sexta-feira, 3 de abril de 2020

Garoto de ouro


O essencial está na música. A gente lê a biografia ou autobiografia pelo trivial. Miles Davis escrevendo sobre o seu caso com a Juliette Greco: “Eu saía com Sartre e com Juliette e nós sentávamos nos cafés de calçada e bebíamos vinho e comíamos e conversávamos. Juliette me pediu para ficar. Até o Sartre disse: Por que você e Juliette não se casam?”. Ajuda se Jean-Paul Sartre faz parte do seu trivial. Chet Baker não tem nada parecido com Jean-Paul Sartre, Juliette Greco e cafés de calçada em Paris nas suas Memórias Perdidas. Ao contrário de Miles (cuja autobiografia, imagino, não saiu em português porque o tradutor não saberia o que fazer com tanto motherfuckers, ou saiu?), Chet também não conta muito do trivial que mais interessa a quem gosta de jazz: detalhes de gravações, histórias de outros músicos, preferências, influências. Tem-se, isto sim, muito detalhe sobre a sua luta diária por drogas, remédios que substituem drogas, como conseguir drogas em diferentes cidades europeias. E nada sobre o que levou a usá-las. Nem um chavão psicológico: infância infeliz, fragilidade emocional, dificuldade de relacionamento, frustração profissional. Chet foi uma criança amada e sem problemas, fez sucesso popular e crítico desde cedo, tinha cara de artista de cinema e também fazia sucesso com as mulheres. Começou com drogas, supõe-se, só porque elas eram parte da cultura do jazz. Durante um tempo, antes de se popularizar, maconha e heroína eram coisas de músico nos Estados Unidos, uma musa do barato correspondente à “musa sedenta” que deu título a um livro sobre os escritores americanos e a bebida. Chet não explica nem se desculpa pela trivialização das drogas na sua vida, mas elas eram claramente sua preocupação principal. Ele não conta nem como elas afetavam sua música. Para o leitor, é uma trivialidade apenas deprimente.
Miles, na sua autobiografia, conta que quando encontrou Chet pela primeira vez este se mostrou embaraçado por ter sido escolhido pela revista Downbeat como o melhor trompetista de 1953, já que os dois sabiam que o melhor de todos era Dizzy Gillespie. Repetia-se, um pouco, com eles o que tinha acontecido anos antes, quando Louis Armstrong era o grande trompetista do jazz mas o mais festejado pelo público — pelo menos por um curto espaço de tempo até sua morte precoce — era Bix Beiderbecke, bonito como Chet, outro motherfucker branco tirando o lugar de um negro melhor do que ele. Segundo Miles, Chet o copiava. Não é exatamente verdade. Chet tocava sem vibrato, como Miles, mas não dava para confundir os dois. O fraseado era diferente. Chet era um grande improvisador, um dos melhores da história do jazz, mas lhe faltava o que Miles tinha. Pegada, está aí. Musicalmente, não quer dizer nada, mas é a palavra exata.
Chet venceu o concurso da Downbeat pela primeira vez no ano da sua primeira gravação, com o famoso quarteto sem piano de Gerry Mulligan. Pequena trivialidade pessoal: foi o primeiro disco de “jazz moderno” que comprei, nos Estados Unidos. Pacific Jazz, 10 polegadas. Ainda me lembro do deslumbramento. Não era só a novidade da ausência de piano ou qualquer outro instrumento harmônico, com os dois sopros (Gerry no sax barítono, também uma novidade como instrumento solista) equilibrando-se em cima da linha do baixo. Era todo aquele clima ao mesmo tempo cool e lírico, a pretensão intelectual de solos em contraponto mais para música erudita do que para dixieland, uma revelação de possibilidades sonoras insuspeitadas para alguém que, como eu, ouvia Armstrong, Benny Goodman, Coleman Hawkins e nem sabia que existia o Charlie Parker. A origem do que veio a se chamar West Coast Jazz, jazz da costa ocidental, da Califórnia — do qual o quarteto de Gerry Mulligan foi uma das primeiras manifestações — era uma gravação feita por Miles e um noneto, arranjos de Gil Evans e Mulligan entre outros, no fim dos anos 40. Um refinamento do be-bop, com arranjos mais pensados e uma maior preocupação com matizes e combinações de som, baseados no trabalho de Gil Evans para a orquestra de Claude Thornhill. Mas o próprio Miles não foi para a Califórnia com o estilo que lançou, ficou no leste e ajudou a lançar o hard bop, a contrapartida negra e com pegada ao West Coast Jazz predominantemente branco e cerebral. Em 1953, quando Miles e Chet se encontraram, Miles estava no pior do seu período obscuro, com problemas de saúde pela dependência da heroína, e do qual saiu espetacularmente com uma apresentação triunfal no Festival de Jazz de Newport do ano seguinte. Daí em diante seria a maior e mais influente estrela do jazz, lançando estilos novos até o fim. Chet estava no auge, era o recém-descoberto garoto de ouro do jazz californiano, mas já era um dependente irreversível e em pouco tempo começaria a sua rotina de prisões, internamentos, exílios temporários, voltas catastróficas e novos exílios, até morrer em 1988, com a cara de quem já tinha morrido algumas vezes.
Chet fala um pouco de Charlie Parker, que lhe deu o primeiro trabalho, escolhendo-o para trompetista da sua banda quando se apresentou na Califórnia, e tentou protegê-lo da droga, apesar de ser um viciado lendário. E fala mais de Gerry Mulligan, da sua vinda de carro de Nova York, da formação do quarteto inesquecível (Carson Smith era o baixista, Chico Hamilton, o baterista), dos seus galhos com mulheres e drogas. Mas fala bem mais de uma certa lady Isabella MacDougal Frankau, uma mulher de 75 anos, cabelos brancos e porte de executiva, que apesar do nome e da aparência de grande personagem, só entra na história porque é quem fornece receitas de cocaína e heroína para Chet, dentro do programa de tratamento gradual de viciados na Inglaterra. O essencial está na música.
Luís Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses

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