domingo, 1 de março de 2020

Um caminho na selva

O grande patrão, o dono da selva, era natural de Santiago, e eu não o conhecia. Era anunciada e temida sua visita para depois que começasse o verão. Chamava-se Pepe Rodríguez. Tive informação de que era um capitalista moderno, dono de teares e de outras fábricas, homem industrioso, ágil e eletrizante. Além disso era um reacionário convicto, membro proeminente do partido mais direitista do Chile. Como eu estava em trânsito por seus domínios sem que ele o soubesse, esses seus aspectos resultavam positivos para meu episódio. Ninguém iria me procurar ali. As autoridades civis e policiais atuavam sempre como vassalos do grande homem de cuja hospitalidade eu estava gozando. Parecia impossível que eu topasse com ele alguma vez.
Era iminente a partida. Estavam por começar as nevadas na cordilheira e não se brinca com os Andes. O caminho era estudado diariamente por meus amigos. Caminhos era uma maneira de dizer. Na realidade era uma exploração através de pegadas que o húmus e a neve tinham desmanchado faz tempo. A espera fazia-se angustiosa para mim. Ademais, meus companheiros do lado argentino já estariam à minha procura.
Quando tudo parecia pronto, Jorge Bellet, capitão-geral das madeiras, me disse que havia uma novidade. O grande patrão anunciava sua visita, comunicou-me contrafeito. Chegaria dentro de dois dias.
Fiquei desconcertado. Os preparativos não estavam prontos ainda. O mais perigoso para minha situação, depois de longo trabalho, era que o proprietário soubesse que eu me refugiara em suas próprias terras. Sabia-se que era amigo íntimo de meu perseguidor González Videla. E sabia-se que González Videla tinha posto minha cabeça a prêmio. Que fazer?
Bellet foi, desde o primeiro momento, partidário de falar cara a cara com Rodríguez, o proprietário.
Conheço-o muito bem – disse. – É muito homem e jamais te delatará.
Eu discordava. As instruções do partido eram de segredo absoluto e Bellet pretendia violar essas instruções. Foi o que lhe disse. Discutimos acaloradamente. E no transcurso da discussão política decidimos que eu fosse viver na casa de um cacique mapuche, uma cabana encravada ao pé mesmo da selva.
Mudei-me para a cabana e ali minha situação tornou-se muito precária. Tanto que finalmente, depois de muitas objeções, aceitei encontrar-me com Pepe Rodríguez, o proprietário da empresa, das serras e dos bosques. Fixamos um ponto neutro que não fosse sua casa nem a cabana do cacique. Ao cair da tarde vi avançar um jipe. Dele desceu, junto a meu amigo Bellet, um homem maduro mas ainda moço, de cabelo grisalho e rosto enérgico. Suas primeiras palavras foram para dizer-me que desde esse instante ele assumia a responsabilidade de me custodiar. Em tais condições ninguém se atreveria a atentar contra a minha segurança.
Falamos sem grande cordialidade mas o homem foi me conquistando. Convidei-o, porque fazia muito frio, para a casa do cacique. Ali continuou nossa conversa. Por ordem sua apareceram uma garrafa de champanha, outra de uísque e gelo.
No quarto copo de uísque discutíamos em altas vozes. O homem era absolutista de convicções. Dizia coisas interessantes e estava inteirado de tudo, mas seus apartes insolentes deixavam-me furioso. Ambos dávamos grandes socos sobre a mesa do cacique até concluir em santa paz aquela garrafa.
Nossa amizade continuou por muito tempo. Uma de suas qualidades era a franqueza irredutível de homem acostumado a ter a faca e o queijo na mão. Mas também sabia ler minha poesia de forma extraordinária, com uma entonação tão inteligente e varonil que meus próprios versos pareciam-me nascer de novo.
Rodríguez voltou à capital, às suas empresas. Teve um último gesto. Chamou seus subordinados junto de mim e com característica voz de comando disse-lhes:
Se o senhor Legarreta, de hoje a uma semana, tiver dificuldade para seguir para a Argentina pelo caminho dos contrabandistas, vocês abrirão outro caminho que chegue até a fronteira. Parem todos os trabalhos da madeira e ponham-se todos a abrir esse caminho. Estas são minhas ordens.
Legarreta era meu nome nesse momento.
Pepe Rodríguez, aquele homem autoritário e feudal, morreu dois anos depois, empobrecido e perseguido. Culparam-no de um vultoso contrabando. Passou muitos meses na prisão. Deve ter sido um sofrimento indizível para um temperamento tão arrogante.
Nunca soube com certeza se era culpado ou inocente do delito de que era acusado. Soube é que nossa oligarquia, que antes se desmanchava por um convite do esplêndido Rodríguez, abandonou-o logo que o viu processado e arrasado.
No que me diz respeito, continuo a seu lado sem que se possa apagar de minha memória. Pepe Rodríguez foi para mim um pequeno imperador que ordenou abrir sessenta quilômetros de caminho na selva virgem para que um poeta alcançasse a liberdade.
Pablo Neruda, in Confesso que vivi

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