sábado, 28 de março de 2020

Lavoura Arcaica - 27

Não tinha ainda visto Ana quando me recolhi (era fácil compreender que ela tivesse se refugiado na capela ao saber do meu retorno), e nem meu irmão caçula, pois não tinha ousado sair do meu silêncio para perguntar por ele. Ao entrar no quarto, embora achando um tanto estranho, não me surpreendi vendo Lula na cama, deitado de lado contra a parede, coberto por um lençol branco da cabeça aos pés. O quarto dormia numa penumbra tranquila, a claridade em volta da casa, diluída, chegava ali dentro ainda mais calma vazada pelas frinchas da veneziana; não acendi a luz, sabendo que podia me deslocar sem dificuldade, além do que, vestindo o pijama desde o banho, eu tinha pouco que fazer: fechar a porta atrás de mim, remover minha bagagem para um canto, soltar meus chinelos dos pés, e me enfiar em seguida na cama: cansado de subir serras, tudo que eu queria era uma relva plana, me entorpecer de sono, dormir todos os meus sonhos, todos os meus pesadelos, acordando no dia seguinte com os olhos claros, podendo quem sabe, como dizia o avô, “distinguir já na aurora um fio branco de um fio negro”.
Cuidando da bagagem, dei logo pela falta da caixa que acompanhava a mala, mas não liguei importância a isso, ainda que a caixa trouxesse coisas insólitas, as mesmas coisas que eu, em alta tensão, tinha exposto aos olhos pejados de Pedro naquele remoto quarto de pensão; a cinta de sisal estava jogada ali no assoalho, chegando a me intrigar as mãos afoitas que arrancaram o cordão sem desfazer o nó (não se fazia nunca isso em casa), subtraindo a caixa só depois de conhecer às pressas seu conteúdo; sentado na cama, eu recuperava mecanicamente o barbante, enrolando-o depois à maneira de meu pai no carretel dos dedos, quando me ocorreu que tinha sido talvez para satisfazer a gula púbere de Lula que aquele roubo fora consumado; olhando sobre o ombro para a outra cama, notei num momento que Lula não só fingia o seu sono, mas queria também, através de movimentos um tanto desabusados, me deixar claro que não dormia, e que era para demonstrar seu desprezo que ele, deitado de lado contra a parede, me voltava ostensivamente as costas; fiquei bem alguns minutos sondando sua graça ingênua e incansável, desfechando pequenas patadas de espaço a espaço no lençol que o cobria, até que me levantei e, contornando minha cama, fui me sentar na beira da cama dele: o lençol já não se mexia, passando eu a ouvir de repente o ruído de quem ressonava profundamente; um pouco surpreso com a distração que tudo aquilo começava a me causar, levei a mão ao seu ombro:
Lula! Lula!
Lula demorou para descobrir a cabeça e me olhou sem virar o corpo, rosnando qualquer coisa hostil como se tivesse sido despertado, não conseguindo contudo esconder seu contentamento.
Você dormia?
Claro! Então você não viu que eu dormia?
É que eu queria ter um dedo de conversa com você, foi só por isso que te acordei.
Conversar o quê?
Acabo de voltar pra casa, Lula.
E daí?
Eu pensei que isso te deixasse contente.
Contente por quê?
Não sei, mas pensei isso.
Pensou errado.
Se for pra conversar assim, a gente para por aqui, é melhor.
Você nem devia ter começado, boa-noite — e Lula puxou de novo o lençol sobre a cabeça, resguardando sua altivez, mas não ressonava e nem se mexia, aguardava com certeza uma nova iniciativa de minha parte, parecia ansioso em conversar comigo, ele, cujos olhos sempre estiveram muito perto de mim (eu não sabia), e para quem meus passos eram um mau exemplo, segundo Pedro.
O que há com você, Lula? — eu disse num impulso de ternura. — Quero te falar como amigo, é tudo.
O que há... o que há... você ainda pergunta — ele disse sem descobrir a cabeça — faz mais de uma hora que estou aqui te esperando, se você quer saber. Uma hora! Agora vem você com essa de amigo...
Eu não sabia, Lula.
Não sabia... não sabia... onde é que eu poderia estar, se você não tinha me visto ainda? Não era no pasto, no meio dos carneiros... — e ele tentava amenizar sua recusa, mas não cedia.
Está bem, Lula, então boa-noite — eu disse, e nem sequer tinha me erguido quando ele se virou intempestivo, atirando o lençol e descobrindo o peito, sentando-se apoiado na cabeceira da cama, precipitando-se com ardor numa insolente confidência:
Vou sair de casa, André, amanhã, no meio da tua festa, mas isso eu só estou contando pra você.
Fale baixo, Lula.
Não aguento mais esta prisão, não aguento mais os sermões do pai, nem o trabalho que me dão, e nem a vigilância do Pedro em cima do que faço, quero ser dono dos meus próprios passos; não nasci pra viver aqui, sinto nojo dos nossos rebanhos, não gosto de trabalhar na terra, nem nos dias de sol, menos ainda nos dias de chuva, não aguento mais a vida parada desta fazenda imunda...
Fale baixo, eu já disse.
Só foi você partir, André, e eu já vivia empoleirado lá na porteira, sonhando com estradas, esticando os olhos até onde podia, era só na tua aventura que eu pensava... Quero conhecer muitas cidades, quero correr todo este mundo, vou trocar meu embornal por uma mochila, vou me transformar num andarilho que vai de praça em praça cruzando as ruas feito vagabundo; quero conhecer também os lugares mais proibidos, desses lugares onde os ladrões se encontram, onde se joga só a dinheiro, onde se bebe muito vinho, onde se cometem todos os vícios, onde os criminosos tramam os seus crimes; vou ter a companhia de mulheres, quero ser conhecido nos bordéis e nos becos onde os mendigos dormem, quero fazer coisas diferentes, ser generoso com meu próprio corpo, ter emoções que nunca tive; e quando a intimidade da noite me cansar, vou caminhar a esmo pelas ruas escuras, vou sentir o orvalho da madrugada em cima de mim, vou ver o dia amanhecendo estirado num banco de jardim; quero viver tudo isso, André, vou sair de casa para abraçar o mundo, vou partir para nunca mais voltar, não vou ceder a nenhum apelo, tenho coragem, André, não vou falhar como você...
Era uma água represada (que correnteza, quanto desassossego!) que jorrava daquela imaginação adolescente ansiosa por dissipar sua poesia e seu lirismo, era talvez a minha aprovação que ele queria quando terminasse de descrever seu projeto de aventuras, e enquanto eu escutava aquelas fantasias todas — infladas de distâncias inúteis — ia pensando também em abaixar seus cílios alongados, dizendo-lhe ternamente “dorme, menino”; mas não foi para fechar seus olhos que estendi o braço, correndo logo a mão no seu peito liso: encontrei ali uma pele branda, morna, tinha a textura de um lírio; e meu gesto imponderável perdia aos poucos o comando naquele repouso quente, já resvalava numa pesquisa insólita, levando Lula a interromper bruscamente seu relato, enquanto suas pernas de potro compensavam o silêncio, voltando a mexer desordenadas sob o lençol; subindo a mão, alcancei com o dorso suas faces imberbes, as maçãs do rosto já estavam em febre; nos seus olhos, ousadia e dissimulação se misturavam, ora avançando, ora recuando, como nuns certos olhos antigos, seus olhos eram, sem a menor sombra de dúvida, os primitivos olhos de Ana!
Que que você está fazendo, André?
Aprisionado no velho templo, os pés ainda cobertos de sal (que prenúncios de alvoroço!), eu estendia a mão sobre o pássaro novo que pouco antes se debatia contra o vitral.
Que que você está fazendo, André?
Não respondi ao protesto dúbio, sentindo cada vez mais confusa a súbita neblina de incenso que invadia o quarto, compondo giros, espiras e remoinhos, apagando ali as ressonâncias do trabalho animado e ruidoso em torno da mesa lá no pátio, a que alguns vizinhos acabavam de se juntar. Minha festa seria no dia seguinte, e, depois, eu tinha transferido só para a aurora o meu discernimento, sem contar que a madrugada haveria também de derramar o orvalho frio sobre os belos cabelos de Lula, quando ele percorresse o caminho que levava da casa para a capela.
Raduan Nassar, in Lavoura Arcaica

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