Meus
senhores e minhas senhoras:
Falei
da carga de que nos devemos desembaraçar para entrarmos a corpo
inteiro na modernidade. Mas a modernidade não é uma porta apenas
feita pelos outros. Nós somos também carpinteiros dessa construção
e só nos interessa entrar numa modernidade de que sejamos também
construtores.
A
minha mensagem é simples: mais do que uma geração tecnicamente
capaz, nós necessitamos de uma geração capaz de questionar a
técnica. Uma juventude capaz de repensar o país e o mundo. Mais do
que gente preparada para dar respostas, necessitamos de capacidade
para fazer perguntas. Moçambique não precisa apenas de caminhar.
Necessita de descobrir o seu próprio caminho num tempo enevoado e
num mundo sem rumo. A bússola dos outros não serve, o mapa dos
outros não ajuda. Necessitamos de inventar os nossos próprios
pontos cardeais. Interessa-nos um passado que não esteja carregado
de preconceitos, interessa-nos um futuro que não nos venha desenhado
como uma receita financeira.
A
Universidade deve ser um centro de debate, uma fábrica de cidadania
ativa, uma forja de inquietações solidárias e de rebeldia
construtiva. Não podemos treinar jovens profissionais de sucesso num
oceano de miséria. A Universidade não pode aceitar ser reprodutora
da injustiça e da desigualdade. Estamos lidando com jovens e com
aquilo que deve ser um pensamento jovem, fértil e produtivo. Esse
pensamento não se encomenda, não nasce sozinho. Nasce do debate, da
pesquisa inovadora, da informação aberta e atenta ao que de melhor
está surgindo em África e no mundo.
A
questão é esta: fala-se muito dos jovens. Fala-se pouco com os
jovens. Ou melhor, fala-se com eles quando se convertem num problema.
A juventude vive essa condição ambígua, dançando entre a visão
romantizada (ela é a seiva da Nação) e uma condição maligna, um
ninho de riscos e preocupações (a Aids, a droga, o desemprego).
Senhores
e senhoras:
Não
foi apenas a Zâmbia a ver na educação aquilo que o náufrago vê
num barco salva-vidas. Nós também depositamos os nossos sonhos
nessa conta.
Numa
sessão pública decorrida no ano passado em Maputo um já idoso
nacionalista disse, com verdade e com coragem, o que já muitos de
nós sabíamos. Confessou que ele mesmo e muitos dos que, nos anos
1960, fugiam para a Frelimo não eram apenas motivados pela dedicação
a uma causa independentista. Arriscaram-se e saltaram a fronteira do
medo para terem possibilidade de estudar. O fascínio pela educação
como um passaporte para uma vida melhor estava presente num universo
em que quase ninguém podia estudar. Essa restrição era comum a
toda a África. Até 1940, o número de africanos que frequentavam
escolas secundárias não chegava a 11 mil. Hoje, a situação
melhorou e esse número foi multiplicado milhares e milhares de
vezes. O continente investiu na criação de novas capacidades. E
esse investimento produziu, sem dúvida, resultados importantes.
Aos
poucos torna-se claro, porém, que mais quadros técnicos não
resolvem, só por si, a miséria de uma nação. Se um país não
possuir estratégias viradas para a produção de soluções
profundas, então todo esse investimento não produzirá a desejada
diferença. Se as capacidades de uma nação estiverem viradas para o
enriquecimento rápido de uma pequena elite, então de pouco valerá
haver mais quadros técnicos.
A
escola é um meio para querermos o que não temos. A vida, depois,
ensina-nos a termos aquilo que não queremos. Entre a escola e a vida
resta-nos sermos verdadeiros e confessar aos mais jovens que nós
também não sabemos e que, nós, professores e pais, também estamos
à procura de respostas.
Com
o novo governo ressurgiu o combate pela autoestima. Isso é correto e
é oportuno. Temos de gostar de nós mesmos, temos de acreditar nas
nossas capacidades. Mas esse apelo ao amor-próprio não pode ser
fundado numa vaidade vazia, numa espécie de narcisismo fútil e sem
fundamento. Alguns acreditam que vamos resgatar esse orgulho na
visitação do passado. É verdade que é preciso sentir que temos
raízes e que essas raízes nos honram. Mas a autoestima não pode
ser construída apenas de materiais do passado.
Na
realidade, só existe um modo de nos valorizarmos: é pelo trabalho,
pela obra que formos capazes de fazer. É preciso que saibamos
aceitar esta condição sem complexos e sem vergonha: somos pobres.
Ou melhor, fomos empobrecidos pela História. Mas nós fizemos parte
dessa História, fomos também empobrecidos por nós próprios. A
razão dos nossos atuais e futuros fracassos mora também dentro de
nós.
Mas
a força para superarmos a nossa condição histórica também reside
dentro de nós. Saberemos, como já soubemos antes, reconquistar a
certeza de que somos produtores do nosso destino. Teremos mais e mais
orgulho em sermos quem somos: moçambicanos construtores de um tempo
e de um lugar onde nascemos todos os dias.
É
por isso que vale a pena aceitarmos descalçar não só os sete, mas
todos os sapatos que atrasam a nossa marcha coletiva. Porque a
verdade é uma: antes vale andar descalço do que tropeçar com os
sapatos dos outros.
Mia
Couto, in Os sete sapatos sujos (Oração de Sapiência no
ISCTEM, Maputo, 2006)
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