Uma
das edições do jornal Notícias desta semana abria com uma
notícia sobre o monte Tumbine, na Zambézia. Em 1998, cerca de cem
pessoas morreram naquele lugar por causa de um aluimento de terras.
As terras desabaram porque se retirou a cobertura florestal das
encostas e as chuvas arrastaram os solos. Foram feitos relatórios
com recomendações muito claras. Os relatórios desapareceram. A
floresta voltou a ser cortada e as pessoas voltaram a povoar as
regiões perigosas. O que resta em Tumbine são as vozes que têm uma
outra explicação. Essas vozes insistem na seguinte versão: há um
dragão que mora no monte de Tumbine, em Milange, e que desperta de
cinco em cinco anos para ir deitar os ovos no alto mar. Para não ser
visto, o dragão cria o caos e a escuridão enquanto atravessa os
céus desapercebido. Esse animal mitológico chama-se Napolo, no
Norte, e aqui, no Sul, toma o nome de Wamulambo.
Existe
uma poderosa força poética nesta interpretação dos fenômenos
geológicos. Mas a poesia e as cerimônias dos espíritos não bastam
para assegurar que uma nova tragédia não se venha a repetir.
A
minha pergunta é: Estamos nós aqui, nesta assembleia, tão longe
assim destas crenças? O facto de vivermos em cidades, no meio de
computadores e da internet de banda larga, será que tudo isso nos
isenta de termos um pé na explicação mágica do mundo?
Basta
olhar para os nossos jornais para termos a resposta. Junto da tabela
da taxa de câmbios encontra-se o anúncio do chamado médico
tradicional, essa generosa personagem que se propõe resolver todos
os problemas básicos da nossa vida. Se percorrerem a lista dos
serviços oferecidos por esses médicos tradicionais verificarão que
figuram os seguintes produtos (vou citar os feitos propagados,
saltando os milagres conseguidos na saúde):
— faz
subir na vida;
— ajuda
a promoção no emprego;
— faz
passar no exame;
— ajuda
a recuperar o esposo ou a esposa.
Parodiando
a linguagem moderna dos relatórios eu diria que este é o job
description do nosso glorioso médico tradicional. Numa palavra,
o atirador de sortes faz surgir por magia tudo aquilo que só pode
resultar do esforço, do trabalho e do suor.
De
novo, interroguemos as palavras que nós próprios criamos e usamos.
Na realidade, “médicos tradicionais” é um nome duplamente
falso. Primeiro, eles não são médicos. A medicina é um domínio
muito particular do conhecimento científico. Não há médicos
tradicionais como não há engenheiros tradicionais nem pilotos de
avião tradicionais.
Não
se trata aqui de negar as sabedorias locais, nem de desvalorizar a
importância das lógicas rurais. Mas os anunciantes não são
médicos e também não são tão “tradicionais” assim. As
práticas de feitiçaria são profundamente modernas, estão nascendo
e sendo refeitas na atualidade dos nossos centros urbanos. Um bom
exemplo dessa habilidade de incorporação do moderno é o de um
anúncio que eu recortei da nossa imprensa em que um destes
curandeiros anunciava textualmente: “Curamos asma, diabetes e
borbulhas; tratamos doenças sexuais e dores de cabeça; afastamos má
sorte e… tiramos fotocópias”.
Durante
muito tempo, era interdito aos verdadeiros médicos fazerem
publicidade nos órgãos de informação. E, no entanto, esses outros
chamados de tradicionais conservam permissão de se anunciarem.
Porquê esta complacência? Porque, no fundo, nós estamos
disponíveis para acreditar. Nós pertencemos a esse universo, mesmo
que, em simultâneo, já pertençamos a outros imaginários. Não são
apenas os pobres, os menos educados que partilham estes dois mundos.
São quadros de formação superior, são dirigentes políticos que
procuram a bênção para serem promovidos e para terem sucesso nas
suas carreiras.
Não
creio que seja eficaz simplesmente condenar essas práticas. Mas
temos que as assumir com mais verdade. Regressando ao título desta
palestra, temos de aceitar que, por debaixo da capa do sapato, há
uma espécie de ventilação especial nos nossos pés. De pouco vale
dizermos que se trata de coisas tipicamente africanas. Meus amigos,
essas coisas existem em todo o mundo. Não fazem parte da chamada
natureza exótica dos africanos. Fazem parte da natureza da pessoa
humana.
O
que podemos dizer no nosso caso é que essas crenças possuem ainda
um peso determinante. E esse peso entra em contradição com algumas
exigências do mundo de hoje. A crença na chamada “boa sorte”
faz com que nos demitamos da nossa responsabilidade individual e
colectiva.
Este
é um problema central para o nosso desenvolvimento. Porque esta
visão do mundo nos leva a explicar os nossos insucessos pela
existência de uma suposta mão escondida. Se falhamos é porque
alguém tramou um mau-olhado. Não nos assumimos como cidadãos
fazedores e responsáveis. Não produzimos o nosso destino:
mendigamos as forças poderosas que estão para além de nós.
Ficamos à espera da bênção e do bafejo da boa fortuna.
Tudo
isto tem a ver com algo mais abrangente e mais sofisticado que é a
teoria do complot. Satisfazemo-nos em explicar tudo por razões
de alguma conspiração urdida nas nossas costas. É o receio da
feitiçaria conduzido para a análise política. O caso recente das
madeiras é um bom exemplo da aplicação da teoria da conspiração.
Um grupo de compatriotas nossos denunciou aquilo que considerava ser
a destruição eminente do nosso patrimônio florestal. O alerta era
grave, podemos estar a perder não apenas parte do nosso meio
ambiente, mas estarmos desperdiçando uma das principais armas para
combater a pobreza. A reação contra este protesto não se fez
esperar: artigos diversos apontaram numa mesma direção. A
preocupação com as florestas provinha de um grupo bem-intencionado,
mas manipulado por forças ocidentais que se mobilizam contra a
presença chinesa em África. Eis a mão obscura que tudo comanda.
Tal
como sucede na lógica da feitiçaria, a identificação do malvado
resolve, à partida, o problema. Levantadas todas as poeiras,
esgrimidas todas as suspeições, o assunto das florestas deixará de
ser visível. A pergunta é simples: Não seria mais fácil criar uma
comissão científica que inventariasse o verdadeiro estado atual dos
recursos florestais e avaliasse as reais tendências de abate da
nossa madeira? O assunto, meus amigos, é demasiado sério para
fingirmos que estamos fazendo alguma coisa apenas porque levantamos a
suspeita de uma conspiração internacional. A verdade é que se
perdermos a floresta perdemos uma das maiores reservas de riqueza, o
maior banco vivo do nosso território nacional.
Mia
Couto, in Intervenção no Encontro sobre Pessoa Humana,
abertura de Conferência no Millenium BIM, Maputo, 2008.
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