quinta-feira, 9 de abril de 2020

O pária

Lip-lip continuou a anuviar de tal modo os seus dias que Caninos Brancos tornou-se mais cruel e mais feroz do que seria seu direito natural. A selvageria fazia parte da sua constituição, mas a selvageria assim desenvolvida superou a sua constituição. Ele adquiriu uma reputação de maldade entre os próprios animais-homens. Sempre que havia encrenca e tumulto no acampamento, luta e disputa ou a gritaria de uma índia a respeito de um pedaço de carne roubado, era certo encontrar Caninos Brancos no meio e normalmente no fundo da confusão. Eles não se davam ao trabalho de cuidar das causas da sua conduta. Viam apenas os efeitos, e os efeitos eram ruins. Ele era um animal furtivo e ladrão, um criador de encrenca, um fomentador de discórdias; e as índias iradas lhe diziam na cara – enquanto ele as olhava alerta e prestes a evitar qualquer projétil rapidamente atirado–, que ele era um lobo sem valor e fadado a ter um fim ruim.
Ele se descobriu um pária no meio do acampamento populoso. Todos os cachorros jovens seguiam a liderança de Lip-lip. Havia uma diferença entre Caninos Brancos e eles. Talvez percebessem a sua origem selvagem e sentis sem instintivamente por ele a inimizade que o cachorro doméstico sente pelo lobo. Mas, seja como for, eles se juntavam a Lip-lip na perseguição. E, uma vez declarada a guerra contra ele, encontravam boas razões para continuar essa guerra. Todos sem exceção, de tempos em tempos, sentiam a ação dos seus dentes; e, para o seu crédito, ele dava mais mordidas do que recebia. Muitos deles Caninos Brancos podia derrotar numa luta a dois, mas a luta a dois lhe era negada. O início de uma luta dessas era um sinal para que todos os cachorros jovens do acampamento viessem correndo e caíssem de rijo sobre ele.
Dessa perseguição do bando, ele aprendeu duas coisas importantes: como cuidar de si mesmo numa luta contra um bando hostil; e como infligir a um cachorro sozinho o maior dano no mais breve espaço de tempo. Manter-se sobre as patas no meio da massa hostil significava vida, e isso ele aprendeu muito bem. Tornou-se felino na sua habilidade de manter-se sobre as patas. Até os cachorros crescidos podiam empurrá-lo para trás ou para o lado com o impacto de seus corpos pesados; e para trás ou para o lado ele ia, no ar ou deslizando no chão, mas sempre com as patas embaixo dele, cravadas na terra mãe.
Quando os cachorros brigam, há geralmente preliminares antes do combate real – rosnados, pelo eriçado, passos com as patas rígidas. Mas Caninos Brancos aprendeu a omitir essas preliminares. A demora significava receber o ataque de todos os cachorros jovens. Ele devia fazer o seu trabalho rapidamente e cair fora. Assim aprendeu a não avisar sobre as suas intenções. Atacava, mordia e retalhava imediatamente, sem avisos, antes que seu inimigo pudesse se preparar para enfrentá-lo. Assim aprendeu a infligir danos rápidos e severos. Também aprendeu o valor da surpresa. Um cachorro, pego desprevenido, o ombro aberto ou a orelha cortada em tiras antes que soubesse o que estava acontecendo, era um cachorro meio vencido.
Além disso, era extraordinariamente fácil derrubar um cachorro pego de surpresa, e um cachorro derrubado assim invariavelmente expunha por um momento o lado inferior macio de seu pescoço – o ponto vulnerável em que atacar a vida. Caninos Brancos conhecia esse ponto. Era um conhecimento que recebera como herança direta das inumeráveis gerações caçadoras de lobos. Assim o método de Caninos Brancos, quando assumia a ofensiva, era o seguinte: primeiro, encontrar um cachorro jovem sozinho; segundo, surpreendê-lo e derrubá-lo; e terceiro, enfiar os dentes na garganta macia.
Sendo apenas parcialmente crescido, as suas mandíbulas ainda não eram bastante grandes, nem bastante fortes para tornar mortal o seu ataque na garganta, mas muito cachorro jovem andava pelo acampamento com a garganta dilacerada, um sinal da intenção de Caninos Brancos. E certo dia, pegando um de seus inimigos sozinho na orla da mata, ele conseguiu, derrubando-o e atacando a garganta várias vezes, cortar a grande veia e deixar a vida se esvair. Naquela noite, houve um grande tumulto. Ele fora observado, a notícia fora levada ao dono do cachorro morto, as índias se lembravam de todos os casos de carne roubada, e Castor Cinza foi cercado por muitas vozes zangadas. Mas ele resolutamente se postou na porta da sua tenda, dentro da qual tinha posto o culpado, e recusou-se a permitir a vingança que o pessoal da sua tribo pedia com clamor.
Caninos Brancos se tornou odiado pelos homens e pelos cachorros. Durante esse período de seu desenvolvimento, jamais conheceu um momento de segurança. Os dentes de todo cachorro estavam contra ele, as mãos de todo homem. Era saudado com rosnados pelos da sua espécie, com pragas e pedras pelos deuses. Vivia tenso. Estava sempre estimulado, alerta a qualquer ataque, precavido contra investidas, atento a projéteis repentinos e inesperados, preparado para agir precipitada e friamente, para saltar dentro de uma briga com um lampejo das presas, ou para saltar para fora de uma briga com um rosnado ameaçador.
Quanto ao rosnado, ele podia rosnar mais terrivelmente do que qualquer cachorro, jovem ou velho, no acampamento. A intenção do rosnado é avisar ou assustar, sendo necessário discernimento para saber quando deve ser usado. Caninos Brancos sabia como rosnar e quando rosnar. No seu rosnado, ele incorporava tudo o que era perverso, maldoso e horrível. Com o focinho enrugado por contínuos espasmos, o pelo se eriçando em ondas recorrentes, a língua saindo de repente como uma serpente vermelha e voltando a entrar como um açoite, as orelhas achatadas, os olhos brilhando de ódio, os lábios arreganhados e as presas expostas e gotejantes, ele podia forçar uma pausa da parte de quase todos os atacantes. Uma pausa temporária, quando pego desprevenido, lhe dava o momento vital para pensar e determinar a sua ação. Muitas vezes, porém, uma pausa assim conquistada alongava-se até evoluir para uma completa suspensão do ataque. E, diante de mais de um dos cachorros crescidos, o rosnado de Caninos Brancos lhe permitiu uma retirada honrosa.
Um pária expulso do bando dos cachorros meio crescidos, os seus métodos sanguinários e a sua extraordinária eficiência faziam o bando pagar pela perseguição feita a ele. Sem permissão para correr junto com o bando, a curiosa situação lograva que nenhum membro do grupo podia correr fora do bando. Caninos Brancos não o permitia. Por causa das suas táticas de guerrilha e emboscada, os cachorros jovens tinham medo de correr sozinhos. À exceção de Lip-lip, eram compelidos a se amontoar em busca de proteção contra o terrível inimigo que tinham feito. Um filhote sozinho pela margem do rio significava um filhote morto ou um filhote que despertava o acampamento com sua dor e terror agudos, enquanto fugia do filhote de lobo que o tinha emboscado.
Mas as represálias de Caninos Brancos não cessaram, mesmo quando os cachorros jovens aprenderam categoricamente que deviam permanecer juntos. Ele os atacava quando os pegava sozinhos, e eles atacavam quando estavam em bando. A visão de Caninos Brancos era o suficiente para fazer com que saíssem correndo atrás dele, e nessas horas a sua rapidez geralmente o levava para um porto seguro. Mas ai do cachorro que ultrapassasse seus companheiros nessa perseguição! Caninos Brancos aprendera a virar-se de repente contra o perseguidor à frente do bando e a retalhá-lo completamente, antes que o bando se aproximasse. Isso ocorria com grande frequência, pois, uma vez em plena perseguição, os cachorros ficavam propensos a perder a cabeça na excitação da caçada, enquanto Caninos Brancos jamais perdia a sua. Lançando olhares furtivos para trás enquanto corria, ele estava sempre pronto a girar nas patas e cair sobre o perseguidor exageradamente zeloso que ultrapassava seus companheiros.
Os cachorros jovens não podem deixar de brincar, por isso faziam das dificuldades da situação o seu brinquedo nessa guerra simulada. Foi assim que a caçada de Caninos Brancos tornou-se o seu jogo principal – um jogo mortal, além do mais, e em todos os momentos um jogo sério. Ele, por outro lado, sendo o mais veloz, não tinha medo de se aventurar por toda parte. Durante o período em que esperava em vão pelo retorno da mãe, conduziu o bando por muitas perseguições selvagens através das matas adjacentes. Mas o bando invariavelmente o perdia. O barulho e alarido que faziam avisavam Caninos Brancos da sua presença, enquanto ele corria sozinho, com patas de veludo, silenciosamente, uma sombra em movimento entre as árvores à maneira de seu pai e sua mãe. Além disso, ele tinha conexões mais diretas com a Floresta e conhecia melhor os seus segredos e estratagemas. Um de seus truques favoritos era perder o rastro na água corrente e depois deitar-se tranquilamente num matagal próximo, enquanto os gritos desconcertados dos cachorros se elevavam ao seu redor.
Odiado pela sua espécie e pelos homens, indomável, perpetuamente guerreado e travando uma guerra perpétua, o seu desenvolvimento foi rápido e unilateral. Não havia terreno em que a bondade e o afeto pudessem florescer. Dessas coisas, ele não tinha o menor vislumbre. O código que aprendeu era obedecer o forte e oprimir o fraco. Castor Cinza era um deus e um forte. Por isso, Caninos Brancos o obedecia. Mas um cachorro mais jovem ou menor era fraco, algo a ser destruído. Seu desenvolvimento foi na direção do poder. Para enfrentar o perigo constante de ferimentos e até de destruição, as suas faculdades predatórias e protetoras foram desmedidamente desenvolvidas. Ele tornou-se mais rápido nos movimentos do que os outros cachorros, mais veloz, mais astuto, mais mortal, mais ágil, mais magro com músculos e nervos de aço, mais resistente, mais cruel, mais feroz e mais inteligente. Teve de se tornar tudo isso, senão não teria se mantido firme, nem sobrevivido ao ambiente hostil em que se encontrava.
Jack London, in Caninos Brancos

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