O
que lembro, tenho. Venho vindo, de velhas alegrias. A Fazenda Santa
Catarina era perto do céu ― um céu azul no repintado, com as
nuvens que não se removem. A gente estava em maio. Quero bem a esses
maios, o sol bom, o frio de saúde, as flores no campo, os finos
ventos maiozinhos. A frente da fazenda, num tombado, respeitava para
o espigão, para o céu. Entre os currais e o céu, tinha só um
gramado limpo e uma restinga de cerrado, de donde descem borboletas
brancas, que passam entre as réguas da cerca. Ali, a gente não vê
o virar das horas. E a fôgo-apagou sempre cantava, sempre. Para mim,
até hoje, o canto da fôgo-apagou tem um cheiro de folhas de
assa-peixe. Depois de tantas guerras, eu achava um valor viável em
tudo que era cordato e correntio, na tiração de leite, num papudo
que ia carregando lata de lavagem para o chiqueiro, nas
galinhas-dangola ciscando às carreiras no fedegoso-bravo, com
florezinhas amarelas, e no vassoural comido baixo, pelo gado e pelos
porcos. Figuro que naquela ocasião tive curta saudade do São
Gregório, com uma vontade vã de ser dono de meu chão, meu por
posse e continuados trabalhos, trabalho de segurar a alma e endurecer
as mãos. Estas coisas eu pensava repassadas. E estava lá, outra
vez, nos gerais. O ar dos gerais, o senhor sabe. Tomamos farto leite.
Trouxeram café para nós, em xicrinhas. Ao que ficamos por ali,
à-tôa, depois de uma conversa com o velhozinho, avô. Otacília eu
revi já foi na sobremanhã. Ela apareceu.
Ela
era risonha e descritiva de bonita; mas, hoje-em-dia, o senhor bem
entenderá, nem ficava bem conveniente, me dava pêjo de muito dizer.
Minha Otacília, fina de recanto, em seu realce de mocidade, mimo de
alecrim, a firme presença. Fui eu que primeiro encaminhei a ela os
olhos. Molhei mão em mel, regrei minha língua. Aí, falei dos
pássaros, que tratavam de seu voar antes do mormaço. Aquela visão
dos pássaros, aquele assunto de Deus, Diadorim era quem tinha me
ensinado. Mas Diadorim agora estava afastado, amuado, longe num
emperrêio. Principal que eu via eram as pombas. No bebedouro, pombas
bando. E as verdadeiras, altas, cruzando do mato. ― Ah, já
passaram mais de vinte verdadeiras... ― palavras de Otacília, que
contava. Essa principiou a nossa conversa. Salvo uns risos e
silêncios, a tão. Toda moça é mansa, é branca e delicada.
Otacília era a mais.
Mas,
na beira da alpendrada, tinha um canteirozinho de jardim, com escolha
de poucas flores. Das que sobressaíam, era uma flôr branca ― que
fosse caeté, pensei, e parecia um lírio ― alteada e muito
perfumosa. E essa flôr é figurada, o senhor sabe? Morada em que tem
moças, plantam dela em porta da casa-de-fazenda. De propósito
plantam, para resposta e pergunta. Eu nem sabia. Indaguei o nome da
flôr.
―
Casa-comigo...
― Otacília baixinho me atendeu. E, no dizer, tirou de mim os
olhos; mas o tiritozinho de sua voz eu guardei e recebi, porque era
de sentimento. Ou não era? Daquele curto lisim de dúvidas foi que
minou meu maisquerer. E o nome da flor era o dito, tal, se chamava ―
mas para os namorados respondido somente. Consoante, outras, as
mulheres livres, dadas, respondem! ―
Dorme-comigo...
Assim era que devia de haver de ter de me dizer aquela linda moça
Nhorinhá, filha de Ana Duzuza, nos Gerais confins; e que também
gostou de mim e eu dela gostei. Ah, a flôr do amor tem muitos nomes.
Nhorinhá prostituta, pimenta branca, boca cheirosa, o bafo de
menino-pequeno. Confusa é a vida da gente; como esse rio meu Urucúia
vai se levar no mar.
Porque,
no meio do momento, me virei para onde lá estava Diadorim, e eu
urgido quase aflito. Chamei Diadorim ― e era um chamado com remorso
― e ele veio, se chegou. Aí, por alguma coisa dizer, eu disse! que
estávamos falando daquela flôr. Não estávamos? E Diadorim reparou
e perguntou também que flôr era essa, qual sendo? ― perguntou
inocente. ― Ela se chama é liroliro...
― Otacília respondeu. O que informou, altaneira disse, vi que ela
não gostava de Diadorim. Digo ao senhor que alegria que me deu. Ela
não gostava de Diadorim ― e ele tão bonito moço, tão esmerado e
prezável. Aquilo, para mim, semelhava um milagre. Não gostava? Nos
olhos dela o que vi foi asco, antipatias, quando em olhar eles dois
não se encontraram. E Diadorim? Me fez medo. Ele estava com meia
raiva. O que é dose de ódio ― que vai buscar outros ódios.
Diadorim era mais do ódio do que do amor? Me lembro, lembro dele
nessa hora, nesse dia, tão remarcado. Como foi que não tive um
pressentimento? O senhor mesmo, o senhor pode imaginar de ver um
corpo claro e virgem de moça, morto à mão, esfaqueado, tinto todo
de seu sangue, e os lábios da boca descorados no branquiço, os
olhos dum terminado estilo, meio abertos meio fechados? E essa moça
de quem o senhor gostou, que era um destino e uma surda esperança em
sua vida?! Ah, Diadorim... E tantos anos já se passaram.
Guimarães Rosa,
in Grande
sertão: veredas
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