Não
tinha ainda visto Ana quando me recolhi (era fácil compreender que
ela tivesse se refugiado na capela ao saber do meu retorno), e nem
meu irmão caçula, pois não tinha ousado sair do meu silêncio para
perguntar por ele. Ao entrar no quarto, embora achando um tanto
estranho, não me surpreendi vendo Lula na cama, deitado de lado
contra a parede, coberto por um lençol branco da cabeça aos pés. O
quarto dormia numa penumbra tranquila, a claridade em volta da casa,
diluída, chegava ali dentro ainda mais calma vazada pelas frinchas
da veneziana; não acendi a luz, sabendo que podia me deslocar sem
dificuldade, além do que, vestindo o pijama desde o banho, eu tinha
pouco que fazer: fechar a porta atrás de mim, remover minha bagagem
para um canto, soltar meus chinelos dos pés, e me enfiar em seguida
na cama: cansado de subir serras, tudo que eu queria era uma relva
plana, me entorpecer de sono, dormir todos os meus sonhos, todos os
meus pesadelos, acordando no dia seguinte com os olhos claros,
podendo quem sabe, como dizia o avô, “distinguir já na aurora um
fio branco de um fio negro”.
Cuidando
da bagagem, dei logo pela falta da caixa que acompanhava a mala, mas
não liguei importância a isso, ainda que a caixa trouxesse coisas
insólitas, as mesmas coisas que eu, em alta tensão, tinha exposto
aos olhos pejados de Pedro naquele remoto quarto de pensão; a cinta
de sisal estava jogada ali no assoalho, chegando a me intrigar as
mãos afoitas que arrancaram o cordão sem desfazer o nó (não se
fazia nunca isso em casa), subtraindo a caixa só depois de conhecer
às pressas seu conteúdo; sentado na cama, eu recuperava
mecanicamente o barbante, enrolando-o depois à maneira de meu pai no
carretel dos dedos, quando me ocorreu que tinha sido talvez para
satisfazer a gula púbere de Lula que aquele roubo fora consumado;
olhando sobre o ombro para a outra cama, notei num momento que Lula
não só fingia o seu sono, mas queria também, através de
movimentos um tanto desabusados, me deixar claro que não dormia, e
que era para demonstrar seu desprezo que ele, deitado de lado contra
a parede, me voltava ostensivamente as costas; fiquei bem alguns
minutos sondando sua graça ingênua e incansável, desfechando
pequenas patadas de espaço a espaço no lençol que o cobria, até
que me levantei e, contornando minha cama, fui me sentar na beira da
cama dele: o lençol já não se mexia, passando eu a ouvir de
repente o ruído de quem ressonava profundamente; um pouco surpreso
com a distração que tudo aquilo começava a me causar, levei a mão
ao seu ombro:
— Lula!
Lula!
Lula
demorou para descobrir a cabeça e me olhou sem virar o corpo,
rosnando qualquer coisa hostil como se tivesse sido despertado, não
conseguindo contudo esconder seu contentamento.
— Você
dormia?
— Claro!
Então você não viu que eu dormia?
— É
que eu queria ter um dedo de conversa com você, foi só por isso que
te acordei.
— Conversar
o quê?
— Acabo
de voltar pra casa, Lula.
— E
daí?
— Eu
pensei que isso te deixasse contente.
— Contente
por quê?
— Não
sei, mas pensei isso.
— Pensou
errado.
— Se
for pra conversar assim, a gente para por aqui, é melhor.
— Você
nem devia ter começado, boa-noite — e Lula puxou de novo o lençol
sobre a cabeça, resguardando sua altivez, mas não ressonava e nem
se mexia, aguardava com certeza uma nova iniciativa de minha parte,
parecia ansioso em conversar comigo, ele, cujos olhos sempre
estiveram muito perto de mim (eu não sabia), e para quem meus passos
eram um mau exemplo, segundo Pedro.
— O
que há com você, Lula? — eu disse num impulso de ternura. —
Quero te falar como amigo, é tudo.
— O
que há... o que há... você ainda pergunta — ele disse sem
descobrir a cabeça — faz mais de uma hora que estou aqui te
esperando, se você quer saber. Uma hora! Agora vem você com essa de
amigo...
— Eu
não sabia, Lula.
— Não
sabia... não sabia... onde é que eu poderia estar, se você não
tinha me visto ainda? Não era no pasto, no meio dos carneiros... —
e ele tentava amenizar sua recusa, mas não cedia.
— Está
bem, Lula, então boa-noite — eu disse, e nem sequer tinha me
erguido quando ele se virou intempestivo, atirando o lençol e
descobrindo o peito, sentando-se apoiado na cabeceira da cama,
precipitando-se com ardor numa insolente confidência:
— Vou
sair de casa, André, amanhã, no meio da tua festa, mas isso eu só
estou contando pra você.
— Fale
baixo, Lula.
— Não
aguento mais esta prisão, não aguento mais os sermões do pai, nem
o trabalho que me dão, e nem a vigilância do Pedro em cima do que
faço, quero ser dono dos meus próprios passos; não nasci pra viver
aqui, sinto nojo dos nossos rebanhos, não gosto de trabalhar na
terra, nem nos dias de sol, menos ainda nos dias de chuva, não
aguento mais a vida parada desta fazenda imunda...
— Fale
baixo, eu já disse.
— Só
foi você partir, André, e eu já vivia empoleirado lá na porteira,
sonhando com estradas, esticando os olhos até onde podia, era só na
tua aventura que eu pensava... Quero conhecer muitas cidades, quero
correr todo este mundo, vou trocar meu embornal por uma mochila, vou
me transformar num andarilho que vai de praça em praça cruzando as
ruas feito vagabundo; quero conhecer também os lugares mais
proibidos, desses lugares onde os ladrões se encontram, onde se joga
só a dinheiro, onde se bebe muito vinho, onde se cometem todos os
vícios, onde os criminosos tramam os seus crimes; vou ter a
companhia de mulheres, quero ser conhecido nos bordéis e nos becos
onde os mendigos dormem, quero fazer coisas diferentes, ser generoso
com meu próprio corpo, ter emoções que nunca tive; e quando a
intimidade da noite me cansar, vou caminhar a esmo pelas ruas
escuras, vou sentir o orvalho da madrugada em cima de mim, vou ver o
dia amanhecendo estirado num banco de jardim; quero viver tudo isso,
André, vou sair de casa para abraçar o mundo, vou partir para nunca
mais voltar, não vou ceder a nenhum apelo, tenho coragem, André,
não vou falhar como você...
Era
uma água represada (que correnteza, quanto desassossego!) que
jorrava daquela imaginação adolescente ansiosa por dissipar sua
poesia e seu lirismo, era talvez a minha aprovação que ele queria
quando terminasse de descrever seu projeto de aventuras, e enquanto
eu escutava aquelas fantasias todas — infladas de distâncias
inúteis — ia pensando também em abaixar seus cílios alongados,
dizendo-lhe ternamente “dorme, menino”; mas não foi para fechar
seus olhos que estendi o braço, correndo logo a mão no seu peito
liso: encontrei ali uma pele branda, morna, tinha a textura de um
lírio; e meu gesto imponderável perdia aos poucos o comando naquele
repouso quente, já resvalava numa pesquisa insólita, levando Lula a
interromper bruscamente seu relato, enquanto suas pernas de potro
compensavam o silêncio, voltando a mexer desordenadas sob o lençol;
subindo a mão, alcancei com o dorso suas faces imberbes, as maçãs
do rosto já estavam em febre; nos seus olhos, ousadia e dissimulação
se misturavam, ora avançando, ora recuando, como nuns certos olhos
antigos, seus olhos eram, sem a menor sombra de dúvida, os
primitivos olhos de Ana!
— Que
que você está fazendo, André?
Aprisionado
no velho templo, os pés ainda cobertos de sal (que prenúncios de
alvoroço!), eu estendia a mão sobre o pássaro novo que pouco antes
se debatia contra o vitral.
— Que
que você está fazendo, André?
Não
respondi ao protesto dúbio, sentindo cada vez mais confusa a súbita
neblina de incenso que invadia o quarto, compondo giros, espiras e
remoinhos, apagando ali as ressonâncias do trabalho animado e
ruidoso em torno da mesa lá no pátio, a que alguns vizinhos
acabavam de se juntar. Minha festa seria no dia seguinte, e, depois,
eu tinha transferido só para a aurora o meu discernimento, sem
contar que a madrugada haveria também de derramar o orvalho frio
sobre os belos cabelos de Lula, quando ele percorresse o caminho que
levava da casa para a capela.
Raduan
Nassar,
in Lavoura Arcaica
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