“Ninguém
dirige aquele
que
Deus extravia”
“Hosana!
eis chegado o macho!
Narciso!
sempre remoto e frágil,
rebento
do anarquismo!”
E
quando cheguei à tarde na minha casa lá no 27, ela já me aguardava
andando pelo gramado, veio me abrir o portão pra que eu entrasse com
o carro, e logo que saí da garagem subimos juntos a escada pro
terraço, e assim que entramos nele abri as cortinas do centro e nos
sentamos nas cadeiras de vime, ficando com nossos olhos voltados pro
alto do lado oposto, lá onde o sol ia se pondo, e estávamos os dois
em silêncio quando ela me perguntou “que que você tem?”, mas
eu, muito disperso, continuei distante e quieto,
o pensamento solto na vermelhidão lá do poente, e só foi mesmo
pela insistência da pergunta que respondi “você já jantou?” e
como ela dissesse “mais tarde” eu então me levantei e fui sem
pressa pra cozinha (ela veio atrás), tirei um tomate da geladeira,
fui até a pia e passei uma água nele, depois fui pegar o saleiro do
armário me sentando em seguida ali na mesa (ela do outro lado
acompanhava cada movimento que eu fazia, embora eu displicente
fingisse que não percebia), e foi sempre na mira dos olhos dela que
comecei a comer o tomate, salgando pouco a pouco o que ia me restando
na mão, fazendo um empenho simulado na mordida pra mostrar meus
dentes fortes como os dentes de um cavalo, sabendo que seus olhos não
desgrudavam da minha boca, e sabendo que por baixo do seu silêncio
ela se contorcia de impaciência,
e sabendo acima de tudo que mais eu lhe apetecia quanto mais
indiferente eu lhe parecesse, eu só sei que quando acabei de comer o
tomate eu a deixei ali na cozinha e fui pegar o rádio que estava na
estante lá da sala, e sem voltar pra cozinha a gente se encontrou de
novo no corredor, e sem dizer uma palavra entramos quase juntos na
penumbra do quarto.
Raduan
Nassar,
in
Um copo de cólera
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