Gosto
de ler peças inglesas de autores atuais. É um vício respeitável
como qualquer outro, certamente melhor do que desmembrar insetos. Já
tenho uma boa coleção, de gente como Alan Bennett, Peter Barnes,
Peter Nichols, Simon Gray, Alan Ayckbourn, Trevor Griffith, John
Osborne e compro tudo o que encontro do Tom Stoppard, o melhor deles
todos, ou pelo menos o mais brilhante. Stoppard é tcheco de
nascimento, o que talvez explique o seu gosto em brincar com o
inglês, com aquela distante fascinação pelo idioma adotado que
também tinham Conrad e Nabokov. Às vezes é esperto demais para o
seu próprio bem e brilha no vazio, mas o que faz nunca é menos que
bem bolado. Uma das suas primeiras e mais célebres bolações foi
esse Rosencrantz e Guil denstern estão mortos,
que ele mesmo adaptou para o cinema e dirigiu.
Stoppard
pegou dois dos personagens mais insignificantes da literatura
dramática, os amigos de infância de Hamlet convocados para ajudar a
escantear o príncipe maluco que depois os sacaneia sem qualquer
escrúpulo ou sentido, e construiu em torno deles um sutil estudo
sobre o destino, o acaso, a arte — e a significância. Acompanha
suas perambulações pelos bastidores de Elsinore, enquanto eles
tentam adivinhar o drama em que se meteram no que vislumbram da peça
de Shakespeare, a “realidade” à qual vez que outra são chamados
para dizer suas falas e depois voltar para sua perplexidade. E o que
fazem dois personagens desnecessários quando não estão
participando da história que está escrita? Jogos com palavras,
trocadilhos, suposições absurdas, bobagem, filosofia. Literatura,
enfim, insignificante. São dois cérebros à deriva fora do script,
num mundo indecifrável, sem memória e sem objetivo, só neurônios
se entredevorando enquanto esperam suas deixas. No filme (isto não
tem na peça), Rosencrantz (ou é Guildenstern?) antecipa todas as
grandes descobertas da física, mas não tem o que fazer com elas. O
físico sem teoria, o corpo e suas paixões, sangue, poder, incesto e
vingança, é que darão significância a estes cérebros inocentes e
determinarão o fim dos seus personagens. Eles saem da história como
entraram, sem entender nada e sem servir para nada, salvo a ironia do
autor. Como Vladimir e Estragon de Becket, como o Gordo e o Magro , e
como você e eu, só para ficar nas duplas. O único que sabe o que
está acontecendo e como tudo acaba no filme é o diretor da trupe
teatral, pois sabe que tudo, afinal, é uma trama predeterminada.
Literalmente uma armação. Por mais longe que a sua mente vá, ela
continua dentro de um corpo e o corpo está dentro de uma peça que
acaba mal, e não há nada que você possa fazer a respeito. Isto
vale tanto para príncipes quanto para coadjuvantes.
Stoppard
aproveitou bem os recursos do cinema e encheu o filme com invenções
visuais que acompanham as invenções verbais e impedem que uma certa
chateação — inevitável, já que os banquetes intelectuais muito
fartos embotam tanto quanto uma feijoada — nos invada.
Hamlet
já foi feito de todos os jeitos, parece que existe até uma versão
para cachorros amestrados, e se você nunca viu antes aproveite esta
chance para entrar em Elsinore pela porta de serviço na companhia de
dois santos bobos e se divertir com a tragédia toda.
Luís
Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses
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