Não gostava? Nos olhos dela o que vi foi asco, antipatias, quando em olhar eles dois não se encontraram. E Diadorim? Me fez medo. Ele estava com meia raiva. O que é dose de ódio ― que vai buscar outros ódios. Diadorim era mais do ódio do que do amor? Me lembro, lembro dele nessa hora, nesse dia, tão remarcado. Como foi que não tive um pressentimento? O senhor mesmo, o senhor pode imaginar de ver um corpo claro e virgem de moça, morto à mão, esfaqueado, tinto todo de seu sangue, e os lábios da boca descorados no branquiço, os olhos dum terminado estilo, meio abertos meio fechados? E essa moça de quem o senhor gostou, que era um destino e uma surda esperança em sua vida?! Ah, Diadorim... E tantos anos já se passaram.
Guimarães Rosa, in Grande sertão: veredas

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