terça-feira, 21 de abril de 2020

Diálogo 70% imaginário

Vou deixar com o senhor o questionário do recenseamento. As respostas — veja bem — devem ser claras, sinceras…
Mas a senhorita me garante que haverá sigilo?
Absoluto. É de lei.
Mesmo que eu conte tudo?
Tudo o quê?
Suponhamos que no item da profissão eu bote: contrabandista.
O senhor não vai fazer uma coisa dessas.
A senhorita não advertiu que as respostas devem ser claras, sinceras?
Então o senhor é contrabandista?
Não disse que sou. Podia ser.
Contrabandista não é profissão.
Não é? Tem muita gente que vive disso, sustenta a família com isso.
Bom, não me compete resolver. Bote como quiser.
Vou botar jornalista. Perguntei porque a senhora me disse que o IBGE quer estabelecer a composição da mão de obra nacional, apurando a ocupação de cada um. Parte dessa mão de obra se aplica em misteres ilícitos. Conheço um sujeito na Paraíba que vive de assassinatos, tem clientela, sustenta a família com isso.
Felizmente não sou recenseadora na Paraíba.
É o que eu estava pensando. Seria uma pena a senhorita não se dedicar aos moradores desta rua.
Obrigada pela preferência, mas… O senhor vai demonstrá-la preenchendo bem direitinho este papel. É só botar um X no quadradinho destinado a cada resposta.
E tenho que dizer quanto ganho?
Claro que tem.
Eu já disse ao Imposto de Renda.
Ao Imposto de Renda o senhor mentiu, não foi? Veja lá.
Como é que a senhorita sabe?
Eu não sei. Imagino. Me disseram que todo mundo faz isso.
E agora vou confessar ao IBGE que soneguei rendimentos?
O IBGE não conta a ninguém. Vamos, coragem.
Assim ele ajuda a fraudar o fisco. Não está direito.
E o senhor acha direito mentir duas vezes? Pense no segredo da confissão. Faça de conta que eu sou o padre.
Isso nunca. A senhorita é padre coisa nenhuma.
De qualquer maneira o senhor está se confessando.
Absolutamente. Eu não confessei que fiz declaração falsa ao Imposto de Renda. A senhorita é que acha que eu devo ter feito.
Tanto melhor. Confirme agora a declaração exata, no total.
Também não disse que fiz declaração exata.
Vamos admitir que fez. Por que desconfiar do cidadão? Mantenha-a perante o IBGE, dizendo quanto ganha por ano. Seja bonzinho…
Sabe de uma coisa? A senhorita diz isso de um jeito, fala de um modo tão veludoso, que até sinto vontade…
Bravos!
De exagerar minha renda, inventando milhões.
Para quê?
Para elevar a taxa da renda nacional per capita.
O senhor é louco!
Nunca me senti tão equilibrado como agora. Queria só ver a sua reação.
E qual foi a minha reação?
Não de todo má. Louco é quase elogio.
Para seu gosto, pelo menos.
A senhorita classificou este quase recenseado, individualizou-o, vai guardá-lo na memória. Obrigado. Mas queria dizer-lhe outra coisa.
Diga.
Esse negócio de recensear todas as pessoas que passarem em nossa casa a noite de 31 de agosto para 1º de setembro…
Que é que tem?
Nada, não pense que eu esteja pensando algo malicioso. Não há meio de alterar a data?
Havia de ser engraçado: fazer o censo variar de data conforme o agrado ou a conveniência de cada um. Qual, o senhor não regula mesmo.
Logo na noite de 31…
Há alguma coisa de extraordinário na noite de 31?
Meu horóscopo diz que não devo facilitar com ela.
E o senhor acredita em horóscopos?
Neste comecei a acreditar.
Por quê?
Porque ele me preveniu que eu encontraria uma jovem de cabelos azuis e olhos louros, perdão, de cabelos louros e olhos azuis, com uma pasta preta na mão, como a senhorita, e eu encontrei.
O senhor mentiu ao Imposto de Renda, pensou em mentir ao IBGE e agora está mentindo para mim.
Senhorita, as informações devem ser simples e sinceras! O jornal está aqui em cima da mesa, leia meu horóscopo e faça-me o favor de dizer se adianta eu botar um X no quadradinho da palavra solteiro, se daqui a pouco nós dois estaremos casados?
Carlos Drummond de Andrade, in A bolsa & a vida

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