Queria
mandar mil recados a pessoas mil desta cidade e de outras, do Brasil
e do mundo. Mil é exagero: em todo caso, trinta, quarenta, que em
linguagem corrente se traduzem por “milhões”. Queria aproveitar
este dezembro para dizer-lhes que os meses passaram tão ligeiros,
mas tão, que não houve tempo para revelar-lhes como eu lhes quero
bem; e meu silêncio sabe como isso é verdade. Não disse a palavra
que esperava ser dita; não botei cartas no correio, e não foi
esquecimento, pois nem sequer as escrevi. Entretanto, se o carteiro
não me trazia notícias ou simples lembranças em cartão-postal,
bem que me queixava, resmungando que me haviam esquecido, pior ainda,
substituído. Não fui a casamentos para os quais me convidaram,
deixei de comparecer a enterros, mas os casais e os mortos hão de me
perdoar, os primeiros porque estão se amando ainda, os segundos
porque tudo perdoam. E todo ano é assim; e assim será enquanto esta
anímula sem tempo de ser alma transitar pelas ruas da vida. O tempo
é nossa desculpa, nossa ferida, nosso modo de não existir, pensando
que estamos vivendo. Os mortos que não me tiveram a seu lado quando
se aprofundaram na experiência vital da morte, esses venceram o
tempo, estão completos, organizados, sobre eles o tempo não tem
ação, carece ele próprio de tempo para arranhá-los. Também não
fui aos coquetéis, às inaugurações, aos jubileus, às missas em
ação de graça, às colações de grau, às premières, aos
embarques, aos desembarques, aos grandes jogos do campeonato, a um
simples encontro marcado com o rapaz de Curitiba em dia não chuvoso
e de condução fácil. Não li a maior parte dos livros que me
ofereceram nem os poucos que comprei, juntando-os à montanha de
volumes dos anos passados, na esperança de ler tudo no dia em que
completar cem anos e me aposentar de terrenos vis cuidados; torci a
cara aos que me procuraram sobraçando suas produções inéditas e
pedindo conselho ou ditirambo; se algumas vezes cedi, nem sempre foi
de coração aberto, e não raro me surpreendi desejando cordialmente
que se acabasse a literatura, levando consigo a arte concreta e a
informal. Omissões e rabugices de cavalheiro in his fifties,
desculpem; mas gostaria que a vida nos desse tempo de vivê-la. Às
deficiências pessoais juntam-se os excessivos (em número e grau)
acontecimentos. Há acontecimentos demais para um só coração, um
só espírito, um só estômago, apenas dois braços e duas pernas.
Não estou me desculpando; registro.
Esta
mensagem tosca se dirige pois a todos quantos esperavam alguma coisa
do jornalista ou do homem em 1959 e não a obtiveram; a todos que
quiseram dar-lhe um pensamento, uma palavra, um sorriso, que ele não
soube recolher ou pressentir. É a crônica do não: “não” fiz
isso, “não” agradeci aquilo, “não” participei, “não”
ajudei. E vale também para o futuro, pois a sabedoria de Itabira do
Mato Dentro, em um provérbio inventado neste momento, ensina que
burro velhote não acerta o trote. Entro em férias; mas antes quero
desejar a leitores e amigos as alegrias e suavidades a que o tempo
convida, inclusive aquele “jantar de muita vaca e riso”, de que
falava frei Bartolomeu dos Mártires, com botelhas do fino, do
legítimo; e se isso não for possível, pelo menos bons sonhos.
Carlos
Drummond de Andrade, in A bolsa & a vida
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