sábado, 14 de março de 2020

Lavoura Arcaica - 23

Pedro cumprira sua missão me devolvendo ao seio da família; foi um longo percurso marcado por um duro recolhimento, os dois permanecemos trancados durante toda a viagem que realizamos juntos, e na qual, feito menino, me deixei conduzir por ele o tempo inteiro; era já noite quando chegamos, a fazenda dormia num silêncio recluso, a casa estava em luto, as luzes apagadas, salvo a clareira pálida no pátio dos fundos que se devia à expansão da luz da copa, pois a família se encontrava ainda em volta da mesa; entramos pela varanda da frente, e assim que meu irmão abriu a porta, o ruído de um garfo repousando no prato, seguido, embora abafado, de um murmúrio intenso, precedeu a expectativa angustiante que se instalou na casa inteira; me separei de Pedro ali mesmo na sala, entrando para o meu antigo quarto, enquanto ele, fazendo vibrar a cristaleira sob os passos, afundava no corredor em direção à copa, onde a família o aguardava; largado na beira da minha velha cama, a bagagem jogada entre meus pés, fui envolvido pelos cheiros caseiros que eu respirava, me despertando imagens torpes, mutiladas, me fazendo cair logo em confusos pensamentos; na sucessão de tantas ideias, me passava também pela cabeça o esforço de Pedro para esconder de todos a sua dor, disfarçada quem sabe pelo cansaço da viagem; ele não poderia deixar transparecer, ao anunciar a minha volta, que era um possuído que retornava com ele a casa; ele precisaria dissimular muito para não estragar a alegria e o júbilo nos olhos de meu pai, que dali a pouco haveria de proclamar para os que o cercavam que “aquele que tinha se perdido tornou ao lar, aquele pelo qual chorávamos nos foi devolvido”.
Assustado com o ânimo quente que tomou os fundos da casa de repente, se alastrando com rapidez pelos nervos das paredes, com vozes, risos e soluços se misturando, me levantei atordoado para encostar a porta, ao mesmo tempo que todo aquele surto de emoções parecia ser contido pela palavra severa do chefe da família; e eu ainda ouvia um silêncio carregado de vibrações e ressonâncias, quando a porta foi aberta, e a luz do meu quarto acesa, surgindo, em toda a sua majestade rústica, a figura de meu pai, caminhando, grave, na minha direção; já de pé, e olhando para o chão, e sofrendo a densidade da sua presença diante de mim, senti num momento suas mãos benignas sobre minha cabeça, correndo meus cabelos até a nuca, descendo vagarosas pelos meus ombros, e logo seus braços poderosos me apertavam o peito contra o seu peito, me tomando depois o rosto entre suas palmas para me beijar a testa; e eu tinha outra vez os olhos no chão quando ele disse, úmido e solene:
Abençoado o dia da tua volta! Nossa casa agonizava, meu filho, mas agora já se enche de novo de alegria!
E me olhando com ternura contida, e medindo longamente o estado roto dos meus traços, e me advertindo sobre a conversa que teríamos um pouco mais tarde, quando tudo estivesse mais tranquilo, e me lembrando ainda que meu encontro com a mãe deveria ser comedido, poupando-lhe sobretudo a memória dos dias da minha ausência, meu pai ordenou que eu lavasse do corpo o pó da estrada antes de sentar-me à mesa que a mãe me preparava. E mal ele tinha se afastado, minhas irmãs irromperam ruidosamente pela porta, se atirando ao meu encontro, se pendurando no meu pescoço, fazendo festas nos meus cabelos, me beijando muitas vezes o rosto, me alisando por cima da camisa o peito e as costas, e riam, e choravam, e faziam tudo isso entre comentários atropelados, e até intempestivos, me revelando bruscamente que Ana, tão piedosa desde que eu partira, mal soube da notícia correra à capela para agradecer a minha volta, que a casa também por isso já estava toda iluminada, daria gosto ver tanta luz a quem passasse lá na estrada, e que dali a pouco começariam de véspera os preparativos para celebrar a minha páscoa, e que todos seriam convidados ainda aquela noite, nossos vizinhos juntamente com os parentes e amigos lá da vila, e que aquela era pra família a maior graça já recebida, pois meu retorno à casa trazia de volta em dobro toda a alegria perdida, e cheias de calor e entusiasmo elas me arrancaram ali do quarto me agarrando pelos braços, e eu, todo sombrio, mal escondendo meus olhos repulsivos, eu deixei que me conduzissem pela sala enquanto iam me soprando ternamente alguns gracejos, e assim que entramos pelo corredor elas me empurraram pela porta do banheiro, me sentando logo no caixote, e, enquanto Rosa, atrás de mim, dobrada sobre meu dorso, atravessava os braços por cima dos meus ombros pra me abrir a camisa, Zuleika e Huda, de joelhos, dobradas sobre meus pés, se ocupavam de tirar meus sapatos e minhas meias, e eu ali, entregue aos cuidados de tantas mãos, fui dando conta do zelo que me cercava, já estava temperada a água quente ali da lata, o canecão ao lado, a toalha de banho dependurada, um sabão de essência raro em nossa casa, o surrado par de chinelos, sem contar o pijama, limpo e passado, que eu, ao partir, tinha esquecido sob o travesseiro, e eu já estava de peito nu e pés descalços quando elas se retiraram com movimentos ligeiros, e enquanto Rosa, a mais velha das mulheres, encostava por fora a porta, fui alertado por ela de que eu não tinha mais que cinco minutos para me mostrar de novo aos olhos da família, e que nesse meio-tempo elas iam preparar melhor a mãe para me ver.
Perturbado pelo turbilhão de afagos, embora um tanto refeito pela água, deixei o banheiro minutos depois, sentindo a maciez do algodão do meu pijama, meus pés soltos nos chinelos lassos, e a fragrância discreta que o sabão tinha deixado no meu corpo. Rosa me aguardava sozinha na sala, estava sentada, pensativa, pareceu não dar logo por mim que saía para o corredor, mas assim que me viu veio ao meu encontro, me saudando pelo banho, me puxando para a sala, o rosto suavizado por um sorriso calmo, ela que era tão sensata: “Ouça bem isto, Andrula: a mãe precisa de cuidados, ela não é a mesma desde que você partiu; seja generoso, meu irmão, não fique trancado diante dela, fale pelo menos com ela, mas não fale de coisas tristes, é tudo o que te peço; e agora vá ver a mãe, ela está lá na copa te esperando, vá depressa; enquanto isso, vou ajudar nos preparativos da tua festa de amanhã, Zuleika e Huda já estão tomando as primeiras providências, elas estão transtornadas de tanta alegria! Deus ouviu as nossas preces!” ela disse e eu senti nas costas a pressão doce da sua mão me animando a afundar no corredor em direção à copa, e eu já estava a meio caminho quando me ocorreu que, embora toda iluminada, inclusive os quartos de dormir, a casa estava em silêncio, vazia por dentro, a família atendia com certeza a uma recomendação de Pedro, cuja palavra persuasiva beirava a autoridade do pai, gozando de audiência: eu era um enfermo, necessitava de cuidados especiais, que me poupassem nas primeiras horas, sem contar que todos tinham o bom pretexto de preparar às pressas a minha festa.
Na entrada da copa, parei: cioso das mudanças, marcando o silêncio com rigor, estava ali o nosso antigo relógio de parede trabalhando criteriosamente cada instante; estava ali a velha mesa, sólida, maciça, em torno da qual a família reunida consumia todos os dias seu alimento; uma das cabeceiras, era só uma ponta, tinha sido forrada por uma toalha branca, e, sobre ela, a refeição que me esperava; ao lado da cabeceira, de pé, o corpo grosso sem se mexer, estava a mãe, apertando contra os olhos um lenço desdobrado que ela abaixou ao pressentir minha presença; e foi só então que eu pude ver, apesar da luz que brilhava nos seus olhos, quanto estrago eu tinha feito naquele rosto.
Raduan Nassar, in Lavoura Arcaica

Nenhum comentário:

Postar um comentário