Nazim Híkmet
Ehrenburg
já é um homem maduro, mas continua sendo um grande agitador do que
há de mais verdadeiro e vivo da cultura soviética. Muitas vezes
visitei meu já bom amigo em seu apartamento da rua Gorki, constelado
de quadros e litografias de Picasso ou em sua dacha perto de
Moscou. Ehrenburg tem paixão pelas plantas e está quase sempre em
seu jardim, arrancando ervas daninhas e conclusões de tudo quanto
cresce ao seu redor.
Mais
tarde fiz grande amizade com o poeta Kirsanov, que traduziu
admiravel-mente para o russo a minha poesia. Kirsanov é, como todos
os soviéticos, um patriota ardente. Sua poesia tem lampejos
fulminantes e uma sonoridade que lhe dá a bela língua russa lançada
ao ar por sua pena em explosões e torrentes.
Continuamente
eu visitava, em Moscou ou no campo, outro grande poeta, o turco Nazim
Híkmet, legendário escritor preso durante 18 anos pelos estranhos
governos de seu país.
Nazim,
acusado de querer sublevar a marinha turca, foi condenado a todas as
penas do inferno. O julgamento teve lugar num navio de guerra.
Contaram-me como o fizeram andar até à exaustão pela ponte do
navio, metendo-o depois no lugar das latrinas, onde os excrementos se
acumulavam até meio metro acima do chão. Este meu irmão poeta
sentiu-se desfalecer. A pestilência o fazia cambalear. Pensou então:
os verdugos estão me observando de algum ponto, querem me ver cair,
querem ver a minha desgraça. Com altivez suas forças ressurgiram.
Começou a cantar, primeiro em voz baixa, depois em voz mais alta,
com toda sua força no final. Cantou todas as canções, todos os
versos de amor de que se lembrava, seus próprios poemas, as romanças
dos camponeses, os hinos de luta de seu povo. Cantou tudo o que
sabia. Assim triunfou sobre a imundície e sobre o martírio. Quando
me contava estas coisas, eu lhe disse:
– Meu
irmão, cantaste por todos nós. Já não precisamos ter dúvida nem
pensar no que faremos. Já sabemos todos quando devemos começar a
cantar.
Contava-me
também os sofrimentos de seu povo. Os camponeses são brutalmente
perseguidos pelos senhores feudais da Turquia. Nazim via-os chegar à
prisão, via-os trocar por tabaco o pedaço de pão que lhes davam
como ração única. Começavam a olhar o pasto do pátio
distraidamente. Depois com atenção, quase com gula. Um belo dia
levavam uns tufos de relva à boca. Mais tarde arrancavam-na em
feixes que devoravam precipitadamente. Por fim comiam o pasto de
quatro, como os cavalos.
Antidogmático
fervoroso, Nazim viveu longos anos exilado na URSS. Seu amor por essa
terra que o acolheu encontra-se nessa frase sua: “Creio no futuro
da poesia. Creio porque vivo no país onde a poesia constitui a
exigência mais indispensável da alma”. Nessas palavras vibram
muitos segredos que de longe não se consegue ver. O homem soviético,
com as portas abertas a todas as bibliotecas, a todas as aulas, a
todos os teatros, está no centro da preocupação dos escritores.
Não se pode ignorar isso ao discutir sobre o destino da ação
literária. Por um lado, as novas formas, a renovação necessária
de tudo quanto existe, deve transpor e romper os moldes literários.
Por outro lado, como não acompanhar os passos de uma profunda e
ampla revolução? Como afastar dos temas centrais as vitórias,
conflitos, problemas humanos, fecundidade, movimento, germinação de
um imenso povo que se confronta com uma mudança total de regime
político, econômico e social? Como não solidarizar-se com esse
povo atacado por ferozes invasores, cercado por implacáveis
colonialistas, obscurantistas de todos os climas e aspectos? Poderiam
a literatura e as artes tomar uma atitude de aérea independência
junto de acontecimentos tão essenciais?
Pablo
Neruda, in Confesso que vivi
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