segunda-feira, 13 de abril de 2020

Mensagem

Queria mandar mil recados a pessoas mil desta cidade e de outras, do Brasil e do mundo. Mil é exagero: em todo caso, trinta, quarenta, que em linguagem corrente se traduzem por “milhões”. Queria aproveitar este dezembro para dizer-lhes que os meses passaram tão ligeiros, mas tão, que não houve tempo para revelar-lhes como eu lhes quero bem; e meu silêncio sabe como isso é verdade. Não disse a palavra que esperava ser dita; não botei cartas no correio, e não foi esquecimento, pois nem sequer as escrevi. Entretanto, se o carteiro não me trazia notícias ou simples lembranças em cartão-postal, bem que me queixava, resmungando que me haviam esquecido, pior ainda, substituído. Não fui a casamentos para os quais me convidaram, deixei de comparecer a enterros, mas os casais e os mortos hão de me perdoar, os primeiros porque estão se amando ainda, os segundos porque tudo perdoam. E todo ano é assim; e assim será enquanto esta anímula sem tempo de ser alma transitar pelas ruas da vida. O tempo é nossa desculpa, nossa ferida, nosso modo de não existir, pensando que estamos vivendo. Os mortos que não me tiveram a seu lado quando se aprofundaram na experiência vital da morte, esses venceram o tempo, estão completos, organizados, sobre eles o tempo não tem ação, carece ele próprio de tempo para arranhá-los. Também não fui aos coquetéis, às inaugurações, aos jubileus, às missas em ação de graça, às colações de grau, às premières, aos embarques, aos desembarques, aos grandes jogos do campeonato, a um simples encontro marcado com o rapaz de Curitiba em dia não chuvoso e de condução fácil. Não li a maior parte dos livros que me ofereceram nem os poucos que comprei, juntando-os à montanha de volumes dos anos passados, na esperança de ler tudo no dia em que completar cem anos e me aposentar de terrenos vis cuidados; torci a cara aos que me procuraram sobraçando suas produções inéditas e pedindo conselho ou ditirambo; se algumas vezes cedi, nem sempre foi de coração aberto, e não raro me surpreendi desejando cordialmente que se acabasse a literatura, levando consigo a arte concreta e a informal. Omissões e rabugices de cavalheiro in his fifties, desculpem; mas gostaria que a vida nos desse tempo de vivê-la. Às deficiências pessoais juntam-se os excessivos (em número e grau) acontecimentos. Há acontecimentos demais para um só coração, um só espírito, um só estômago, apenas dois braços e duas pernas. Não estou me desculpando; registro.
Esta mensagem tosca se dirige pois a todos quantos esperavam alguma coisa do jornalista ou do homem em 1959 e não a obtiveram; a todos que quiseram dar-lhe um pensamento, uma palavra, um sorriso, que ele não soube recolher ou pressentir. É a crônica do não: “não” fiz isso, “não” agradeci aquilo, “não” participei, “não” ajudei. E vale também para o futuro, pois a sabedoria de Itabira do Mato Dentro, em um provérbio inventado neste momento, ensina que burro velhote não acerta o trote. Entro em férias; mas antes quero desejar a leitores e amigos as alegrias e suavidades a que o tempo convida, inclusive aquele “jantar de muita vaca e riso”, de que falava frei Bartolomeu dos Mártires, com botelhas do fino, do legítimo; e se isso não for possível, pelo menos bons sonhos.
Carlos Drummond de Andrade, in A bolsa & a vida

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