quinta-feira, 23 de abril de 2020

Da virtude dadivosa - 1

Quando Zaratustra se despediu da cidade cara ao seu coração, cujo nome era A Vaca Malhada, seguiram-no muitos que se denominavam seus discípulos, fazendo-lhe companhia. Assim chegaram a uma encruzilhada: então Zaratustra lhes disse que desejava continuar sozinho; pois era afeiçoado a andar sozinho. Ao se despedir, porém, seus discípulos lhe deram um bastão, em cujo cabo dourado havia uma serpente enrolada em torno do sol. Zaratustra se alegrou com o bastão e nele se apoiou; então falou assim aos seus discípulos:
Dizei-me: como adquiriu o ouro o valor mais alto? Por ser incomum, inútil, reluzente e de brilho suave; por sempre se dar.
Apenas como imagem da mais alta virtude adquiriu o ouro o valor mais alto. O olhar daquele que dá reluz como o ouro. O brilho do ouro reconcilia o sol e a lua.
Incomum é a virtude mais alta, e inútil, reluzente e de brilho suave: uma virtude dadivosa é a virtude mais alta.
Em verdade, eu vos entendo, meus discípulos: vós buscais, como eu, a virtude dadivosa. Que podeis ter em comum com gatos e lobos?
Tendes sede de tornar-vos vós mesmos sacrifícios e dádivas: daí a vossa sede de acumular todas as riquezas em vossa alma.
Insaciável busca a vossa alma por tesouros e joias, pois vossa virtude é insaciável na vontade de dar.
Obrigais todas as coisas a ir para vós e estar em vós, para que venham a refluir da vossa fonte como dádivas do vosso amor.
Em verdade, ladrão de todos os valores se tornará esse amor dadivoso; mas eu declaro sadio e sagrado esse egoísmo.
Há um outro egoísmo, demasiado pobre, faminto, que sempre deseja furtar, o egoísmo dos doentes, o egoísmo doente.
Com o olhar do gatuno olha para tudo que brilha; com a avidez da fome mede aquele que tem bastante de-comer; e sempre se avizinha furtivamente da mesa dos que dão.
O que fala através dessa cobiça é doença, e invisível degeneração; a gatuna avidez desse egoísmo fala de um corpo enfermo.
Dizei-me, irmãos: o que é para nós ruim e pior que tudo? Não é a degeneração? — E sempre intuímos degenerescência ali onde falta a alma dadivosa.
Para cima vai nosso caminho, além da espécie, rumo à superespécie. Mas um horror, para nós, é o senso degenerante, que diz: “Tudo para mim”.
Para cima voa nosso senso, assim é ele um símbolo do nosso corpo, o símbolo de uma elevação. Os símbolos de tais elevações são os nomes das virtudes.
Assim o corpo atravessa a história, vindo a ser e lutando. E o espírito — que é ele para o corpo? Arauto, companheiro e eco de suas lutas e vitórias.
Símbolos são todos os nomes do bem e do mal: não enunciam, apenas acenam. É tolo quem deles espera o saber!
Atentai, irmãos, para cada momento em que vosso espírito quer falar por símbolos: aí está a origem da vossa virtude.
Elevado está aí vosso corpo, e ressuscitado; com seu enlevo arrebata o espírito, para que se torne criador, estimador, amador e de tudo benfeitor.
Quando o vosso coração palpita, largo e pleno como um rio, bênção e perigo para os habitantes das margens: aí está a origem da vossa virtude.
Quando vos elevais acima do elogio e da censura, e vossa vontade quer em tudo mandar, como a vontade de um amante: aí está a origem da vossa virtude.
Quando desprezais o agradável e o leito mole, e não podeis deitar-vos longe o bastante dos molengas: aí está a origem da vossa virtude.
Quando quereis com um só querer, e esse afastamento de toda necessidade se chama necessidade para vós: eis a origem da vossa virtude.
Em verdade, é ela um novo bem e mal! Em verdade, é um novo, profundo rumor, a voz de uma nova fonte!
Essa nova virtude é poder; é um pensamento dominante e, em torno dele, uma alma sagaz: um sol dourado e, em torno dele, a serpente do conhecimento.
Friedrich Nietzsche, in Assim falou Zaratustra

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