Por
uns momentos lá no quarto nós parecíamos dois estranhos que seriam
observados por alguém, e este alguém éramos sempre eu e ela,
cabendo aos dois ficar de olho no que eu ia fazendo, e não no que
ela ia fazendo, por isso eu me sentei na beira da cama e fui tirando
calmamente meus sapatos e minhas meias, tomando os pés descalços
nas mãos e sentindo-os gostosamente úmidos como se tivessem sido
arrancados à terra naquele instante, e me pus em seguida, com
propósito certo, a andar pelo assoalho, simulando motivos pequenos
pra minha andança no quarto, deixando que a barra da calça tocasse
ligeiramente o chão ao mesmo tempo que cobria parcialmente meus pés
com algum mistério, sabendo que eles, descalços e muito brancos,
incorporavam poderosamente minha nudez antecipada, e logo eu ouvia
suas inspirações fundas ali junto da cadeira, onde ela quem sabe já
se abandonava ao desespero, atrapalhando-se ao tirar a roupa,
embaraçando inclusive os dedos na alça que corria pelo braço, e
eu, sempre fingindo, sabia que tudo aquilo era verdadeiro,
conhecendo, como conhecia, esse seu pesadelo obsessivo por uns pés,
e muito especialmente pelos meus, firmes no porte e bem-feitos de
escultura, um tanto nodosos nos dedos, além de marcados nervosamente
no peito por veias e tendões, sem que perdessem contudo o jeito
tímido de raiz tenra, e eu ia e vinha com meus passos calculados,
dilatando sempre a espera com mínimos pretextos, mas assim que ela
deixou o quarto e foi por instantes até o banheiro, tirei rápido a
calça e a camisa, e me atirando na cama fiquei aguardando por ela já
teso e pronto, fruindo em silêncio o algodão do lençol que me
cobria, e logo eu fechava os olhos pensando nas artimanhas que
empregaria (das tantas que eu sabia), e com isso fui repassando
sozinho na cabeça as coisas todas que fazíamos, de como ela vibrava
com os trejeitos iniciais da minha boca e o brilho que eu forjava nos
meus olhos, onde eu fazia aflorar o que existia em mim de mais torpe
e sórdido, sabendo que ela arrebatada pelo meu avesso haveria sempre
de gritar “é este canalha que eu amo”, e repassei na cabeça
esse outro lance trivial do nosso jogo, preâmbulo contudo de
insuspeitadas tramas posteriores, e tão necessário como fazer
avançar de começo um simples peão sobre o tabuleiro, e em que eu,
fechando minha mão na sua, arrumava-lhe os dedos, imprimindo-lhes
coragem, conduzindo-os sob meu comando aos cabelos do meu peito, até
que eles, a exemplo dos meus próprios dedos debaixo do lençol,
desenvolvessem por si sós uma primorosa atividade clandestina, ou
então, em etapa adiantada, depois de criteriosamente vasculhados
nossos pelos, caroços e tantos cheiros, quando os dois de joelhos
medíamos o caminho mais prolongado de um único beijo, nossas mãos
em palma se colando, os braços se abrindo num exercício quase
cristão, nossos dentes mordendo ao outro a boca como se mordessem a
carne macia do coração, e de olhos fechados, largando a imaginação
nas curvas desses rodeios, me vi também às voltas com certas
práticas, fosse quando eu em transe, e já soberbamente soerguido da
sela do seu ventre, atendia precoce a um dos seus (dos meus)
caprichos mais insólitos, atirando em jatos súbitos e violentos o
visgo leitoso que lhe aderia à pele do rosto e à pele dos seios, ou
fosse aquela outra, menos impulsiva e de lenta maturação, o fruto
se desenvolvendo num crescendo mudo e paciente de rijas contrações,
e em que eu dentro dela, sem nos mexermos, chegávamos com gritos
exasperados aos estertores da mais alta exaltação, e pensei ainda
no salto perigoso do reverso, quando ela de bruços me oferecia
generosamente um outro pasto, e em que meus braços e minhas mãos,
simétricos e quase mecânicos, lhe agarravam por baixo os ombros,
comprimindo e ajustando, área por área, a massa untada dos nossos
corpos, e ia pensando sempre nas minhas mãos de dorso largo, que
eram muito usadas em toda essa geometria passional, tão bem
elaborada por mim e que a levava invariavelmente a dizer em franca
perdição “magnífico, magnífico, você é especial”, e eu daí
entrei pensando nos momentos de renovação, nos cigarros que
fumávamos seguindo a cada bolha envenenada de silêncio, quando não
fosse ao correr das conversas com café da térmica (escapávamos da
cama nus e íamos profanar a mesa da cozinha), e em que ela tentava
me descrever sua confusa experiência do gozo, falando sempre da
minha segurança e ousadia na condução do ritual, mal escondendo o
espanto pelo fato de eu arrolar insistentemente o nome de Deus às
minhas obscenidades, me falando sobretudo do quanto eu lhe ensinei,
especialmente da consciência no ato através dos nossos olhos que
muitas vezes seguiam, pedra por pedra, os trechos todos de uma
estrada convulsionada, e era então que eu falava da inteligência
dela, que sempre exaltei como a sua melhor qualidade na cama, uma
inteligência ágil e atuante (ainda que só debaixo dos meus
estímulos), excepcionalmente aberta a todas as incursões, e eu de
enfiada acabava falando também de mim, fascinando-a com as
contradições intencionais (algumas nem tanto) do meu caráter,
ensinando entre outras balelas que eu canalha era puro e casto, e eu
ali, de olhos sempre fechados, ainda pensava em muitas outras coisas
enquanto ela não vinha, já que a imaginação é muito rápida ou o
tempo dela diferente, pois trabalha e embaralha simultaneamente
coisas díspares e insuspeitadas, quando pressenti seus passos de
volta no corredor, e foi então só o tempo de eu abrir os olhos pra
inspecionar a postura correta dos meus pés despontando fora do
lençol, dando conta como sempre de que os cabelos castanhos, que
brotavam no peito e nos dedos mais longos, lhes davam graça e
gravidade ao mesmo tempo, mas tratei logo de fechar de novo os olhos,
sentindo que ela ia entrar no quarto, e já adivinhando seu vulto
ardente ali por perto, e sabendo como começariam as coisas, quero
dizer: que ela de mansinho, muito de mansinho, se achegaria primeiro
dos meus pés, que ela um dia comparou com dois lírios brancos.
Raduan
Nassar, in Um copo de cólera
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