sábado, 18 de abril de 2020

Germes e demônios

A maior parte dos mal-entendidos que envolvem ciência e religião resulta de definições equivocadas de religião. Muito frequentemente as pessoas confundem religião com superstição, espiritualidade, crença em forças sobrenaturais ou em deuses. Religião não é nada disso. Religião não pode ser igualada a superstição, porque as pessoas provavelmente não chamam suas crenças mais acalentadas de “superstição”. Nós sempre acreditamos “na verdade”, só os outros é que acreditam em superstições.
Da mesma forma, poucas pessoas depositam sua fé em forças sobrenaturais. Para os que acreditam em demônios, espíritos e fadas, esses seres não são “sobrenaturais”. São parte integrante da natureza, assim como porcos-espinhos, escorpiões e germes. Médicos modernos atribuem a culpa pelas doenças a germes invisíveis e sacerdotes do vodu culpam espíritos invisíveis. Não há nada de sobrenatural nisso: se você faz algum espírito ficar com raiva, ele entra em seu corpo e lhe causa dor. O que seria mais natural do que isso? Somente aqueles que não acreditam em espíritos pensam que eles estão fora da ordem natural das coisas.
Equiparar religião com fé em forças sobrenaturais implica ser capaz de compreender todos os fenômenos naturais sem a religião, que seria somente um suplemento opcional. Tendo compreendido bem toda a natureza, você agora pode escolher se acrescenta ou não algum dogma religioso “sobrenatural”. No entanto, a maioria das religiões alega que não se pode compreender o mundo sem esses dogmas. Você nunca compreenderá a verdadeira razão das doenças, da seca ou do terremoto se não levar seus dogmas em consideração.
Definir religião como “crença em deuses” também é problemático. Tendemos a dizer que uma cristã devota é religiosa porque acredita em Deus, enquanto um comunista ardente não é religioso porque o comunismo não tem deuses. Entretanto, a religião é criada por humanos, e não por deuses, e é definida por sua função social, e não pela existência de deidades. Religião é qualquer coisa que confira legitimidade sobre-humana a estruturas sociais humanas. A religião legitima normas e valores humanos ao alegar que eles refletem leis sobre-humanas.
A religião afirma que nós humanos somos sujeitos a um sistema de leis morais que não foi inventado por nós e que não podemos mudar. Um judeu devoto diria que esse é o sistema de leis morais criado por Deus e revelado na Bíblia. Um hindu diria que Brahma, Vishnu e Shiva criaram as leis, reveladas a nós humanos nos Vedas. Outras religiões, do budismo ao taoismo, comunismo, nazismo e liberalismo, alegam que as chamadas leis sobre-humanas são leis naturais, e não criação deste ou daquele deus. Evidentemente, cada uma acredita em um diferente conjunto de leis naturais, descobertas e reveladas por diferentes videntes e profetas, de Buda e Lao-tsé a Marx e Hitler.
Um menino judeu vai até seu pai e pergunta: “Pai, por que não comemos carne de porco?”. O pai alisa pensativamente sua longa barba cacheada e responde: “Ben, Iankele, é assim que o mundo funciona. Você ainda é jovem e não vai compreender, mas, se comêssemos carne de porco, Deus nos puniria, e isso seria ruim para nós. Essa ideia não é minha. Nem mesmo do rabi. Se o rabi tivesse criado o mundo, talvez a carne de porco fosse kosher. Mas o rabi não criou o mundo. Foi Deus. E Deus disse, não sei por quê, que não devemos comer carne de porco. E, assim, não comemos. Entendeu?”.
Em 1943, um menino alemão vai até seu pai, um oficial superior da SS, e pergunta: “Pai, por que estamos matando os judeus?”. O pai, calçando suas reluzentes botas de couro, explica: “Bem, Fritz, é assim que o mundo funciona. Você ainda é jovem e não vai compreender, mas, se deixássemos os judeus viverem, eles causariam a degeneração e a extinção do gênero humano. Essa ideia não é minha, nem do Führer. Se Hitler tivesse criado o mundo, talvez as leis da seleção natural não se aplicassem a ele, e judeus e arianos poderiam viver em perfeita harmonia. Mas Hitler não criou o mundo. Ele somente tratou de decifrar as leis da natureza e nos instruiu a viver de acordo com elas. Se desobedecermos a essas leis, isso acabaria muito mal para nós. Ist das klar?”.
Em 2016, um menino britânico vai até seu pai, membro liberal do Parlamento, e pergunta: “Pai, por que temos de nos preocupar com os direitos humanos dos muçulmanos no Oriente Médio?”. O pai pousa sua xícara de chá, pensa por um momento e diz: “Bem, Duncan, é assim que o mundo funciona. Você ainda é jovem e não vai compreender, mas todos os humanos, até os muçulmanos do Oriente Médio, têm a mesma natureza e usufruem dos mesmos direitos naturais. Essa ideia não é minha, nem é uma decisão do Parlamento. Se o Parlamento tivesse criado o mundo, os direitos universais do homem poderiam ter sido enterrados em algum subcomitê junto com toda aquela tralha da física quântica. Mas o Parlamento não criou o mundo, ele apenas tenta lhe dar um sentido, e devemos respeitar os direitos naturais até mesmo dos muçulmanos no Oriente Médio, ou logo nossos próprios direitos também serão violados, e isso acabaria mal para nós. Agora pode ir”.
Liberais, comunistas e seguidores de outros credos modernos não gostam de descrever os próprios sistemas como “religião” porque a identificam com superstição e forças sobrenaturais. Se você disser a comunistas ou liberais que eles são religiosos, eles vão pensar que você os está acusando de acreditar cegamente em sonhos sem fundamento. Na verdade, significa apenas que se trata de pessoas que acreditam em algum sistema de leis morais que não foi inventado pelo homem e ao qual, apesar disso, os humanos devem obedecer. Até onde sabemos, todas as sociedades humanas acreditam nisso. Toda sociedade diz a seus membros que eles devem obedecer a alguma lei moral sobre-humana e que violá-la resultará em uma catástrofe.
As religiões se diferenciam nos detalhes de suas histórias, em seus mandamentos concretos e nas recompensas e punições que prometem. Assim, na Europa medieval, a Igreja católica alegava que Deus não gostava de gente rica. Jesus disse que seria mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus. Para ajudar os ricos a entrar no reino de Deus, a Igreja os incentiva a doar muito dinheiro para a caridade, ameaçando os mesquinhos de arder no inferno. O comunismo moderno tampouco gosta dos ricos, mas os ameaça com um conflito de classes neste mundo, e não com enxofre ardente após a morte.
As leis comunistas da história são semelhantes aos mandamentos do Deus cristão, uma vez que são forças sobre-humanas que não podem ser modificadas pelos humanos a seu bel-prazer. Os humanos podem decidir que vão cancelar amanhã de manhã a regra do impedimento no futebol, porque foram eles que a inventaram e são livres para mudá-la. Contudo, ao menos segundo Marx, não podemos alterar as leis da história. Não importa o que façam os capitalistas, enquanto continuarem a acumular propriedade privada acarretarão o conflito de classes e estarão destinados a serem derrotados pelo proletariado em ascensão.
Se por acaso você for comunista, poderá alegar que o comunismo e o cristianismo são muito diferentes porque o primeiro está certo e o segundo está errado. Conflitos de classe realmente são inerentes ao sistema capitalista, mas os ricos não sofrem torturas eternas no inferno depois que morrem. Entretanto, mesmo se esse for o caso, isso não quer dizer que o comunismo não é uma religião. Ao contrário, significa que o comunismo é a única religião verdadeira. Os seguidores de toda religião estão convencidos de que somente a sua é a verdadeira. Talvez os seguidores de uma única religião estejam certos.
Yuval Noah Harari, in Homo Deus: Uma breve história do amanhã

Nenhum comentário:

Postar um comentário