terça-feira, 21 de abril de 2020

A aliança



Quando dezembro já ia bem adiantado, Castor Cinza partiu numa viagem Mackenzie acima. Mit-sah e Kloo-kooch foram junto. Um dos trenós ele próprio dirigia, puxado por cachorros que tinha negociado ou tomado de empréstimo. Um segundo trenó menor era dirigido por Mit-sah, e a esse foi arreada uma matilha de filhotes. Era mais um brinquedo do que qualquer outra coisa, mas constituía o prazer de Mit-sah, que tinha a sensação de estar começando a fazer o trabalho de um homem no mundo. Além disso, estava aprendendo a dirigir e a treinar os cachorros, enquanto os filhotes eram ensinados a suportar os arreios. Ainda por cima, o trenó prestava algum serviço, pois carregava quase noventa quilos de equipamento e alimentos.
Caninos Brancos já tinha visto os cachorros do acampamento labutando nos arreios, de modo que não se ressentiu muito quando lhe puseram os arreios pela primeira vez. Ao redor de seu pescoço foi colocada uma coleira estofada com musgo, que era ligada por dois tirantes a uma cinta que passava ao redor de seu peito e sobre o seu lombo. Era nessa cinta que estava amarrada a longa corda pela qual ele puxava o trenó.
Havia sete filhotes na matilha. Os outros tinham nascido antes e estavam com nove e dez meses de idade, enquanto Caninos Brancos tinha apenas oito meses. Cada cachorro era amarrado ao trenó por uma única corda. Nenhuma corda era do mesmo tamanho, e a diferença em comprimento entre duas cordas quaisquer era pelo menos a do corpo de um cachorro. Cada corda ficava presa a uma argola na parte dianteira do trenó. O próprio trenó não tinha patins, era um tobogã de casca de bétula, com a extremidade fronteira virada para cima para sulcar a neve. Essa construção permitia que o peso e a carga do trenó fossem distribuídos sobre a maior superfície de neve, pois a neve era pó de cristal e muito macia. Observando o mesmo princípio da distribuição mais ampla de peso, os cachorros nas pontas de suas cordas irradiavam como um leque da parte dianteira do trenó, de modo que nenhum cachorro atropelava os passos dos outros.
Havia, além disso, outra virtude na formação em leque. As cordas de comprimento variável impediam que os cachorros atacassem por trás aqueles que corriam na frente. Para um cachorro atacar o outro, teria de se virar contra um que estivesse numa corda mais curta. Nesse caso, se veria face a face com o cachorro atacado, mas também tendo de enfrentar o chicote do condutor. Porém, a virtude mais peculiar de todas residia no fato de que o cachorro que procurava atacar o outro na sua frente devia puxar o trenó com mais força, e quanto mais rápido corria o trenó, mais rápido o cachorro atacado podia fugir. Assim o cachorro de trás nunca conseguia alcançar o da frente. Quanto mais rápido corria, mais rápido corria o perseguido, e mais rápido corriam todos os cachorros. Incidentalmente, o trenó deslizava mais rápido, e assim, por uma astúcia indireta, o homem aumentava o seu domínio sobre os animais.
Mit-sah se parecia com o pai, de quem possuía grande parte da sabedoria cinzenta. No passado, tinha observado a perseguição de Lip-lip contra Caninos Brancos, mas naquela época Lip-lip pertencia a outro homem, e Mit-sah nunca tinha ousado mais do que atirar disfarçadamente uma pedra ocasional contra ele. Mas agora Lip-lip era o seu cachorro, e ele passou a se vingar, colocando-o na ponta da corda mais longa. Isso tornava Lip-lip o líder, o que era aparentemente uma honra, mas na realidade lhe roubava toda a honra, pois, em vez de ser o valentão e o senhor do bando, ele agora se via odiado e perseguido pelo bando.
Como ele corria na ponta da corda mais longa, os cachorros sempre tinham a visão de Lip-lip correndo na sua frente. Tudo o que viam dele era o rabo peludo e as patas traseiras em fuga – uma visão muito menos feroz e amedrontadora do que o pelo eriçado na cabeça e as presas brilhantes. Além disso, conforme a maneira de pensar dos cachorros, a visão dele correndo à frente provocava o desejo de persegui-lo e o sentimento de que ele fugia do bando.
No momento em que partia o trenó, o bando saía atrás de Lip-lip numa perseguição que se estendia por todo o dia. A princípio ele se mostrara propenso a se virar contra os perseguidores, cioso da sua dignidade e cheio de raiva; mas nessas horas, Mit-sah lançava-lhe no focinho o chicote picante de nove metros feito de tripa de caribu, compelindo-o a virar as costas e correr adiante. Lip-lip podia enfrentar o bando, mas não conseguia enfrentar aquele chicote, e só lhe restava manter esticada sua longa corda e os flancos bem à frente dos dentes dos companheiros.
Mas uma astúcia ainda maior estava à espreita nos recessos da mente indígena. Para dar motivos a uma perseguição interminável do líder, Mit-sah o favorecia mais que aos outros cachorros. Esses favores provocavam no bando inveja e ódio. Na sua presença, Mit-sah dava carne a Lip-lip, e só a ele. Isso enlouquecia os outros. Eles se enfureciam ao redor, mal e mal fora do alcance dos golpes de chicote, enquanto Lip-lip devorava a carne e Mit-sah o protegia. E quando não havia carne para dar, Mit-sah mantinha o bando a distância e fazia de conta que dava carne a Lip-lip.
Caninos Brancos trabalhava com vontade. Já tinha percorrido uma distância maior que os outros cachorros na entrega de si mesmo à regra dos deuses, e aprendera mais cabalmente a inutilidade de se opor à sua vontade. Além disso, a perseguição que sofrera do bando tornara os cachorros menos importantes no seu esquema das coisas, e o homem mais valioso. Ele não aprendera a depender da companhia da sua espécie. E mais, Kiche estava quase esquecida, e a principal vazão de expressão que lhe restava estava na lealdade que oferecia aos deuses que aceitara como senhores. Assim ele trabalhava duro, aprendia a disciplina e era obediente. A lealdade e a boa vontade caracterizavam a sua labuta. Esses são traços essenciais do lobo e do cão selvagem quando domesticados, e esses traços Caninos Brancos possuía em medida inusitada.
Havia uma união entre Caninos Brancos e os outros cachorros, mas era de guerra e inimizade. Ele nunca aprendera a brincar com os outros. Sabia apenas como brigar, e brigar era o que fazia, devolvendo-lhes centuplicadas as mordidas e as cutiladas que lhe tinham dado nos dias em que Lip-lip era o líder do bando. Mas Lip-lip já não era líder – exceto quando corria diante de seus companheiros na ponta da sua corda, o trenó atrás saltando pelo caminho. No acampamento, ele mantinha-se perto de Mit-sah, Castor Cinza ou Kloo-kooch. Não se arriscava a se afastar dos deuses, pois agora as presas de todos os cachorros estavam contra ele, e Lip-lip provava até a última gota a perseguição que Caninos Brancos experimentara.
Com a derrubada de Lip-lip, Caninos Brancos poderia ter se tornado o líder do bando. Mas era demasiado soturno e solitário para isso. Ele meramente retalhava seus companheiros de matilha. Quanto ao mais, ignorava-os. Eles saíam do seu caminho, quando ele aparecia, nem o mais audacioso deles ousava lhe roubar o pedaço de carne. Ao contrário, devoravam a sua porção apressadamente, por medo de que ele lhes tirasse o pedaço de carne. Caninos Brancos conhecia bem a lei: oprimir os fracos e obedecer aos fortes. Comia a sua porção o mais rápido possível. E então ai do cachorro que ainda não tivesse terminado a sua! Um rosnado e um lampejo das presas, e aquele cachorro ia chorar a sua indignação às estrelas desconsoladas, enquanto Caninos Brancos acabava a sua porção para ele.
De vez em quando, entretanto, um ou outro cachorro se inflamava de revolta, para ser logo dominado. Assim Caninos Brancos se exercitava. Era cioso do isolamento em que se mantinha no meio do bando, e lutava frequentemente para conservá-lo. Mas essas lutas eram de curta duração. Ele era rápido demais para os outros. Eles se viam com feridas abertas e sangrando, antes que soubessem o que tinha acontecido, recebiam vergastadas quase antes de começarem a brigar.
Tão rígida quanto a disciplina dos trenós era a disciplina mantida por Caninos Brancos entre seus companheiros. Nunca lhes permitia nenhuma liberdade de ação. Obrigava-os a observar um respeito constante. Podiam fazer o que quisessem entre eles. Isso não lhe interessava. Mas interessava-lhe que o deixassem em paz no seu isolamento, saíssem do seu caminho quando decidia caminhar na sua companhia, e sempre reconhecessem o seu domínio sobre eles. Uma sugestão de patas enrijecidas da parte dos companheiros, um lábio arreganhado ou um pelo eriçado, e ele saltava sobre eles, impiedoso e cruel, convencendo-os rapidamente do erro da sua conduta.
Era um tirano monstruoso. O seu domínio era rígido como aço. Oprimia os fracos com vingança. Não era por nada que fora exposto à luta cruel pela vida nos seus dias de filhote, quando a mãe e ele, sozinhos e sem ajuda, cuidavam de si e sobreviviam no ambiente feroz da Floresta. E não era por nada que aprendera a caminhar suavemente, quando a força superior passava. Ele oprimia os fracos, mas respeitava os fortes. E, ao longo da grande viagem com Castor Cinza, caminhava de um modo realmente suave entre os cachorros crescidos nos acampamentos dos estranhos animais-homens que tinha encontrado.
Os meses se passavam. Ainda continuava a viagem de Castor Cinza. A força de Caninos Brancos se desenvolvia pelas longas horas na trilha e pela constante labuta no trenó, e seu desenvolvimento mental parecia estar quase completo. Ele começara a conhecer bem minuciosamente o mundo em que vivia. A sua perspectiva era sombria e materialista. O mundo que via era um mundo feroz e brutal, um mundo sem afetos, um mundo em que não existiam as carícias, a afeição e os encantos radiantes do espírito.
Ele não tinha afeto por Castor Cinza. Certo, era um deus, mas um deus muito selvagem. Caninos Brancos sentia-se feliz reconhecendo a autoridade de Castor Cinza, mas era uma autoridade baseada na inteligência superior e na força bruta. Havia algo na fibra do ser de Caninos Brancos que tornava essa autoridade um objeto de desejo, senão ele não teria voltado da Floresta para oferecer a sua lealdade ao animal-homem. Havia regiões profundas na sua natureza que nunca tinham sido sondadas. Uma palavra bondosa, uma carícia da mão, por parte de Castor Cinza, poderia ter sondado essas profundezas, mas Castor Cinza não acariciava, nem falava palavras bondosas. Não era o seu jeito de ser. A sua primazia era selvagem, e ele governava selvagemente, fazendo justiça com um macete, punindo a transgressão com a dor de um golpe, e recompensando o mérito com o golpe evitado, jamais com a bondade.
Assim Caninos Brancos nada sabia do céu que a mão de um homem podia conter para ele. Além disso, não gostava das mãos dos animais-homens. Suspeitava delas. Era verdade que elas às vezes lhe davam pedaços de carne, mas o mais frequente era que infligissem dor. As mãos eram coisas das quais devia manter-se longe. Elas atiravam pedras, brandiam paus e chicotes, davam bofetadas e tapas e, quando o tocavam, tinham o intuito de machucá-lo com beliscões, torções e puxões. Nas vilas estranhas, descobrira as mãos das crianças e aprendera que elas eram cruéis no seu desejo de machucar. Além disso, certa vez um indiozinho de caminhar ainda vacilante quase lhe arrancara um olho. Por causa dessas experiências, ele suspeitava de todas as crianças. Não conseguia tolerá-las. Quando elas se aproximavam com suas mãos sinistras, ele se levantava.
Foi numa vila no Lago do Grande Escravo que, no decurso do seu ressentimento contra o mal das mãos dos animais-homens, ele veio a modificar a lei que tinha aprendido com Castor Cinza, a de que o crime imperdoável era morder um dos deuses. Nessa vila, segundo o costume de todos os cachorros em todas as vilas, Caninos Brancos saiu para roubar comida. Um menino estava cortando carne de alce congelada com um machado, e as lascas voavam na neve. Deslizando em busca de carne, Caninos Brancos parou e começou a comer as lascas. Observou o menino pôr o machado no chão e pegar um macete forte. Caninos Brancos pulou para longe, bem a tempo de escapar do golpe que já descia. O menino o perseguiu, e ele, um estranho na vila, fugiu entre duas tendas, para se ver acuado contra uma ribanceira elevada.
Não havia saída para Caninos Brancos. O único caminho de fuga era entre as duas tendas, e ali o menino o vigiava. Segurando o macete preparado para atacar, aproximou-se da vítima encurralada. Caninos Brancos estava furioso. Enfrentou o menino, o pelo eriçado e rosnando, seu senso de justiça ultrajado. Conhecia a lei do saque. Todos os restos de carne, como as lascas congeladas, pertenciam ao cachorro que os encontrasse. Ele não fizera nada de errado, não violara nenhuma lei, mas ali estava aquele menino preparado para lhe dar uma surra. Caninos Brancos mal soube o que aconteceu. Agiu num ímpeto de raiva. E agiu tão rapidamente que o menino também não entendeu o que acontecia. O que o menino percebeu foi apenas que de alguma maneira inexplicável fora derrubado na neve, e que a mão agarrada ao macete fora rasgada pelos dentes de Caninos Brancos.
Mas Caninos Brancos sabia que tinha violado a lei dos deuses. Enfiara os dentes na carne sagrada de um deles, e só podia esperar um castigo muito terrível. Fugiu para perto de Castor Cinza, atrás de cujas pernas protetoras se encolheu, quando o menino mordido e a família do menino apareceram exigindo vingança. Mas eles foram embora sem satisfazer seu desejo de vingança. Castor Cinza defendeu Caninos Brancos. E Mit-sah e Kloo-kooch também o defenderam. Escutando a guerra de palavras e observando os gestos zangados, Caninos Brancos entendeu que seu ato era justificado. E assim veio a aprender que havia deuses e deuses. Havia os seus deuses, e havia outros deuses, e entre eles havia uma diferença. Justiça ou injustiça, era tudo o mesmo, ele devia aceitar tudo das mãos de seus deuses. Mas não era obrigado a aceitar injustiça dos outros deuses. Era privilégio seu manifestar a sua indignação com os dentes. E essa também era uma lei dos deuses.
Antes do fim do dia, Caninos Brancos aprenderia mais sobre essa lei. Mit-sah, sozinho, colhendo gravetos para a fogueira na floresta, encontrou o menino que fora mordido. Com ele estavam outros meninos. Trocaram palavras acaloradas. Depois todos os meninos atacaram Mit-sah. Estava sendo duro para ele. Os golpes choviam de todos os lados. Caninos Brancos primeiro observou. Era uma briga dos deuses, não era assunto seu. Depois compreendeu que era Mit-sah, um de seus deuses particulares, que estava sendo maltratado. Não foi um movimento raciocinado que levou Caninos Brancos a fazer o que então fez. Um ímpeto louco de raiva o lançou entre os combatentes. Cinco minutos mais tarde, o cenário estava coberto de meninos em fuga, muitos dos quais pingavam sangue sobre a neve, um sinal de que os dentes de Caninos Brancos não tinham estado ociosos. Quando Mit-sah contou a sua história no acampamento, Castor Cinza mandou que dessem carne a Caninos Brancos. Mandou que dessem muita carne, e Caninos Brancos, saciado e sonolento perto do fogo, compreendeu que a lei fora confirmada.
Foi na linha dessas experiências que Caninos Brancos veio a aprender a lei da propriedade e o dever da defesa da propriedade. Da proteção do corpo de seu deus à proteção das posses de seu deus foi um passo, e esse passo ele deu. O que era do seu deus devia ser defendido contra o mundo – mesmo ao preço de morder outros deuses. Esse não só era um ato de natureza sacrílega, mas carregado de perigo. Os deuses eram todo-poderosos, e um cachorro não era páreo para eles; ainda assim Caninos Brancos aprendeu a enfrentá-los, ferozmente beligerante e destemido. O dever elevava-se acima do medo, e os deuses ladrões aprenderam a deixar a propriedade de Castor Cinza em paz.
Um dado a esse respeito Caninos Brancos aprendeu rapidamente, e foi que um deus ladrão era normalmente um deus covarde e inclinado a fugir ao som do alarme. Além disso, aprendeu que se passava um tempo muito curto entre o barulho do alarme e a vinda de Castor Cinza para ajudá-lo. Aprendeu que não era medo dele o que fazia o ladrão se afastar, mas medo de Castor Cinza. Caninos Brancos não dava o alarme latindo. Ele jamais latia. Seu método era lançar-se contra o intruso e afundar os dentes onde pudesse. Como era soturno e solitário, não tendo relação com os outros cachorros, estava extraordinariamente preparado para guardar a propriedade de seu mestre, e nisso era encorajado e treinado por Castor Cinza. Um dos resultados dessa prática foi tornar Caninos Brancos mais feroz e indomável, e ainda mais solitário.
Os meses se passavam, tornando cada vez mais forte a aliança entre o cão e o homem. Era o antigo pacto que o primeiro lobo que saiu da Floresta firmou com o homem. E, como todos os sucessivos lobos e cães selvagens que tinham agido de maneira semelhante, Caninos Brancos elaborou o pacto para si mesmo. Os termos eram simples. Pela posse de um deus de carne e osso, ele dava em troca a sua liberdade. Comida e fogo, proteção e companhia, eram algumas das coisas que recebia do deus. Em troca, guardava a propriedade do deus, defendia o seu corpo, trabalhava para ele e o obedecia.
A posse de um deus implicava serviço. O de Caninos Brancos era um serviço de dever e reverência, mas não de amor. Ele não sabia o que era amor. Não tinha experiência do amor. Kiche era uma lembrança remota. Além disso, ele não só abandonara a Floresta e a sua espécie quando se entregara ao homem, como os termos do pacto eram tais que, se voltasse a encontrar Kiche algum dia, não abandonaria o seu deus para acompanhá-la. A sua lealdade para com o homem parecia de certa forma uma lei maior dentro de si do que o amor pela liberdade, espécie e família.
Jack London, in Caninos Brancos

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