sábado, 11 de abril de 2020

Armação

Gosto de ler peças inglesas de autores atuais. É um vício respeitável como qualquer outro, certamente melhor do que desmembrar insetos. Já tenho uma boa coleção, de gente como Alan Bennett, Peter Barnes, Peter Nichols, Simon Gray, Alan Ayckbourn, Trevor Griffith, John Osborne e compro tudo o que encontro do Tom Stoppard, o melhor deles todos, ou pelo menos o mais brilhante. Stoppard é tcheco de nascimento, o que talvez explique o seu gosto em brincar com o inglês, com aquela distante fascinação pelo idioma adotado que também tinham Conrad e Nabokov. Às vezes é esperto demais para o seu próprio bem e brilha no vazio, mas o que faz nunca é menos que bem bolado. Uma das suas primeiras e mais célebres bolações foi esse Rosencrantz e Guil denstern estão mortos, que ele mesmo adaptou para o cinema e dirigiu.
Stoppard pegou dois dos personagens mais insignificantes da literatura dramática, os amigos de infância de Hamlet convocados para ajudar a escantear o príncipe maluco que depois os sacaneia sem qualquer escrúpulo ou sentido, e construiu em torno deles um sutil estudo sobre o destino, o acaso, a arte — e a significância. Acompanha suas perambulações pelos bastidores de Elsinore, enquanto eles tentam adivinhar o drama em que se meteram no que vislumbram da peça de Shakespeare, a “realidade” à qual vez que outra são chamados para dizer suas falas e depois voltar para sua perplexidade. E o que fazem dois personagens desnecessários quando não estão participando da história que está escrita? Jogos com palavras, trocadilhos, suposições absurdas, bobagem, filosofia. Literatura, enfim, insignificante. São dois cérebros à deriva fora do script, num mundo indecifrável, sem memória e sem objetivo, só neurônios se entredevorando enquanto esperam suas deixas. No filme (isto não tem na peça), Rosencrantz (ou é Guildenstern?) antecipa todas as grandes descobertas da física, mas não tem o que fazer com elas. O físico sem teoria, o corpo e suas paixões, sangue, poder, incesto e vingança, é que darão significância a estes cérebros inocentes e determinarão o fim dos seus personagens. Eles saem da história como entraram, sem entender nada e sem servir para nada, salvo a ironia do autor. Como Vladimir e Estragon de Becket, como o Gordo e o Magro , e como você e eu, só para ficar nas duplas. O único que sabe o que está acontecendo e como tudo acaba no filme é o diretor da trupe teatral, pois sabe que tudo, afinal, é uma trama predeterminada. Literalmente uma armação. Por mais longe que a sua mente vá, ela continua dentro de um corpo e o corpo está dentro de uma peça que acaba mal, e não há nada que você possa fazer a respeito. Isto vale tanto para príncipes quanto para coadjuvantes.
Stoppard aproveitou bem os recursos do cinema e encheu o filme com invenções visuais que acompanham as invenções verbais e impedem que uma certa chateação — inevitável, já que os banquetes intelectuais muito fartos embotam tanto quanto uma feijoada — nos invada.
Hamlet já foi feito de todos os jeitos, parece que existe até uma versão para cachorros amestrados, e se você nunca viu antes aproveite esta chance para entrar em Elsinore pela porta de serviço na companhia de dois santos bobos e se divertir com a tragédia toda.
Luís Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses

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