quinta-feira, 9 de abril de 2020

A escola é um meio para querermos o que não temos

Meus senhores e minhas senhoras:

Falei da carga de que nos devemos desembaraçar para entrarmos a corpo inteiro na modernidade. Mas a modernidade não é uma porta apenas feita pelos outros. Nós somos também carpinteiros dessa construção e só nos interessa entrar numa modernidade de que sejamos também construtores.
A minha mensagem é simples: mais do que uma geração tecnicamente capaz, nós necessitamos de uma geração capaz de questionar a técnica. Uma juventude capaz de repensar o país e o mundo. Mais do que gente preparada para dar respostas, necessitamos de capacidade para fazer perguntas. Moçambique não precisa apenas de caminhar. Necessita de descobrir o seu próprio caminho num tempo enevoado e num mundo sem rumo. A bússola dos outros não serve, o mapa dos outros não ajuda. Necessitamos de inventar os nossos próprios pontos cardeais. Interessa-nos um passado que não esteja carregado de preconceitos, interessa-nos um futuro que não nos venha desenhado como uma receita financeira.
A Universidade deve ser um centro de debate, uma fábrica de cidadania ativa, uma forja de inquietações solidárias e de rebeldia construtiva. Não podemos treinar jovens profissionais de sucesso num oceano de miséria. A Universidade não pode aceitar ser reprodutora da injustiça e da desigualdade. Estamos lidando com jovens e com aquilo que deve ser um pensamento jovem, fértil e produtivo. Esse pensamento não se encomenda, não nasce sozinho. Nasce do debate, da pesquisa inovadora, da informação aberta e atenta ao que de melhor está surgindo em África e no mundo.
A questão é esta: fala-se muito dos jovens. Fala-se pouco com os jovens. Ou melhor, fala-se com eles quando se convertem num problema. A juventude vive essa condição ambígua, dançando entre a visão romantizada (ela é a seiva da Nação) e uma condição maligna, um ninho de riscos e preocupações (a Aids, a droga, o desemprego).

Senhores e senhoras:

Não foi apenas a Zâmbia a ver na educação aquilo que o náufrago vê num barco salva-vidas. Nós também depositamos os nossos sonhos nessa conta.
Numa sessão pública decorrida no ano passado em Maputo um já idoso nacionalista disse, com verdade e com coragem, o que já muitos de nós sabíamos. Confessou que ele mesmo e muitos dos que, nos anos 1960, fugiam para a Frelimo não eram apenas motivados pela dedicação a uma causa independentista. Arriscaram-se e saltaram a fronteira do medo para terem possibilidade de estudar. O fascínio pela educação como um passaporte para uma vida melhor estava presente num universo em que quase ninguém podia estudar. Essa restrição era comum a toda a África. Até 1940, o número de africanos que frequentavam escolas secundárias não chegava a 11 mil. Hoje, a situação melhorou e esse número foi multiplicado milhares e milhares de vezes. O continente investiu na criação de novas capacidades. E esse investimento produziu, sem dúvida, resultados importantes.
Aos poucos torna-se claro, porém, que mais quadros técnicos não resolvem, só por si, a miséria de uma nação. Se um país não possuir estratégias viradas para a produção de soluções profundas, então todo esse investimento não produzirá a desejada diferença. Se as capacidades de uma nação estiverem viradas para o enriquecimento rápido de uma pequena elite, então de pouco valerá haver mais quadros técnicos.
A escola é um meio para querermos o que não temos. A vida, depois, ensina-nos a termos aquilo que não queremos. Entre a escola e a vida resta-nos sermos verdadeiros e confessar aos mais jovens que nós também não sabemos e que, nós, professores e pais, também estamos à procura de respostas.
Com o novo governo ressurgiu o combate pela autoestima. Isso é correto e é oportuno. Temos de gostar de nós mesmos, temos de acreditar nas nossas capacidades. Mas esse apelo ao amor-próprio não pode ser fundado numa vaidade vazia, numa espécie de narcisismo fútil e sem fundamento. Alguns acreditam que vamos resgatar esse orgulho na visitação do passado. É verdade que é preciso sentir que temos raízes e que essas raízes nos honram. Mas a autoestima não pode ser construída apenas de materiais do passado.
Na realidade, só existe um modo de nos valorizarmos: é pelo trabalho, pela obra que formos capazes de fazer. É preciso que saibamos aceitar esta condição sem complexos e sem vergonha: somos pobres. Ou melhor, fomos empobrecidos pela História. Mas nós fizemos parte dessa História, fomos também empobrecidos por nós próprios. A razão dos nossos atuais e futuros fracassos mora também dentro de nós.
Mas a força para superarmos a nossa condição histórica também reside dentro de nós. Saberemos, como já soubemos antes, reconquistar a certeza de que somos produtores do nosso destino. Teremos mais e mais orgulho em sermos quem somos: moçambicanos construtores de um tempo e de um lugar onde nascemos todos os dias.
É por isso que vale a pena aceitarmos descalçar não só os sete, mas todos os sapatos que atrasam a nossa marcha coletiva. Porque a verdade é uma: antes vale andar descalço do que tropeçar com os sapatos dos outros.
Mia Couto, in Os sete sapatos sujos (Oração de Sapiência no ISCTEM, Maputo, 2006)

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