Pedro
cumprira sua missão me devolvendo ao seio da família; foi um longo
percurso marcado por um duro recolhimento, os dois permanecemos
trancados durante toda a viagem que realizamos juntos, e na qual,
feito menino, me deixei conduzir por ele o tempo inteiro; era já
noite quando chegamos, a fazenda dormia num silêncio recluso, a casa
estava em luto, as luzes apagadas, salvo a clareira pálida no pátio
dos fundos que se devia à expansão da luz da copa, pois a família
se encontrava ainda em volta da mesa; entramos pela varanda da
frente, e assim que meu irmão abriu a porta, o ruído de um garfo
repousando no prato, seguido, embora abafado, de um murmúrio
intenso, precedeu a expectativa angustiante que se instalou na casa
inteira; me separei de Pedro ali mesmo na sala, entrando para o meu
antigo quarto, enquanto ele, fazendo vibrar a cristaleira sob os
passos, afundava no corredor em direção à copa, onde a família o
aguardava; largado na beira da minha velha cama, a bagagem jogada
entre meus pés, fui envolvido pelos cheiros caseiros que eu
respirava, me despertando imagens torpes, mutiladas, me fazendo cair
logo em confusos pensamentos; na sucessão de tantas ideias, me
passava também pela cabeça o esforço de Pedro para esconder de
todos a sua dor, disfarçada quem sabe pelo cansaço da viagem; ele
não poderia deixar transparecer, ao anunciar a minha volta, que era
um possuído que retornava com ele a casa; ele precisaria dissimular
muito para não estragar a alegria e o júbilo nos olhos de meu pai,
que dali a pouco haveria de proclamar para os que o cercavam que
“aquele que tinha se perdido tornou ao lar, aquele pelo qual
chorávamos nos foi devolvido”.
Assustado
com o ânimo quente que tomou os fundos da casa de repente, se
alastrando com rapidez pelos nervos das paredes, com vozes, risos e
soluços se misturando, me levantei atordoado para encostar a porta,
ao mesmo tempo que todo aquele surto de emoções parecia ser contido
pela palavra severa do chefe da família; e eu ainda ouvia um
silêncio carregado de vibrações e ressonâncias, quando a porta
foi aberta, e a luz do meu quarto acesa, surgindo, em toda a sua
majestade rústica, a figura de meu pai, caminhando, grave, na minha
direção; já de pé, e olhando para o chão, e sofrendo a densidade
da sua presença diante de mim, senti num momento suas mãos benignas
sobre minha cabeça, correndo meus cabelos até a nuca, descendo
vagarosas pelos meus ombros, e logo seus braços poderosos me
apertavam o peito contra o seu peito, me tomando depois o rosto entre
suas palmas para me beijar a testa; e eu tinha outra vez os olhos no
chão quando ele disse, úmido e solene:
— Abençoado
o dia da tua volta! Nossa casa agonizava, meu filho, mas agora já se
enche de novo de alegria!
E
me olhando com ternura contida, e medindo longamente o estado roto
dos meus traços, e me advertindo sobre a conversa que teríamos um
pouco mais tarde, quando tudo estivesse mais tranquilo, e me
lembrando ainda que meu encontro com a mãe deveria ser comedido,
poupando-lhe sobretudo a memória dos dias da minha ausência, meu
pai ordenou que eu lavasse do corpo o pó da estrada antes de
sentar-me à mesa que a mãe me preparava. E mal ele tinha se
afastado, minhas irmãs irromperam ruidosamente pela porta, se
atirando ao meu encontro, se pendurando no meu pescoço, fazendo
festas nos meus cabelos, me beijando muitas vezes o rosto, me
alisando por cima da camisa o peito e as costas, e riam, e choravam,
e faziam tudo isso entre comentários atropelados, e até
intempestivos, me revelando bruscamente que Ana, tão piedosa desde
que eu partira, mal soube da notícia correra à capela para
agradecer a minha volta, que a casa também por isso já estava toda
iluminada, daria gosto ver tanta luz a quem passasse lá na estrada,
e que dali a pouco começariam de véspera os preparativos para
celebrar a minha páscoa, e que todos seriam convidados ainda aquela
noite, nossos vizinhos juntamente com os parentes e amigos lá da
vila, e que aquela era pra família a maior graça já recebida, pois
meu retorno à casa trazia de volta em dobro toda a alegria perdida,
e cheias de calor e entusiasmo elas me arrancaram ali do quarto me
agarrando pelos braços, e eu, todo sombrio, mal escondendo meus
olhos repulsivos, eu deixei que me conduzissem pela sala enquanto iam
me soprando ternamente alguns gracejos, e assim que entramos pelo
corredor elas me empurraram pela porta do banheiro, me sentando logo
no caixote, e, enquanto Rosa, atrás de mim, dobrada sobre meu dorso,
atravessava os braços por cima dos meus ombros pra me abrir a
camisa, Zuleika e Huda, de joelhos, dobradas sobre meus pés, se
ocupavam de tirar meus sapatos e minhas meias, e eu ali, entregue aos
cuidados de tantas mãos, fui dando conta do zelo que me cercava, já
estava temperada a água quente ali da lata, o canecão ao lado, a
toalha de banho dependurada, um sabão de essência raro em nossa
casa, o surrado par de chinelos, sem contar o pijama, limpo e
passado, que eu, ao partir, tinha esquecido sob o travesseiro, e eu
já estava de peito nu e pés descalços quando elas se retiraram com
movimentos ligeiros, e enquanto Rosa, a mais velha das mulheres,
encostava por fora a porta, fui alertado por ela de que eu não tinha
mais que cinco minutos para me mostrar de novo aos olhos da família,
e que nesse meio-tempo elas iam preparar melhor a mãe para me ver.
Perturbado
pelo turbilhão de afagos, embora um tanto refeito pela água, deixei
o banheiro minutos depois, sentindo a maciez do algodão do meu
pijama, meus pés soltos nos chinelos lassos, e a fragrância
discreta que o sabão tinha deixado no meu corpo. Rosa me aguardava
sozinha na sala, estava sentada, pensativa, pareceu não dar logo por
mim que saía para o corredor, mas assim que me viu veio ao meu
encontro, me saudando pelo banho, me puxando para a sala, o rosto
suavizado por um sorriso calmo, ela que era tão sensata: “Ouça
bem isto, Andrula: a mãe precisa de cuidados, ela não é a mesma
desde que você partiu; seja generoso, meu irmão, não fique
trancado diante dela, fale pelo menos com ela, mas não fale de
coisas tristes, é tudo o que te peço; e agora vá ver a mãe, ela
está lá na copa te esperando, vá depressa; enquanto isso, vou
ajudar nos preparativos da tua festa de amanhã, Zuleika e Huda já
estão tomando as primeiras providências, elas estão transtornadas
de tanta alegria! Deus ouviu as nossas preces!” ela disse e eu
senti nas costas a pressão doce da sua mão me animando a afundar no
corredor em direção à copa, e eu já estava a meio caminho quando
me ocorreu que, embora toda iluminada, inclusive os quartos de
dormir, a casa estava em silêncio, vazia por dentro, a família
atendia com certeza a uma recomendação de Pedro, cuja palavra
persuasiva beirava a autoridade do pai, gozando de audiência: eu era
um enfermo, necessitava de cuidados especiais, que me poupassem nas
primeiras horas, sem contar que todos tinham o bom pretexto de
preparar às pressas a minha festa.
Na
entrada da copa, parei: cioso das mudanças, marcando o silêncio com
rigor, estava ali o nosso antigo relógio de parede trabalhando
criteriosamente cada instante; estava ali a velha mesa, sólida,
maciça, em torno da qual a família reunida consumia todos os dias
seu alimento; uma das cabeceiras, era só uma ponta, tinha sido
forrada por uma toalha branca, e, sobre ela, a refeição que me
esperava; ao lado da cabeceira, de pé, o corpo grosso sem se mexer,
estava a mãe, apertando contra os olhos um lenço desdobrado que ela
abaixou ao pressentir minha presença; e foi só então que eu pude
ver, apesar da luz que brilhava nos seus olhos, quanto estrago eu
tinha feito naquele rosto.
Raduan
Nassar, in Lavoura Arcaica
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