— Vou
deixar com o senhor o questionário do recenseamento. As respostas —
veja bem — devem ser claras, sinceras…
— Mas
a senhorita me garante que haverá sigilo?
— Absoluto.
É de lei.
— Mesmo
que eu conte tudo?
— Tudo
o quê?
— Suponhamos
que no item da profissão eu bote: contrabandista.
— O
senhor não vai fazer uma coisa dessas.
— A
senhorita não advertiu que as respostas devem ser claras, sinceras?
— Então
o senhor é contrabandista?
— Não
disse que sou. Podia ser.
— Contrabandista
não é profissão.
— Não
é? Tem muita gente que vive disso, sustenta a família com isso.
— Bom,
não me compete resolver. Bote como quiser.
— Vou
botar jornalista. Perguntei porque a senhora me disse que o IBGE quer
estabelecer a composição da mão de obra nacional, apurando a
ocupação de cada um. Parte dessa mão de obra se aplica em misteres
ilícitos. Conheço um sujeito na Paraíba que vive de assassinatos,
tem clientela, sustenta a família com isso.
— Felizmente
não sou recenseadora na Paraíba.
— É
o que eu estava pensando. Seria uma pena a senhorita não se dedicar
aos moradores desta rua.
— Obrigada
pela preferência, mas… O senhor vai demonstrá-la preenchendo bem
direitinho este papel. É só botar um X no quadradinho destinado a
cada resposta.
— E
tenho que dizer quanto ganho?
— Claro
que tem.
— Eu
já disse ao Imposto de Renda.
— Ao
Imposto de Renda o senhor mentiu, não foi? Veja lá.
— Como
é que a senhorita sabe?
— Eu
não sei. Imagino. Me disseram que todo mundo faz isso.
— E
agora vou confessar ao IBGE que soneguei rendimentos?
— O
IBGE não conta a ninguém. Vamos, coragem.
— Assim
ele ajuda a fraudar o fisco. Não está direito.
— E
o senhor acha direito mentir duas vezes? Pense no segredo da
confissão. Faça de conta que eu sou o padre.
— Isso
nunca. A senhorita é padre coisa nenhuma.
— De
qualquer maneira o senhor está se confessando.
— Absolutamente.
Eu não confessei que fiz declaração falsa ao Imposto de Renda. A
senhorita é que acha que eu devo ter feito.
— Tanto
melhor. Confirme agora a declaração exata, no total.
— Também
não disse que fiz declaração exata.
— Vamos
admitir que fez. Por que desconfiar do cidadão? Mantenha-a perante o
IBGE, dizendo quanto ganha por ano. Seja bonzinho…
— Sabe
de uma coisa? A senhorita diz isso de um jeito, fala de um modo tão
veludoso, que até sinto vontade…
— Bravos!
— De
exagerar minha renda, inventando milhões.
— Para
quê?
— Para
elevar a taxa da renda nacional per capita.
— O
senhor é louco!
— Nunca
me senti tão equilibrado como agora. Queria só ver a sua reação.
— E
qual foi a minha reação?
— Não
de todo má. Louco é quase elogio.
— Para
seu gosto, pelo menos.
— A
senhorita classificou este quase recenseado, individualizou-o, vai
guardá-lo na memória. Obrigado. Mas queria dizer-lhe outra coisa.
— Diga.
— Esse
negócio de recensear todas as pessoas que passarem em nossa casa a
noite de 31 de agosto para 1º de setembro…
— Que
é que tem?
— Nada,
não pense que eu esteja pensando algo malicioso. Não há meio de
alterar a data?
— Havia
de ser engraçado: fazer o censo variar de data conforme o agrado ou
a conveniência de cada um. Qual, o senhor não regula mesmo.
— Logo
na noite de 31…
— Há
alguma coisa de extraordinário na noite de 31?
— Meu
horóscopo diz que não devo facilitar com ela.
— E
o senhor acredita em horóscopos?
— Neste
comecei a acreditar.
— Por
quê?
— Porque
ele me preveniu que eu encontraria uma jovem de cabelos azuis e olhos
louros, perdão, de cabelos louros e olhos azuis, com uma pasta preta
na mão, como a senhorita, e eu encontrei.
— O
senhor mentiu ao Imposto de Renda, pensou em mentir ao IBGE e agora
está mentindo para mim.
— Senhorita,
as informações devem ser simples e sinceras! O jornal está aqui em
cima da mesa, leia meu horóscopo e faça-me o favor de dizer se
adianta eu botar um X no quadradinho da palavra solteiro, se daqui a
pouco nós dois estaremos casados?
Carlos
Drummond de Andrade, in A bolsa & a vida
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