O
essencial está na música. A gente lê a biografia ou autobiografia
pelo trivial. Miles Davis escrevendo sobre o seu caso com a Juliette
Greco: “Eu saía com Sartre e com Juliette e nós sentávamos nos
cafés de calçada e bebíamos vinho e comíamos e conversávamos.
Juliette me pediu para ficar. Até o Sartre disse: Por que você e
Juliette não se casam?”. Ajuda se Jean-Paul Sartre faz parte do
seu trivial. Chet Baker não tem nada parecido com Jean-Paul Sartre,
Juliette Greco e cafés de calçada em Paris nas suas Memórias
Perdidas. Ao contrário de Miles (cuja autobiografia, imagino,
não saiu em português porque o tradutor não saberia o que fazer
com tanto motherfuckers, ou saiu?), Chet também não conta
muito do trivial que mais interessa a quem gosta de jazz:
detalhes de gravações, histórias de outros músicos, preferências,
influências. Tem-se, isto sim, muito detalhe sobre a sua luta diária
por drogas, remédios que substituem drogas, como conseguir drogas em
diferentes cidades europeias. E nada sobre o que levou a usá-las.
Nem um chavão psicológico: infância infeliz, fragilidade
emocional, dificuldade de relacionamento, frustração profissional.
Chet foi uma criança amada e sem problemas, fez sucesso popular e
crítico desde cedo, tinha cara de artista de cinema e também fazia
sucesso com as mulheres. Começou com drogas, supõe-se, só porque
elas eram parte da cultura do jazz. Durante um tempo, antes de
se popularizar, maconha e heroína eram coisas de músico nos Estados
Unidos, uma musa do barato correspondente à “musa sedenta” que
deu título a um livro sobre os escritores americanos e a bebida.
Chet não explica nem se desculpa pela trivialização das drogas na
sua vida, mas elas eram claramente sua preocupação principal. Ele
não conta nem como elas afetavam sua música. Para o leitor, é uma
trivialidade apenas deprimente.
Miles,
na sua autobiografia, conta que quando encontrou Chet pela primeira
vez este se mostrou embaraçado por ter sido escolhido pela revista
Downbeat como o melhor trompetista de 1953, já que os dois
sabiam que o melhor de todos era Dizzy Gillespie. Repetia-se, um
pouco, com eles o que tinha acontecido anos antes, quando Louis
Armstrong era o grande trompetista do jazz mas o mais
festejado pelo público — pelo menos por um curto espaço de tempo
até sua morte precoce — era Bix Beiderbecke, bonito como Chet,
outro motherfucker branco tirando o lugar de um negro melhor
do que ele. Segundo Miles, Chet o copiava. Não é exatamente
verdade. Chet tocava sem vibrato, como Miles, mas não dava para
confundir os dois. O fraseado era diferente. Chet era um grande
improvisador, um dos melhores da história do jazz, mas lhe
faltava o que Miles tinha. Pegada, está aí. Musicalmente, não quer
dizer nada, mas é a palavra exata.
Chet
venceu o concurso da Downbeat pela primeira vez no ano da sua
primeira gravação, com o famoso quarteto sem piano de Gerry
Mulligan. Pequena trivialidade pessoal: foi o primeiro disco de “jazz
moderno” que comprei, nos Estados Unidos. Pacific Jazz, 10
polegadas. Ainda me lembro do deslumbramento. Não era só a novidade
da ausência de piano ou qualquer outro instrumento harmônico, com
os dois sopros (Gerry no sax barítono, também uma novidade como
instrumento solista) equilibrando-se em cima da linha do baixo. Era
todo aquele clima ao mesmo tempo cool e lírico, a pretensão
intelectual de solos em contraponto mais para música erudita do que
para dixieland, uma revelação de possibilidades sonoras
insuspeitadas para alguém que, como eu, ouvia Armstrong, Benny
Goodman, Coleman Hawkins e nem sabia que existia o Charlie Parker. A
origem do que veio a se chamar West Coast Jazz, jazz da costa
ocidental, da Califórnia — do qual o quarteto de Gerry Mulligan
foi uma das primeiras manifestações — era uma gravação feita
por Miles e um noneto, arranjos de Gil Evans e Mulligan entre outros,
no fim dos anos 40. Um refinamento do be-bop, com arranjos
mais pensados e uma maior preocupação com matizes e combinações
de som, baseados no trabalho de Gil Evans para a orquestra de Claude
Thornhill. Mas o próprio Miles não foi para a Califórnia com o
estilo que lançou, ficou no leste e ajudou a lançar o hard bop,
a contrapartida negra e com pegada ao West Coast Jazz
predominantemente branco e cerebral. Em 1953, quando Miles e Chet se
encontraram, Miles estava no pior do seu período obscuro, com
problemas de saúde pela dependência da heroína, e do qual saiu
espetacularmente com uma apresentação triunfal no Festival de Jazz
de Newport do ano seguinte. Daí em diante seria a maior e mais
influente estrela do jazz, lançando estilos novos até o fim.
Chet estava no auge, era o recém-descoberto garoto de ouro do jazz
californiano, mas já era um dependente irreversível e em pouco
tempo começaria a sua rotina de prisões, internamentos, exílios
temporários, voltas catastróficas e novos exílios, até morrer em
1988, com a cara de quem já tinha morrido algumas vezes.
Chet
fala um pouco de Charlie Parker, que lhe deu o primeiro trabalho,
escolhendo-o para trompetista da sua banda quando se apresentou na
Califórnia, e tentou protegê-lo da droga, apesar de ser um viciado
lendário. E fala mais de Gerry Mulligan, da sua vinda de carro de
Nova York, da formação do quarteto inesquecível (Carson Smith era
o baixista, Chico Hamilton, o baterista), dos seus galhos com
mulheres e drogas. Mas fala bem mais de uma certa lady
Isabella MacDougal Frankau, uma mulher de 75 anos, cabelos brancos e
porte de executiva, que apesar do nome e da aparência de grande
personagem, só entra na história porque é quem fornece receitas de
cocaína e heroína para Chet, dentro do programa de tratamento
gradual de viciados na Inglaterra. O essencial está na música.
Luís
Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses
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