Fotograma do filme As vinhas da ira (1940), de John Ford
O
caminhão rodava sobre a terra quente, as horas passavam. Ruthie e
Winfield tinham adormecido. Connie puxou um cobertor, lançou-o sobre
si e Rosa de Sharon, e apesar do calor eles se uniram apertados,
retendo a respiração. Um pouquinho depois, Connie jogou de lado o
cobertor, e o vento quente que peneirava pela fresta da lona armada
acariciava-lhe os corpos molhados de suor.
Atrás,
na ponta da carroceria, estava a mãe, deitada ao lado da avó. Ela
nada podia enxergar, mas podia sentir o corpo se debater e o coração
a lutar; a respiração arquejante chegava-lhe aos ouvidos. E a mãe
dizia e repetia:
— Vai
ficar tudo bem; tudo se resolverá. — E continuava em voz rouca: —
A gente tem que continuar, a gente tem que chegar.
Tio
John perguntou:
— Tudo
bem?
Demorou
um pouco a resposta dela:
— Tudo
bem. Acho que sim. Tava começando a dormir. — Pouco depois a avó
ficou imóvel e a mãe jazia hirta ao lado dela.
As
horas noturnas passavam e reinava completa escuridão no caminhão.
Às vezes, carros passavam por ele, indo para o Oeste, e logo
sumindo; outras vezes pesados caminhões vinham do Oeste e ribombavam
rumo ao Leste. As estrelas desciam em lento cortejo para o ocidente.
Era cerca de meia-noite quando chegaram às proximidades de Dagget,
onde fica o posto de inspeção. A estrada estava fartamente
iluminada naquele ponto, e havia uma grande tabuleta luminosa com os
dizeres: “CONSERVE-SE À SUA DIREITA E PARE.” Os funcionários
estavam no interior da casinha do posto quando chegou o caminhão dos
Joad, e logo saíram para o comprido alpendre. Um deles anotou o
número da placa de licença do caminhão e abriu o capô do motor.
— Que
é isto aqui? — perguntou Tom.
— Fiscalização
de Agricultura. Temos que dar uma busca nas suas coisas. Têm aí
vegetais ou sementes?
— Não
— disse Tom.
— Bom,
temos que examinar a carga. Desçam todos!
A
mãe, agora, saltou do caminhão. Seu rosto estava inchado e seus
olhos com uma expressão endurecida.
— Escute,
seu — começou. — A gente está com uma senhora de idade muito
doente aqui no caminhão. Ela tem que ir logo a um médico. Não
podemos perder tempo assim. — Ela parecia lutar contra um ataque de
histeria. — O senhor não tem o direito de fazer a gente perder
tempo.
— Ah,
é? Pois tenha paciência, a busca tem que ser dada.
— Juro
que não temos nada disso! — exclamou a mãe. — Juro!... E a avó
está muito doente.
— A
senhora também não parece que esteja muito bem — disse o
funcionário.
A
mãe trepou na carroceria e endireitou-se com grande esforço.
— Aqui,
olhe aqui! — disse ela.
O
funcionário lançou um facho de luz de lanterna sobre o rosto rígido
da anciã.
— Meu
Deus! — disse. — A senhora jura então que não levam nem
vegetais nem sementes? Ou frutas, milho ou laranjas?
— Não,
não. Juro!
— Bom,
então vou indo. Em Barstow tem um médico. Fica daqui a uns dez
quilômetros. Podem ir.
Tom
subiu na cabine e o caminhão continuou a viagem.
O
funcionário virou-se para os colegas.
— Não
achei que tinha o direito de atrasá-los
— Quem
sabe foi tapeação?... — disse o outro.
— Não,
garanto que não era. Queria só que você visse a cara da velha.
Aquilo não era fingimento.
Tom
aumentou a velocidade, e ao chegarem a Barstow parou, saltou e deu a
volta no veículo. A mãe debruçou-se.
— Tá
tudo bem — disse ela. — Não precisa parar aqui. Eu só disse
aquilo pra eles deixarem a gente passar.
— É?...
E como vai a avó?
— Bem.
Vai tocando pra frente. Vê se a gente chega logo. — Tom meneou a
cabeça e voltou ao seu lugar.
— Al
— disse ele —, agora vamo encher o tanque e ocê vai guiar um
pouco. — Estacionou junto a um posto de gasolina, mandou encher o
tanque e o radiador, e também o tanque de óleo. Depois Al sentou-se
ao volante e Tom tomou lugar junto à outra janela, deixando o pai no
meio dos dois. O caminhão foi rodando, escuridão adentro, e as
pequenas colinas das cercanias de Barstow foram ficando para trás.
Tom
disse:
— Não
sei o que é que a mãe tem. Ela vive braba que nem cachorro com
mosca na orelha. Não ia demorar tanto tempo assim para eles
revistarem nossas coisas. E primeiro ela disse que a avó tava muito
mal, agora diss’que tá boa. Não sei o que ela tem, acho que não
se sente muito bem. Imagina se ela ficasse louca na viagem!
— A
mãe tá ficando que nem quando era mocinha — disse o pai. — Era
braba que te digo! Não tinha medo de nada. Pensei que depois que
tivesse filhos e ficasse mais velha a coisa passasse. Mas qual nada!
Quando ela tava com aquele ferro na mão, eu é que não ia tirar
ele.
— Não
sei o que ela tem — disse Tom. — Talvez seja só o cansaço.
— Eu
não posso pensar nisso. Tenho que pensar no carro — falou Al.
— Foi
uma boa compra que ocê fez — aduziu Tom. — Esse calhambeque
quase não deu trabalho à gente.
A
noite toda eles foram atravessando as trevas quentes; às vezes
surgiam coelhos do mato à luz dos faróis e procuravam fugir em
grandes saltos. A manhã cinzenta começava a nascer, atrás deles,
quando à sua frente apareceram as luzes de Mojave. E o alvorecer
alastrava-se deixando à mostra grandes montanhas a oeste. Em Mojave
encheram o tanque de óleo e puseram água no radiador. Quando
galgaram as montanhas, o alvorecer já os cobria de luz clara.
Tom
disse:
— Graças
a Deus, passamos o deserto! Pai, Al, em nome de Deus! Atravessamos o
deserto!
— Para
mim tanto faz; tô é cansado como o diabo — replicou Al.
— Cê
quer que eu dirija?
— Não,
pera um pouco.
Aos
primeiros raios do sol que surgia, eles iam atravessando Tehachapi, e
o sol crescia atrás deles... depois, de repente, viram diante de si
o grande vale. Al pisou no freio e parou no meio da estrada.
— Meu
Deus, olha! — disse. — Os vinhedos, os pomares, o grande vale
verdejante, fileiras de árvores, as casinhas brancas!
— Grande
Deus! — disse o pai.
As
cidades ao longe, as aldeias entre os pomares e o sol matinal que
dourava o vale. Um carro buzinou atrás deles. Al encostou o caminhão
à beira da estrada.
— Preciso
olhar bem isso.
Os
campos de trigo, cor de ouro, as fileiras de salgueiros, os pés de
eucalipto, altos e retos.
O
pai suspirou.
— Eu
não imaginava que tivesse uma coisa assim, tão bonita...
Os
pessegueiros, os grupos de nogueira e as copas baixas, verde-escuras,
das laranjeiras. E telhados vermelhos entre as árvores, e
celeiros... celeiros cheios. Al saltou e estirou as pernas.
— Mãe,
chegamos! — gritou.
Ruthie
e Winfield escorregaram de cima do caminhão até o chão e agora ali
quedavam, silenciosos e assombrados, embaraçados diante do
espetáculo do grande vale. Ao longe flutuava fina cerração, e as
terras iam adquirindo contornos suaves ao longe. A roda de um moinho
brilhou ao sol, e suas pás em movimento pareciam um pequeno
heliógrafo. Ruthie e Winfield olhavam-no, e Ruthie sussurrou:
— É
a Califórnia.
John
Steinbeck, in As
vinhas da ira
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