quarta-feira, 15 de abril de 2020

A trilha dos deuses


No outono do ano, quando os dias se tornavam mais curtos e o aperto da geada aparecia no ar, Caninos Brancos conseguiu a sua chance de liberdade. Durante vários dias tinha havido um grande rebuliço na vila. O acampamento de verão estava sendo desmantelado, e a tribo, com sacos e bagagens, preparava-se para partir rumo à caçada do outono. Caninos Brancos a tudo observava com olhos ansiosos, e quando as tendas começaram a vir abaixo e as canoas foram carregadas pela margem, ele compreendeu. Já as canoas partiam, e algumas tinham desaparecido pelo rio.
Deliberadamente, ele ficou para trás. Esperou a sua oportunidade de sair furtivamente do acampamento para a mata. Ali no rio de água corrente em que o gelo começava a se formar, escondeu o seu rastro. Depois arrastou-se para o coração de uma moita densa e esperou. Passou-se algum tempo, e ele dormiu intermitentemente por horas. Depois foi desperto pela voz de Castor Cinza chamando-o pelo nome. Havia outras vozes. Caninos Brancos podia escutar a índia de Castor Cinza tomando parte na busca, bem como Mit-sah, que era o filho de Castor Cinza.
Caninos Brancos tremia de medo e, embora lhe viesse o impulso de arrastar-se para fora de seu esconderijo, resistiu. Após algum tempo as vozes esmoreceram, e pouco depois ele saiu rastejando para gozar o sucesso de seu empreendimento. A escuridão baixava sobre a terra, e por um certo período ele brincou entre as árvores, sentindo prazer na sua liberdade. Depois, muito repentinamente, deu-se conta da solidão. Sentou-se para meditar, escutando o silêncio da floresta e perturbado por essa condição. Nada se movia, nem soava, parecia sinistro. Ele sentia o perigo à espreita, oculto e inimaginável. Suspeitava dos vultos gigantescos das árvores e das sombras escuras que podiam encobrir toda sorte de perigos.
Depois fazia frio. Ali não havia nenhum lado quente de uma tenda contra o qual se aconchegar. A geada estava nas suas patas, e ele não parava de levantar uma pata dianteira e depois a outra. Curvou o seu rabo peludo ao redor delas para cobri-las, e ao mesmo tempo teve uma visão. Não havia nada de estranho no que via. Na sua visão interior estava impressa uma sequência de imagens da memória. Via o acampamento de novo, as tendas e a chama das fogueiras. Escutava as vozes agudas das mulheres, os sons baixos e grosseiros dos homens, e o rosnado dos cachorros. Estava com fome, e lembrava-se dos pedaços de carne e peixe que lhe eram jogados. Ali não havia carne, nada senão um silêncio ameaçador que não era comestível.
O cativeiro o debilitara. A irresponsabilidade o enfraquecera. Tinha esquecido como se virar sozinho. A noite bocejava ao seu redor. Os seus sentidos, acostumados ao zumbido e alvoroço do acampamento, acostumados ao impacto contínuo de visões e sons, estavam agora ociosos. Não havia nada para fazer, nada para ver ou ouvir. Eles se esforçavam para captar alguma interrupção do silêncio e da imobilidade da natureza. Estavam apavorados com a inação e a sensação de algo terrível iminente.
Deu um grande pulo de susto. Algo colossal e informe estava se precipitando pelo campo de sua visão. Era a sombra de uma árvore lançada pela lua, de cuja face as nuvens tinham sido afastadas. Tranquilizado, choramingou baixinho; depois sufocou o choro por medo de que pudesse atrair a atenção dos perigos à espreita.
Uma árvore, contraindo-se no frio da noite, fez muito barulho. Estava bem acima da sua cabeça. Ele ganiu no seu susto. O pânico tomou conta de Caninos Brancos, e ele correu loucamente para a vila. Sentia um desejo irresistível da proteção e da companhia do homem. Nas suas narinas, estava o cheiro da fumaça do acampamento. Nos seus ouvidos, os sons do acampamento e os gritos ecoavam alto. Saiu da floresta e entrou na clareira iluminada pela lua, onde não havia sombras, nem escuridão. Mas nenhuma vila surgiu aos seus olhos. Ele se esquecera. A vila fora embora.
A sua corrida louca cessou abruptamente. Não havia lugar para onde fugir. Desamparado, andou furtivamente pelo acampamento desertado, cheirando os montes de lixo e os refugos dos deuses. Teria se sentido alegre com o chocalhar de pedras ao seu redor, atiradas por uma índia zangada, alegre com a mão de Castor Cinza descendo com raiva sobre ele, e teria acolhido com prazer Lip-lip e todo o bando covarde a rosnar.
Chegou ao lugar onde antes ficava a tenda de Castor Cinza. No centro do espaço que ela ocupara, ele se sentou. Apontou o focinho para a lua. Com a garganta atormentada por uns espasmos rígidos, a boca aberta, deixou borbulhar num grito de desgosto a sua solidão e medo, a sua dor por Kiche, todas as tristezas e desgraças passadas, bem como a sua apreensão pelos sofrimentos e perigos ainda por vir. Era o longo uivo do lobo, a garganta estufada de tristeza, o primeiro uivo que já emitira.
A chegada da luz do dia dissipou os seus medos, mas aumentou a sua solidão. A terra nua, que há tão pouco tempo fora tão populosa, impunha-lhe a solidão com mais força. Ele mergulhou na floresta e seguiu pela margem do rio corrente abaixo. Correu durante todo o dia. Não descansou. Parecia feito para correr eternamente. O seu corpo de ferro ignorava a fadiga. E mesmo depois que a fadiga chegou, a sua herança de resistência o retesou para um esforço ilimitado, e tornou-o capaz de impelir para frente o seu corpo cheio de queixas.
Nos lugares em que o rio volteava contra ribanceiras escarpadas, ele subia por trás das altas montanhas. Os rios e as correntes que entravam no rio principal, ele vadeava ou atravessava a nado. Muitas vezes seguiu pelo gelo da beirada que estava começando a se formar, e mais de uma vez rompeu a camada de gelo e lutou pela vida na corrente gelada. Estava sempre à procura da trilha dos deuses, naqueles pontos em que esse rastro poderia se afastar do rio e prosseguir para o interior.
Caninos Brancos era mais inteligente que a média da sua espécie, mas a sua visão mental não era ampla o bastante para abranger a outra margem do Mackenzie. E se o rastro dos deuses prosseguisse por aquele lado? Isso nunca lhe passou pela cabeça. Mais tarde, quando já fosse mais viajado, mais velho e mais sábio, mais conhecedor das trilhas e dos rios, talvez pudesse reconhecer e compreender essa possibilidade. No momento corria cego, considerando nos seus cálculos apenas a margem do Mackenzie em que se encontrava.
Correu a noite toda, tropeçando na escuridão em contratempos e obstáculos que o retardavam, mas não o desencorajavam. No meio do segundo dia, já corria sem parar por trinta horas, e o ferro da sua carne estava cedendo. Era a resistência da sua mente que o mantinha em movimento. Não comera nada em quarenta horas e estava fraco de fome. Os mergulhos repetidos na água gelada tinham igualmente produzido um efeito sobre seu corpo. O belo pelo estava enxovalhado. As almofadas largas das patas estavam feridas e sangrando. Tinha começado a mancar, e esse caminhar claudicante aumentava com as horas. Para piorar a situação, a luz do céu obscureceu e começou a nevar – uma neve fria, molhada, derretida, aderente, escorregadia, que lhe ocultava a paisagem que percorria, e que cobria as desigualdades do terreno de modo que o caminho ficava mais difícil e doloroso para as suas patas.
Castor Cinza pretendera acampar naquela noite na outra margem do Mackenzie, pois era nessa direção que estava a caça. Mas na margem do lado de cá, pouco antes do escurecer, um alce, descendo para beber água, fora espiado por Kloo-kooch, que era a índia de Castor Cinza. Ora, se o alce não tivesse vindo beber na corrente, se Mit-sah não tivesse se afastado da rota por causa da neve, se Kloo-kooch não tivesse avistado o alce, e se Castor Cinza não o tivesse matado com um tiro certeiro de seu rifle, todas as coisas subsequentes teriam ocorrido de modo diverso. Castor Cinza não teria acampado no lado de cá do Mackenzie, e Caninos Brancos teria passado por ali e seguido adiante, quer para morrer, quer para voltar a se integrar a seus irmãos e transformar-se num deles – um lobo até o fim de seus dias.
A noite caíra. A neve caía mais densa, e Caninos Brancos, choramingando baixinho enquanto tropeçava e mancava pelo caminho, encontrou um rastro fresco na neve. Tão fresco que logo soube do que se tratava. Gemendo de ansiedade, afastou-se da margem do rio e entrou no meio das árvores. Os sons do acampamento chegaram a seus ouvidos. Viu a chama do fogo, Kloo-kooch cozinhando, e Castor Cinza acocorado sobre o traseiro e mascando um naco de sebo cru. Havia carne fresca no acampamento!
Caninos Brancos esperava uma surra. Encolheu-se e eriçou um pouco o pelo diante dessa ideia. Depois voltou a seguir em frente. Sentia medo e repugnância pela surra que sabia estar à sua espera. Mas sabia, além disso, que o conforto do fogo seria seu, a proteção dos deuses, a companhia dos cachorros – essa última uma companhia de inimizade, mas ainda assim uma companhia que satisfazia suas necessidades gregárias.
Encolhendo-se e arrastando-se, aproximou-se da luz do fogo. Castor Cinza o viu e parou de mascar o seu pedaço de sebo. Caninos Brancos arrastava-se lentamente, encolhido e prostrado no aviltamento da sua degradação e submissão. Arrastou-se até Castor Cinza, cada centímetro do trajeto tornando-se mais lento e mais doloroso. Por fim deitou-se aos pés do dono, a cujo domínio agora se rendia, voluntariamente, de corpo e alma. Por sua própria escolha, veio sentar-se perto do fogo do homem e obedecer ao seu comando. Caninos Brancos tremia, esperando o castigo cair sobre o seu corpo. Houve um movimento na mão acima da sua cabeça. Ele se encolheu involuntariamente sob o golpe esperado. Mas esse não veio. Lançou um olhar furtivo para cima. Castor Cinza estava quebrando o pedaço de sebo pela metade! Castor Cinza estava lhe oferecendo um pedaço de sebo! Muito de leve e com um pouco de suspeitas, ele primeiro cheirou o sebo e depois começou a comê-lo. Castor Cinza mandou que trouxessem carne para Caninos Brancos, e defendeu-o dos outros cachorros enquanto ele comia. Depois disso, grato e contente, Caninos Brancos deitou-se aos pés de Castor Cinza, fitando o fogo que o aquecia, piscando e cochilando, seguro por saber que a manhã o encontraria, não errando desesperado pela floresta sombria, mas no acampamento dos animais-homens, com os deuses a quem se entregara e dos quais agora dependia.
Jack London, in Caninos Brancos

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