terça-feira, 3 de março de 2020

O filhote cinza

Ele era diferente dos irmãos e irmãs. O pelo dos outros já traía o matiz avermelhado herdado da mãe, a loba, enquanto apenas ele, nesse particular, puxara ao pai. Era o único filhote cinza da ninhada. Tinha se reproduzido fiel à pura estirpe dos lobos – na verdade, ele se reproduzira fiel, fisicamente, ao velho Caolho, com uma exceção apenas: ele tinha os dois olhos para o único olho do pai.
Os olhos do filhote cinza não estavam abertos há muito tempo, mas ele já podia ver com clareza. E, enquanto os olhos ainda estavam fechados, ele tinha sentido, experimentado o gosto e o cheiro do ambiente. Conhecia os dois irmãos e as duas irmãs muito bem. Tinha começado a brincar com eles de um modo fraco e desajeitado, e até a brigar, a pequena garganta vibrando com um estranho barulho áspero (o precursor do grunhido), enquanto ele se deixava dominar pela paixão. E muito antes de os olhos abrirem, ele aprendera pelo toque, gosto e cheiro a conhecer a mãe – uma fonte de calor, alimento líquido e ternura. Ela possuía uma língua suave e acariciadora que o acalmava, quando ela a passava sobre o seu corpinho macio, e que o impelia a se aconchegar contra a loba e cochilar até dormir.
A maior parte do primeiro mês da sua vida fora passada dormindo, mas agora ele podia ver com muita clareza, ficava acordado por períodos mais longos e começava a conhecer o seu mundo muito bem. Era um mundo sombrio, mas ele não sabia disso, pois não conhecia outro mundo. Era pouco iluminado, mas os seus olhos nunca tiveram de se ajustar a uma outra luz. Seu mundo era muito pequeno. Os limites eram as paredes da toca, mas como ele não conhecia o mundo lá fora, nunca se sentiu oprimido pelos confins estreitos de sua existência.
Mas cedo ele descobriu que uma parede de seu mundo era diferente do resto. Era a boca da caverna e a fonte de luz. Descobriu que era diferente das outras paredes muito antes de ter pensamentos próprios, qualquer vontade consciente. Fora uma atração irresistível mesmo antes de seus olhos abrirem e fitarem o local. A luz da parede batera sobre as pálpebras seladas, e os olhos e os nervos óticos tinham pulsado em pequenos lampejos semelhantes a centelhas, coloridos, quentes e estranhamente agradáveis. A vida de seu corpo, toda fibra de seu corpo, a vida que era a própria substância de seu corpo e que estava separada de sua própria vida pessoal, ansiara por essa luz e impelira o seu corpo na direção da luz, assim como a química sagaz de uma planta a impele para o sol.
Desde o início, antes que despertasse a sua vida consciente, ele se arrastara para a boca da caverna. E nisso os irmãos e irmãs eram iguais a ele. Nunca, nesse período, algum deles se arrastou para os cantos escuros da parede dos fundos. A luz os atraía como se fossem plantas; a química da vida que os compunha exigia a luz como uma necessidade do ser; e seus corpinhos de marionetes arrastavam-se cega e quimicamente, como as gavinhas de uma trepadeira. Mais tarde, quando cada um desenvolveu sua individualidade e tornou-se pessoalmente consciente de impulsos e desejos, a atração da luz aumentou. Estavam sempre se arrastando e se esparramando na direção da luz, e sendo afastados da entrada pela mãe.
Foi assim que o filhote cinza aprendeu outros atributos de sua mãe além da língua macia e tranquilizadora. No seu insistente arrastar-se para a luz, descobriu nela um focinho que com uma cutucada brusca administrava uma reprimenda, e, mais tarde, uma pata que o derrubava ou o fazia rolar mais de uma vez pelo chão com um golpe rápido e calculado. Assim aprendeu a dor e, além disso, aprendeu a evitá-la: primeiro, não incorrendo no risco de receber uma reprimenda; e, segundo, depois de ter incorrido nesse risco, esquivando-se e recuando. Eram ações conscientes, os resultados de suas primeiras generalizações sobre o mundo. Antes disso, ele recuara automaticamente da dor, assim como se arrastara automaticamente para a luz. Depois disso, ele recuava da dor, porque sabia que era dor.
Era um filhote feroz. Como os irmãos e as irmãs. Era de se esperar. Um animal carnívoro. Provinha de uma estirpe de matadores e comedores de carne. O pai e a mãe viviam inteiramente de carne. O leite que tinha sugado nos seus primeiros bruxuleios de vida era um leite transformado diretamente da carne, e agora, depois de um mês, com os olhos abertos há apenas uma semana, ele próprio começava a comer carne – carne meio digerida pela loba e vomitada para os cinco filhotes em desenvolvimento que já exigiam demais do peito materno.
Mas ele era, além disso, o mais feroz da ninhada. Podia emitir um rosnado áspero mais alto do que qualquer um dos outros. Suas pequenas fúrias eram muito mais terríveis que as deles. Foi o primeiro a aprender o truque de fazer rolar um dos outros filhotes com um golpe ladino da pata. E foi o primeiro a agarrar outro filhote pela orelha e puxar, arrastar e rosnar por entre as mandíbulas bem cerradas. E certamente era o que mais dava trabalho à mãe no seu afã de manter a ninhada longe da boca da caverna.
A fascinação da luz para o filhote cinza aumentava dia a dia. Ele estava sempre partindo em aventuras de um metro para a entrada da caverna, para ser sempre puxado de volta. Só que não sabia que aquilo era uma entrada. Ele nada sabia sobre entradas – passagens pelas quais se vai de um lugar para outro. Ele não sabia de nenhum outro lugar, muito menos de um modo de lá chegar. Assim, para ele a entrada da caverna era uma parede – uma parede de luz. Como o sol para o habitante do exterior, essa parede era para ele o sol de seu mundo. Atraía-o como uma vela atrai uma mariposa. Sempre procurava alcançá-la. A vida que se expandia tão rapidamente no seu interior forçava-o a seguir continuamente para a parede de luz. A vida no seu interior sabia que era a única saída, o caminho que estava predestinado a percorrer. Mas ele próprio nada sabia disso. Nem sequer sabia que havia um mundo exterior.
Havia uma única coisa estranha sobre essa parede de luz. O pai (ele já começara a reconhecer o pai como um outro habitante do mundo, uma criatura como a mãe, que dormia perto da luz e trazia carne para comer) – o pai sabia passar pela parede branca distante e desaparecer. O filhote cinza não entendia isso. Embora a mãe nunca permitisse que se aproximasse daquela parede, ele já tinha se aproximado das outras e encontrado uma obstrução dura na ponta de seu focinho tenro. Doía. E, depois de várias dessas aventuras, ele deixou as paredes em paz. Sem pensar a respeito, aceitou o desaparecimento através da parede como uma peculiaridade do pai, assim como o leite e a carne meio digerida eram peculiaridades da mãe.
Na verdade, o filhote cinza não era dado a pensar – pelo menos, segundo o tipo de pensamento comum aos homens. Seu cérebro funcionava de maneira vaga. Mas suas conclusões eram tão nítidas e distintas quanto as alcançadas pelos homens. Ele tinha um método de aceitar as coisas, sem questionar o porquê e o para quê. Na realidade, era o ato da classificação. Nunca se perturbava sobre a razão por que uma coisa acontecia. Saber como ela acontecia já lhe bastava. Assim, depois de bater com o focinho algumas vezes na parede do fundo, aceitou que não conseguia desaparecer através das paredes. Assim como aceitou que o pai conseguia desaparecer através das paredes. Mas não ficou nem um pouco perturbado pelo desejo de descobrir a razão para essa diferença entre ele e o pai. A lógica e a física não faziam parte da sua constituição mental.
Como a maioria das criaturas da Floresta, ele cedo experimentou a fome. Veio um período em que não só terminou o suprimento de carne, como já não saía leite do peito da mãe. A princípio, os filhotes choramingaram e gritaram, mas na maior parte do tempo dormiam. Não demorou muito para que fossem reduzidos a um coma de fome. Já não havia disputas e brigas, nem raivas diminutas ou tentativas de rosnado, e as aventuras em direção à distante parede branca cessaram completamente. Os filhotes dormiam, enquanto a vida que havia neles bruxuleava e se extinguia.
Caolho estava desesperado. Ele andava bem longe, e pouco dormia na toca que se tornara triste e miserável. A loba também deixou a ninhada e saiu em busca de carne. Nos primeiros dias depois do nascimento dos filhotes, Caolho tinha voltado várias vezes ao acampamento indígena e roubado as armadilhas de coelho; mas, com a neve se derretendo e as correntes se abrindo, o acampamento indígena fora embora, e essa fonte de alimento lhe fora fechada.
Quando o filhote cinza voltou à vida e retomou o interesse pela distante parede branca, descobriu que a população do seu mundo fora reduzida. Restava-lhe apenas uma irmã. O resto desaparecera. Quando se tornou mais forte, viu-se compelido a brincar sozinho, pois a irmã já não levantava a cabeça nem se movia ao redor. Seu corpo pequeno se arredondava com a carne que agora comia, mas a comida viera tarde demais para ela. A irmã vivia dormindo, um esqueleto diminuto enrolado numa pele em que a chama bruxuleava cada vez mais fraca e por fim se extinguiu.
Depois veio o tempo em que o filhote cinza já não via o pai aparecer e desaparecer na parede, nem dormir deitado na entrada. Isso acontecera no final de uma segunda fome menos severa. A loba sabia por que Caolho não voltava, mas não havia como contar o que tinha visto ao filhote cinza. Ao caçar em busca de carne, acima no braço esquerdo da corrente, onde vivia o lince, ela seguira uma trilha aberta por Caolho no dia anterior. E o encontrara, ou o que dele restara, no fim da trilha. Havia muitos sinais da batalha que fora travada, e da retirada do lince para a sua toca depois de ter conquistado a vitória. Antes de ir embora, a loba encontrou essa toca, mas os sinais lhe avisaram que o lince estava lá dentro, e ela não ousou entrar.
Depois disso, a loba evitava o braço esquerdo nas suas caçadas. Pois sabia que a toca do lince continha uma ninhada de gatinhos, e sabia que o lince era uma criatura feroz, de má índole e um lutador terrível. Tudo muito bem que meia dúzia de lobos forçassem um lince, bufando e eriçando-se, a subir numa árvore; mas era uma história muito diferente um lobo solitário enfrentar um lince – especialmente quando se sabia que o lince tinha uma ninhada de gatinhos famintos pelas costas.
Mas a Floresta é a Floresta, e ser mãe é ser mãe, sempre ferozmente protegendo as crias quer na Floresta, quer fora dela. E viria o tempo em que a loba, por causa de seu filhote cinza, arriscaria subir o braço esquerdo da corrente e enfrentar a toca nas rochas e a fúria do lince.
Jack London, in Caninos Brancos

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