terça-feira, 14 de abril de 2020

Nazim Híkmet

Nazim Híkmet

Ehrenburg já é um homem maduro, mas continua sendo um grande agitador do que há de mais verdadeiro e vivo da cultura soviética. Muitas vezes visitei meu já bom amigo em seu apartamento da rua Gorki, constelado de quadros e litografias de Picasso ou em sua dacha perto de Moscou. Ehrenburg tem paixão pelas plantas e está quase sempre em seu jardim, arrancando ervas daninhas e conclusões de tudo quanto cresce ao seu redor.
Mais tarde fiz grande amizade com o poeta Kirsanov, que traduziu admiravel-mente para o russo a minha poesia. Kirsanov é, como todos os soviéticos, um patriota ardente. Sua poesia tem lampejos fulminantes e uma sonoridade que lhe dá a bela língua russa lançada ao ar por sua pena em explosões e torrentes.
Continuamente eu visitava, em Moscou ou no campo, outro grande poeta, o turco Nazim Híkmet, legendário escritor preso durante 18 anos pelos estranhos governos de seu país.
Nazim, acusado de querer sublevar a marinha turca, foi condenado a todas as penas do inferno. O julgamento teve lugar num navio de guerra. Contaram-me como o fizeram andar até à exaustão pela ponte do navio, metendo-o depois no lugar das latrinas, onde os excrementos se acumulavam até meio metro acima do chão. Este meu irmão poeta sentiu-se desfalecer. A pestilência o fazia cambalear. Pensou então: os verdugos estão me observando de algum ponto, querem me ver cair, querem ver a minha desgraça. Com altivez suas forças ressurgiram. Começou a cantar, primeiro em voz baixa, depois em voz mais alta, com toda sua força no final. Cantou todas as canções, todos os versos de amor de que se lembrava, seus próprios poemas, as romanças dos camponeses, os hinos de luta de seu povo. Cantou tudo o que sabia. Assim triunfou sobre a imundície e sobre o martírio. Quando me contava estas coisas, eu lhe disse:
Meu irmão, cantaste por todos nós. Já não precisamos ter dúvida nem pensar no que faremos. Já sabemos todos quando devemos começar a cantar.
Contava-me também os sofrimentos de seu povo. Os camponeses são brutalmente perseguidos pelos senhores feudais da Turquia. Nazim via-os chegar à prisão, via-os trocar por tabaco o pedaço de pão que lhes davam como ração única. Começavam a olhar o pasto do pátio distraidamente. Depois com atenção, quase com gula. Um belo dia levavam uns tufos de relva à boca. Mais tarde arrancavam-na em feixes que devoravam precipitadamente. Por fim comiam o pasto de quatro, como os cavalos.
Antidogmático fervoroso, Nazim viveu longos anos exilado na URSS. Seu amor por essa terra que o acolheu encontra-se nessa frase sua: “Creio no futuro da poesia. Creio porque vivo no país onde a poesia constitui a exigência mais indispensável da alma”. Nessas palavras vibram muitos segredos que de longe não se consegue ver. O homem soviético, com as portas abertas a todas as bibliotecas, a todas as aulas, a todos os teatros, está no centro da preocupação dos escritores. Não se pode ignorar isso ao discutir sobre o destino da ação literária. Por um lado, as novas formas, a renovação necessária de tudo quanto existe, deve transpor e romper os moldes literários. Por outro lado, como não acompanhar os passos de uma profunda e ampla revolução? Como afastar dos temas centrais as vitórias, conflitos, problemas humanos, fecundidade, movimento, germinação de um imenso povo que se confronta com uma mudança total de regime político, econômico e social? Como não solidarizar-se com esse povo atacado por ferozes invasores, cercado por implacáveis colonialistas, obscurantistas de todos os climas e aspectos? Poderiam a literatura e as artes tomar uma atitude de aérea independência junto de acontecimentos tão essenciais?
Pablo Neruda, in Confesso que vivi

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