sexta-feira, 24 de abril de 2020

O planeta das peúgas rotas (excerto)

Uma das edições do jornal Notícias desta semana abria com uma notícia sobre o monte Tumbine, na Zambézia. Em 1998, cerca de cem pessoas morreram naquele lugar por causa de um aluimento de terras. As terras desabaram porque se retirou a cobertura florestal das encostas e as chuvas arrastaram os solos. Foram feitos relatórios com recomendações muito claras. Os relatórios desapareceram. A floresta voltou a ser cortada e as pessoas voltaram a povoar as regiões perigosas. O que resta em Tumbine são as vozes que têm uma outra explicação. Essas vozes insistem na seguinte versão: há um dragão que mora no monte de Tumbine, em Milange, e que desperta de cinco em cinco anos para ir deitar os ovos no alto mar. Para não ser visto, o dragão cria o caos e a escuridão enquanto atravessa os céus desapercebido. Esse animal mitológico chama-se Napolo, no Norte, e aqui, no Sul, toma o nome de Wamulambo.
Existe uma poderosa força poética nesta interpretação dos fenômenos geológicos. Mas a poesia e as cerimônias dos espíritos não bastam para assegurar que uma nova tragédia não se venha a repetir.
A minha pergunta é: Estamos nós aqui, nesta assembleia, tão longe assim destas crenças? O facto de vivermos em cidades, no meio de computadores e da internet de banda larga, será que tudo isso nos isenta de termos um pé na explicação mágica do mundo?
Basta olhar para os nossos jornais para termos a resposta. Junto da tabela da taxa de câmbios encontra-se o anúncio do chamado médico tradicional, essa generosa personagem que se propõe resolver todos os problemas básicos da nossa vida. Se percorrerem a lista dos serviços oferecidos por esses médicos tradicionais verificarão que figuram os seguintes produtos (vou citar os feitos propagados, saltando os milagres conseguidos na saúde):
faz subir na vida;
ajuda a promoção no emprego;
faz passar no exame;
ajuda a recuperar o esposo ou a esposa.
Parodiando a linguagem moderna dos relatórios eu diria que este é o job description do nosso glorioso médico tradicional. Numa palavra, o atirador de sortes faz surgir por magia tudo aquilo que só pode resultar do esforço, do trabalho e do suor.
De novo, interroguemos as palavras que nós próprios criamos e usamos. Na realidade, “médicos tradicionais” é um nome duplamente falso. Primeiro, eles não são médicos. A medicina é um domínio muito particular do conhecimento científico. Não há médicos tradicionais como não há engenheiros tradicionais nem pilotos de avião tradicionais.
Não se trata aqui de negar as sabedorias locais, nem de desvalorizar a importância das lógicas rurais. Mas os anunciantes não são médicos e também não são tão “tradicionais” assim. As práticas de feitiçaria são profundamente modernas, estão nascendo e sendo refeitas na atualidade dos nossos centros urbanos. Um bom exemplo dessa habilidade de incorporação do moderno é o de um anúncio que eu recortei da nossa imprensa em que um destes curandeiros anunciava textualmente: “Curamos asma, diabetes e borbulhas; tratamos doenças sexuais e dores de cabeça; afastamos má sorte e… tiramos fotocópias”.
Durante muito tempo, era interdito aos verdadeiros médicos fazerem publicidade nos órgãos de informação. E, no entanto, esses outros chamados de tradicionais conservam permissão de se anunciarem. Porquê esta complacência? Porque, no fundo, nós estamos disponíveis para acreditar. Nós pertencemos a esse universo, mesmo que, em simultâneo, já pertençamos a outros imaginários. Não são apenas os pobres, os menos educados que partilham estes dois mundos. São quadros de formação superior, são dirigentes políticos que procuram a bênção para serem promovidos e para terem sucesso nas suas carreiras.
Não creio que seja eficaz simplesmente condenar essas práticas. Mas temos que as assumir com mais verdade. Regressando ao título desta palestra, temos de aceitar que, por debaixo da capa do sapato, há uma espécie de ventilação especial nos nossos pés. De pouco vale dizermos que se trata de coisas tipicamente africanas. Meus amigos, essas coisas existem em todo o mundo. Não fazem parte da chamada natureza exótica dos africanos. Fazem parte da natureza da pessoa humana.
O que podemos dizer no nosso caso é que essas crenças possuem ainda um peso determinante. E esse peso entra em contradição com algumas exigências do mundo de hoje. A crença na chamada “boa sorte” faz com que nos demitamos da nossa responsabilidade individual e colectiva.
Este é um problema central para o nosso desenvolvimento. Porque esta visão do mundo nos leva a explicar os nossos insucessos pela existência de uma suposta mão escondida. Se falhamos é porque alguém tramou um mau-olhado. Não nos assumimos como cidadãos fazedores e responsáveis. Não produzimos o nosso destino: mendigamos as forças poderosas que estão para além de nós. Ficamos à espera da bênção e do bafejo da boa fortuna.
Tudo isto tem a ver com algo mais abrangente e mais sofisticado que é a teoria do complot. Satisfazemo-nos em explicar tudo por razões de alguma conspiração urdida nas nossas costas. É o receio da feitiçaria conduzido para a análise política. O caso recente das madeiras é um bom exemplo da aplicação da teoria da conspiração. Um grupo de compatriotas nossos denunciou aquilo que considerava ser a destruição eminente do nosso patrimônio florestal. O alerta era grave, podemos estar a perder não apenas parte do nosso meio ambiente, mas estarmos desperdiçando uma das principais armas para combater a pobreza. A reação contra este protesto não se fez esperar: artigos diversos apontaram numa mesma direção. A preocupação com as florestas provinha de um grupo bem-intencionado, mas manipulado por forças ocidentais que se mobilizam contra a presença chinesa em África. Eis a mão obscura que tudo comanda.
Tal como sucede na lógica da feitiçaria, a identificação do malvado resolve, à partida, o problema. Levantadas todas as poeiras, esgrimidas todas as suspeições, o assunto das florestas deixará de ser visível. A pergunta é simples: Não seria mais fácil criar uma comissão científica que inventariasse o verdadeiro estado atual dos recursos florestais e avaliasse as reais tendências de abate da nossa madeira? O assunto, meus amigos, é demasiado sério para fingirmos que estamos fazendo alguma coisa apenas porque levantamos a suspeita de uma conspiração internacional. A verdade é que se perdermos a floresta perdemos uma das maiores reservas de riqueza, o maior banco vivo do nosso território nacional.
Mia Couto, in Intervenção no Encontro sobre Pessoa Humana, abertura de Conferência no Millenium BIM, Maputo, 2008.

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