A
maior parte dos mal-entendidos que envolvem ciência e religião
resulta de definições equivocadas de religião. Muito
frequentemente as pessoas confundem religião com superstição,
espiritualidade, crença em forças sobrenaturais ou em deuses.
Religião não é nada disso. Religião não pode ser igualada a
superstição, porque as pessoas provavelmente não chamam suas
crenças mais acalentadas de “superstição”. Nós sempre
acreditamos “na verdade”, só os outros é que acreditam em
superstições.
Da
mesma forma, poucas pessoas depositam sua fé em forças
sobrenaturais. Para os que acreditam em demônios, espíritos e
fadas, esses seres não são “sobrenaturais”. São parte
integrante da natureza, assim como porcos-espinhos, escorpiões e
germes. Médicos modernos atribuem a culpa pelas doenças a germes
invisíveis e sacerdotes do vodu culpam espíritos invisíveis. Não
há nada de sobrenatural nisso: se você faz algum espírito ficar
com raiva, ele entra em seu corpo e lhe causa dor. O que seria mais
natural do que isso? Somente aqueles que não acreditam em espíritos
pensam que eles estão fora da ordem natural das coisas.
Equiparar
religião com fé em forças sobrenaturais implica ser capaz de
compreender todos os fenômenos naturais sem a religião, que seria
somente um suplemento opcional. Tendo compreendido bem toda a
natureza, você agora pode escolher se acrescenta ou não algum dogma
religioso “sobrenatural”. No entanto, a maioria das religiões
alega que não se pode compreender o mundo sem esses dogmas. Você
nunca compreenderá a verdadeira razão das doenças, da seca ou do
terremoto se não levar seus dogmas em consideração.
Definir
religião como “crença em deuses” também é problemático.
Tendemos a dizer que uma cristã devota é religiosa porque acredita
em Deus, enquanto um comunista ardente não é religioso porque o
comunismo não tem deuses. Entretanto, a religião é criada por
humanos, e não por deuses, e é definida por sua função social, e
não pela existência de deidades. Religião é qualquer coisa
que confira legitimidade sobre-humana a estruturas sociais humanas. A
religião legitima normas e valores humanos ao alegar que eles
refletem leis sobre-humanas.
A
religião afirma que nós humanos somos sujeitos a um sistema de leis
morais que não foi inventado por nós e que não podemos mudar. Um
judeu devoto diria que esse é o sistema de leis morais criado por
Deus e revelado na Bíblia. Um hindu diria que Brahma, Vishnu e Shiva
criaram as leis, reveladas a nós humanos nos Vedas. Outras
religiões, do budismo ao taoismo, comunismo, nazismo e liberalismo,
alegam que as chamadas leis sobre-humanas são leis naturais, e não
criação deste ou daquele deus. Evidentemente, cada uma acredita em
um diferente conjunto de leis naturais, descobertas e reveladas por
diferentes videntes e profetas, de Buda e Lao-tsé a Marx e Hitler.
Um
menino judeu vai até seu pai e pergunta: “Pai, por que não
comemos carne de porco?”. O pai alisa pensativamente sua longa
barba cacheada e responde: “Ben, Iankele, é assim que o mundo
funciona. Você ainda é jovem e não vai compreender, mas, se
comêssemos carne de porco, Deus nos puniria, e isso seria ruim para
nós. Essa ideia não é minha. Nem mesmo do rabi. Se o rabi tivesse
criado o mundo, talvez a carne de porco fosse kosher. Mas o
rabi não criou o mundo. Foi Deus. E Deus disse, não sei por quê,
que não devemos comer carne de porco. E, assim, não comemos.
Entendeu?”.
Em
1943, um menino alemão vai até seu pai, um oficial superior da SS,
e pergunta: “Pai, por que estamos matando os judeus?”. O pai,
calçando suas reluzentes botas de couro, explica: “Bem, Fritz, é
assim que o mundo funciona. Você ainda é jovem e não vai
compreender, mas, se deixássemos os judeus viverem, eles causariam a
degeneração e a extinção do gênero humano. Essa ideia não é
minha, nem do Führer. Se Hitler tivesse criado o mundo, talvez as
leis da seleção natural não se aplicassem a ele, e judeus e
arianos poderiam viver em perfeita harmonia. Mas Hitler não criou o
mundo. Ele somente tratou de decifrar as leis da natureza e nos
instruiu a viver de acordo com elas. Se desobedecermos a essas leis,
isso acabaria muito mal para nós. Ist das klar?”.
Em
2016, um menino britânico vai até seu pai, membro liberal do
Parlamento, e pergunta: “Pai, por que temos de nos preocupar com os
direitos humanos dos muçulmanos no Oriente Médio?”. O pai pousa
sua xícara de chá, pensa por um momento e diz: “Bem, Duncan, é
assim que o mundo funciona. Você ainda é jovem e não vai
compreender, mas todos os humanos, até os muçulmanos do Oriente
Médio, têm a mesma natureza e usufruem dos mesmos direitos
naturais. Essa ideia não é minha, nem é uma decisão do
Parlamento. Se o Parlamento tivesse criado o mundo, os direitos
universais do homem poderiam ter sido enterrados em algum subcomitê
junto com toda aquela tralha da física quântica. Mas o Parlamento
não criou o mundo, ele apenas tenta lhe dar um sentido, e devemos
respeitar os direitos naturais até mesmo dos muçulmanos no Oriente
Médio, ou logo nossos próprios direitos também serão violados, e
isso acabaria mal para nós. Agora pode ir”.
Liberais,
comunistas e seguidores de outros credos modernos não gostam de
descrever os próprios sistemas como “religião” porque a
identificam com superstição e forças sobrenaturais. Se você
disser a comunistas ou liberais que eles são religiosos, eles vão
pensar que você os está acusando de acreditar cegamente em sonhos
sem fundamento. Na verdade, significa apenas que se trata de pessoas
que acreditam em algum sistema de leis morais que não foi inventado
pelo homem e ao qual, apesar disso, os humanos devem obedecer. Até
onde sabemos, todas as sociedades humanas acreditam nisso. Toda
sociedade diz a seus membros que eles devem obedecer a alguma lei
moral sobre-humana e que violá-la resultará em uma catástrofe.
As
religiões se diferenciam nos detalhes de suas histórias, em seus
mandamentos concretos e nas recompensas e punições que prometem.
Assim, na Europa medieval, a Igreja católica alegava que Deus não
gostava de gente rica. Jesus disse que seria mais fácil um camelo
passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino dos
céus. Para ajudar os ricos a entrar no reino de Deus, a Igreja os
incentiva a doar muito dinheiro para a caridade, ameaçando os
mesquinhos de arder no inferno. O comunismo moderno tampouco gosta
dos ricos, mas os ameaça com um conflito de classes neste mundo, e
não com enxofre ardente após a morte.
As
leis comunistas da história são semelhantes aos mandamentos do Deus
cristão, uma vez que são forças sobre-humanas que não podem ser
modificadas pelos humanos a seu bel-prazer. Os humanos podem decidir
que vão cancelar amanhã de manhã a regra do impedimento no
futebol, porque foram eles que a inventaram e são livres para
mudá-la. Contudo, ao menos segundo Marx, não podemos alterar as
leis da história. Não importa o que façam os capitalistas,
enquanto continuarem a acumular propriedade privada acarretarão o
conflito de classes e estarão destinados a serem derrotados pelo
proletariado em ascensão.
Se
por acaso você for comunista, poderá alegar que o comunismo e o
cristianismo são muito diferentes porque o primeiro está certo e o
segundo está errado. Conflitos de classe realmente são inerentes ao
sistema capitalista, mas os ricos não sofrem torturas eternas no
inferno depois que morrem. Entretanto, mesmo se esse for o caso, isso
não quer dizer que o comunismo não é uma religião. Ao contrário,
significa que o comunismo é a única religião verdadeira. Os
seguidores de toda religião estão convencidos de que somente a sua
é a verdadeira. Talvez os seguidores de uma única religião estejam
certos.
Yuval
Noah Harari, in
Homo
Deus: Uma breve história do amanhã
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